"O futebol como ele é", por Rodrigo Capelo

sábado, janeiro 01, 2022 Sidney Puterman




O autor, um jovem jornalista especializado no futebol sob a ótica dos negócios, pegou emprestado o título do tricolor Nelson Rodrigues, "A vida como ela é". Deu o crédito e pagou o empréstimo com juros. O livro faz jus ao título e envereda pelas peculiaridades do jeito brasileiro de gerir.

É uma obra desigual. Isso, sem desmerecê-la em nada - ela oscila entre o excelente e o bom, muito bom. Uma pérola na rasa produção esportiva da nossa literatura de negócios. Sem querer rasgar seda e já rasgando, o livro já nasceu antológico. Falo da sua relevância mais à frente.

A estrutura escolhida foi distribuir entre os maiores clubes do país a requisição de matéria prima. Cada clube pagou uma cota. Ao Vasco, ao Cruzeiro e ao Corinthians couberam duas. Cada cota, um capítulo. Ficou interessante.

O primeiro clube a ser abordado foi o São Paulo. Capelo foi aos primórdios e recapitulou a primeira grande contratação futebolística do país: o Diamante Negro. O tricolor paulista veio ao Rio buscar Leônidas da Silva, nosso maior craque nas quatro primeiras décadas do século. Levou a peso de ouro um atleta que sabia se valorizar. Não à toa virou marca de chocolate.

Mas o jornalista se vale do São Paulo para destacar a visão de alguns dos seus dirigentes, que investiram na construção de um estádio, apertaram os cintos e depois se beneficiaram de um crescimento vertiginoso do superávit a partir da década de 70. Os cartolas do Morumbi protagonizam o bom exemplo de gestão.

O Santos ficou com uma parte mais azeda. Depois de se beneficiar do dinheiro do porto, turbinado pela exportação cafeeira, a exploração (no bom sentido, arrisco) do potencial de Pelé transformou o clube praiano no maior arrecadador de bilheteria do Brasil. Mas a gestão não foi lá essas coisas.

Inclusive uma armadilha encenada por um jornalista revelou que o Santos estava prestes a vender meio time por uma ninharia, apenas para fazer caixa - e isso com Pelé ainda na ativa. 

Já os exemplos advindos do Botafogo são somente os ruins. Capelo bebeu muito do ótimo Saldanha para compor o texto alvinegro. E fez o registro correto do desmoronamento do clube, com a venda da sede, em meados dos anos 70. 

Apesar do time que foi base do tricampeonato da Seleção Brasileira, o clube se auto-baniu para Marechal Hermes, onde teria sido sepultado, não fosse o surgimento de um mecenas - Emil Pinheiro -, que fez o time voltar a vencer, mas deixou o clube pior do que o encontrou. Aí políticos e botafoguenses ilustres, misturados, resgataram o time das calendas e o reinseriram no mercado futebolístico.

Não fosse isso, não haveria SAF que desse jeito.

O Fluminense tem por foco a montagem do maior time da história tricolor, que fez muita farofa e pouco ganhou (isso, digo eu, não o Capelo). O autor se debruça sobre a contratação de Rivelino (à época, com um "l" só) e do rombo nas finanças que isso provocou. 

O time das Laranjeiras pagou a conta do buraco financeiro despencando para a série C, de onde saiu graças a uma nova formulação do calendário - mais uma (e onde o clube sedimentou a alcunha de "rei do tapetão"). Não fosse isso, perigava de estar na terceira divisão até hoje.

Alguns capítulos têm um molho especial. Seja pela pertinência, pelo conteúdo ou pela forma. Poderíamos chamar de especialmente conteudistas os textos sobre o Vasco e o Cruzeiro, ambos encorpadíssimos, recebendo cada um deles dois lautos capítulos. Em ambos os casos, Capelo foi mais que um consolidador de fatos e um organizador crítico e cronológico.

No clube carioca, o autor fez uma saborosa entrevista com o capo di tutti il capo Eurico Miranda, já então bem mais pra lá do que pra cá. Em Minas, Capelo participou de uma verdadeira devassa que desnudou o esquema de corrupção dos dirigentes cruzeirenses.

Aliás, em tempos mais modernos, corrupção se torna a pauta dominante e infesta toda a segunda parte do livro. O Internacional é um dos exemplos - e a sacada escolhida para abrir o capítulo foi, no mínimo, sarcástica. Certamente, divertida.

Particularmente, achei um tanto quanto enfadonhas as pautas escolhidas para Grêmio e Bahia, não obstante a pertinência de toda a construção do Clube dos 13, presidido pelo gaúcho. É aquele trecho do livro que lembra a subida da Consolação, na São Silvestre. É respirar fundo e manter a passada.

Os dois capítulos sobre o Corinthians trazem o desmonte deste mesmo Clube dos 13 e a construção do estádio de Itaquera, temperados pelo jogo de interesses e por propina com direito a cadeia. Em ambos os casos, André Sanchez é peça principal. Capelo brilha na entrevista do dirigente. 

O capítulo sobre o Palmeiras é bom, mas o autor derrapa um tanto na sua reverência ao ex-presidente palmeirense Paulo Nobre. Tem trechos que parecem ter sido escritos pelo próprio dirigente. Se cada capítulo fosse um instrumento e o livro uma orquestra, neste capítulo vários parágrafos deram uma desafinada.

O capítulo final, sobre o Flamengo, é também uma ode ao profissionalismo e à era moderna do futebol. Não à toa, os textos seminais Soccernomics e A bola não entra por acaso são dados como referência. Para quem gosta de números, os comparativos de receita através dos anos, ombreados aos dados de transmissão e percentual de vitórias dos times de maior folha, são imperdíveis.

Capelo não é nenhum oráculo. No seu cotidiano de jornalista, dá suas bolas fora. Duvidava que surgiriam investidores para colocar dinheiro bom num futebol ruim. Principalmente em clubes podres, como aparentava ser o estado daquele pelo qual eu torço.

Mas para um rebaixado de Minas surgiu um ex-craque supostamente endinheirado. Em seguida, do nada, surgiu um empresário americano para injetar grana em um clube morto-vivo do Rio de Janeiro. Capelo deu a mão à palmatória e escreveu diversos artigos exaltando o newcomer.

Mas essas são passagens que, aqui, se deram fora das quatro linhas. Não estão no livro, que eu acusei  no início de ser desigual - e é. Mas isso não o desabona. É desigual porque centenas de suas páginas são certamente as mais importantes já escritas sobre o futebol brasileiro. Seria exigir demais que todas as linhas fossem do mesmo nível. 

Se O negro no futebol brasileiro é um título lendário e que ganhou um lugar irremovível no panteão do jornalismo esportivo, eu, para não movê-lo, o deixaria circunscrito ao período romântico do esporte. O novo grande texto da história do futebol no Brasil tem a assinatura de Rodrigo Capelo - e atende pelo título O futebol como ele é

Quem leu os dois, sabe. E aí, amigo Nelson, até os idiotas da objetividade têm que concordar.

Editora Grande Área, 588 páginas | 1a edição, 2021

P.S.: Capelo puxa a brasa mais para algumas sardinhas do que outras. O Botafogo não foi tratado com especial generosidade. Alguns outros foram. Mas, botafoguense escaldado, não estranhei. Tá dentro do padrão. É mesmo difícil para quem não é Botafogo entender o que é o Botafogo.

P.S.2: Por conta do projeto 2022 do blog (52 semanas alimentando um mesmo tema), retroagi algumas semanas na data de postagem que aparece no post. A publicação se deu de fato alguns meses depois.

Sidney Puterman

Some say he’s half man half fish, others say he’s more of a seventy/thirty split. Either way he’s a fishy bastard.

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