"Como curar um fanático", por Amós Oz

terça-feira, dezembro 28, 2021 Sidney Puterman


Hoje, 28 de dezembro, completam três anos que este escritor israelense nos deixou. Não foi uma perda qualquer. Em um mundo irracionalmente conturbado, Oz faz falta.

PhD em fanatismo, Amós nasceu dentro de um caldeirão étnico e geográfico, numa Palestina sob domínio britânico e que foi tomada à força pelos judeus. O conflito, que perdura há sete décadas, é prova da inamovível resistência árabe à ocupação judaica. Mas não pense que o radicalismo é unilateral - de ambos os lados há fanáticos. Em todas as esquinas de Jerusalém e de todas as origens.

O próprio autor foi um deles, e, portanto, escreve com conhecimento de causa.

Falando em fanatismo e em fanáticos (neste nosso tempo de intolerância coletiva, qual de nós não conhece um?), o convicto raivoso, que antes era artigo raro, agora é figurinha fácil. Todo lugar tem vários, xingando empolgadamente os seres humanos ao redor.

Por isso, neste nosso contexto atual, e com este título - "Como curar um fanático" - pra lá de provocativo, foi como se o livro saltasse das prateleiras direto para as minhas mãos. Exibicionismo aprovado, pois, com a assinatura de Amós, foi naturalmente bem recebido. Qualquer um sabe que beber das boas fontes alivia e ler os bons autores alimenta.

Oz tem um texto limpo e profundo. Que invade o nosso hipocampo e deixa um lastro de ponderação onde havia enfrentamento. Um discurso que alimenta o conhecimento e modula o raciocínio. É triste, reitero, que ele tenha partido, mas é revigorante saber que suas reflexões ficaram. Simples assim. Do que podemos depreender: não nos resumamos a lamentar a morte de um escritor. Leia-mo-lo.

Tanto, que melhor que comentá-lo é compartilhá-lo, para que você possa lê-lo já.

"Fanáticos não têm senso de humor, e raramente são curiosos. Porque o humor corrói as bases do fanatismo, e a curiosidade agride o fanatismo, às vezes até descobrindo que suas próprias respostas estão erradas."

"A parte mais difícil do exercício moral é a de distinguir entre as gradações do mal. Pois no mundo há muitas gradações do mal. Roubo, pilhagem e exploração são coisas muito ruins. Estupro e assassinato são piores. A opressão de mulheres, de minorias e a colonização de povos são muito ruins. Genocídio é pior."

"Tanto israelenses como árabes, de dois modos distintos, foram no passado vítimas da Europa: os árabes pelo colonialismo, o imperialismo, a exploração e a humilhação. Os judeus pela discriminação, perseguição, pelos pogroms e finalmente pelo pior genocídio sistemático da história."

"Acredito que o violento embate global de nossa época não é entre os ricos e pobres, nem é uma guerra de civilizações. Acredito que a síndrome global de nossa época é a luta universal entre fanáticos, todos os tipos de fanáticos, e o resto de nós."

"Certamente não estou sugerindo que todo aquele que eleva o volume da sua voz é um fanático. O sinal indicador do fanatismo não é o volume da sua voz, mas a atitude com as vozes dos outros."

"Muitas pessoas de grande valor através da história foram chamadas de traidores por seus próprios contemporâneos, simplesmente por estarem à frente de sua época. Não raro, um traidor é apenas uma pessoa que mudou, aos olhos daqueles que desprezam mudança."

"O verso sublime do poeta inglês John Donne diz que 'nenhum homem é uma ilha'. Ouso acrescentar que nenhum homem é uma ilha, mas cada um de nós é uma península, em parte conectado com a terra firme da família, da sociedade, da tradição, da ideologia etc e em parte sozinho e em silêncio profundo. Eu me ressinto daqueles que estão tentando nos tornar um arquipélago de ilhas isoladas, numa perpétua luta darwinista com todos os outros."

A história da família de Amós Oz sintetiza como quase nenhuma outra o curso conflituoso do século XX. Sobre a sequência dos séculos, Oz, a propósito, tem uma frase desconfortável.

"Quem poderia imaginar que depois do século XX viria logo a seguir o século XI?"

"Quando meu pai era um menininho na Polônia, as ruas da Europa estavam cobertas de grafites, 'Judeus, voltem para a Palestina". Quando meu pai revisitou a Europa cinquenta anos depois, os muros estavam cobertos com novos grafites, 'Judeus, fora da Palestina".

"O pacifista europeu sustenta que o mal definitivo é a guerra. Em meu vocabulário, a guerra é terrível, mas o mal definitivo é a agressão."

"O conflito israelo-palestino, a luta árabe-israelense, acontece entre duas vítimas. Duas vítimas do mesmo opressor. A Europa, que colonizou o mundo árabe, o explorou, o humilhou, tripudiou sobre sua cultura, o controlou e usou como um playground imperialista, é a mesma Europa que discriminou os judeus, os perseguiu, os atormentou e por fim os assassinou em massa num crime de genocídio sem precedentes."

Mesmo que o olhar agudo de Oz esteja costumeiramente circunscrito ao fanatismo no Oriente Médio e às suas raízes europeias, os termos que apresentou anos atrás vestem como uma luva também em outras regiões do mundo, mesmo em outras épocas. Como aqui e agora, por exemplo. 

"Conformidade e uniformidade sao formas amenas mas amplamente difundidas de fanatismo. Devo acrescentar que com frequência o culto da personalidade, a idealização de líderes políticos ou religiosos, o culto de indivíduos carismáticos podem bem ser outra forma difundida de fanatismo."

A carapuça cabe em diversas circunstâncias e países. Ainda mais que ele destaca os "regimes totalitários, ideologias mortíferas, chauvinismo agressivo", entre outros, como características recorrentes do fanatismo. E toca em um ponto que raramente vemos abordado:

"Talvez o pior aspecto da globalização seja a infantilização da humanidade."

Fato é que, se para este ano que inicia agora quisermos tirar dos seus apontamentos de então algum que nos sirva para uso imediato, não teremos dificuldade em encontrar boas sugestões.

"Eu nunca subestimo a visão curta e a estupidez das lideranças políticas de ambos os lados."

"Traidor, aos olhos do fanático, é qualquer um que passa por uma mudança."

Seu pragmatismo traz um conteúdo prático que, se compartilhado pelos líderes envolvidos, poderia economizar tempo e proporcionar conquistas concretas para as populações atuais. Se é que soluções práticas sejam mais sedutoras do que um confronto atávico.

"A batalha entre judeus israelenses e árabes palestinos não é uma guerra religiosa por essência. Basicamente, não é mais do que um conflito territorial quanto à dolorosa questão 'de quem é esta terra?' É um embate entre o certo e o certo, entre duas poderosas, muito convincentes reivindicações do mesmo e pequeno país. Não uma guerra religiosa nem uma guerra de culturas nem uma discordância entre duas tradições, mas apenas uma disputa imobiliária sobre a quem pertence esta casa. E eu acredito que isso possa ser resolvido."

Amós Oz, escritor vencedor de inúmeros prêmios internacionais, traduzido em dezenas de idiomas, indicado ao Prêmio Nobel de Literatura em 2002 e fundador do movimento Paz Agora (com raízes no Brasil, e que você pode acessar em https://www.pazagora.org/historia/), partiu em 2018 após décadas de dedicação a um estado de paz que nunca atingiu.

Este livro é um apanhado de cinco momentos diferentes: uma palestra, proferida logo após o ataque terrorista em Paris, em novembro de 2015; dois ensaios apresentados na Alemanha em 2002; um artigo publicado no The Guardian em outubro de 2003; e uma entrevista feita em 2012.

Uma década e meia de reflexões e ensinamentos, condensados em uma pequena publicação. Se não  por muitas outras razões, só o quão premonitório ele foi já justifica largamente a sua leitura.

Companhia das Letras, 103 páginas

Sidney Puterman

Some say he’s half man half fish, others say he’s more of a seventy/thirty split. Either way he’s a fishy bastard.

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