"Império da dor", por Patrick R. Keefe

terça-feira, maio 14, 2024 Sidney Puterman


O "Império da dor" é um manual de redação. Uma aula sobre como tornar interessante uma estória chata e intrincada sobre um produto farmacêutico. Sobre como voltar no tempo e contar a trajetória de quatro gerações de uma mesma família, incluindo as amantes, sobrinhos e bisnetos. 

O livro, a propósito, é sobre o OxyContin. Conhece? Eu nunca tinha ouvido falar. Mas não sou medida para isso - tenho aversão a remédios e curandeiros. Soube aqui que é um medicamento bastante receitado mundo afora. Exagerada e criminosamente, como revela o autor, Patrick Radden Keefe.

O produto foi lançado nos anos 90 nos Estados Unidos e já gerou dezenas de bilhões em vendas. Trinta e cinco bilhões de dólares, para ser mais exato. É um opióide à base de oxicodona. Seu uso continuado é suscetível a provocar dependência química. Pode também levar a óbito. 

Isso não o tirou do mercado. Embora alvo de processos e ações judiciais há mais de duas décadas, a droga permanece à venda em muitos países. O Brasil é um deles. Digitando o produto na internet, pipocam ofertas pelas principais farmácias online. A Drogaria São Paulo anuncia a caixa da dose de 10mg, com 14 comprimidos, por R$ 191,14. A Panvel oferece por R$ 188,83 (mas se você aderir ao "Programa de Laboratório", o preço da caixinha com 14 unidades sai pela pechincha de R$ 151,06).

As drogarias informam que o produto é vendido somente sob receita. E informam que o OxyContin é "indicado para o tratamento de dores moderadas a severas, quando é necessária a administração contínua de um analgésico, 24 horas por dia, por período de tempo prolongado".

O problema é que a prática desmente a bula. O livro publica pesquisas que demonstram que a administração contínua do medicamento leva a uma necessidade de doses cada vez maiores - de 10mg para 20mg, e daí para 40mg, e daí para 80mg. Tudo em busca do mesmo efeito inicial.

Parece droga, né? Pois é.

O uso continuado exige o aumento da dosagem. O aumento da dosagem leva à ineficácia do produto. E este uso continuado, em doses progressivamente crescentes, provoca o vício no princípio ativo do medicamento. Como resultado, uma parcela dos consumidores morre.

No site "Consulta Remédios", a posologia indicada é a de 12 em 12 horas. Mas não diz que, além de viciante, o efeito do comprimido não dura todo o período apregoado. Se limita a ressalvar que o produto é "um opioide que atua como analgésico com ação semelhante à da morfina".

A Purdue Pharma, a empresa farmacêutica norte-americana que desenvolveu o produto e faturou bilhões de dólares comercializando-o, foi encostada na parede e, após vinte anos, optou pela falência. Aqui, porém, você ainda pode comprá-lo. Basta uma receitinha.

A receita, vale destacar, é o x do problema. Como Keefe nos conta, nos EUA dezenas de clínicas se tornaram fábricas de prescrição de receitas. Muitas foram investigadas, seus médicos-donos condenados e tiveram que fechar as portas. Não foi suficiente. Sempre havia um novo lugar para adquirir o produto. Criou-se até um mercado paralelo. Tráfico. 

E por que toda essa demanda? O que o OxyContin tem de especial? É que o remédio dá barato. É derivado do ópio, que é extraído da papoula. Sua ingestão entorpece, alucina, vicia e mata.

Não basta, entretanto, tomar o remédio para sentir o barato. Você tem que triturá-lo e cheirá-lo. Porque o pulo do gato da Purdue estava aí. Ela criou uma cápsula ao redor do comprimido de oxicodona. A cápsula impedia a absorção imediata da substância. Ela era lentamente liberada. 

Ingerida da forma correta, ela não dá onda; mas vicia mesmo assim. Ela é um remédio para a dor. Como a morfina. Você toma e a dor desaparece por algumas horas. Depois a dor retorna e você precisa tomar mais oxicodona. E, com a passagem do tempo, a dose inicial  já não é suficiente para impedir a dor. Então o paciente precisa de doses continuamente maiores. E o organismo vicia. Entra em crise de abstinência se não recebe a sua cota da droga.

Paralelamente a isso, dezenas de milhares de pessoas, centenas de milhares, descobriram que podiam se drogar sem recorrer aos traficantes. Compravam OxyContin. Esmagavam e cheiravam.

Então a empresa que produzia o medicamento era a responsável pelo vício e pelo tráfico. Partindo de uma premissa ingênua, a empresa colocou no mercado um medicamento para dor e não soube avaliar corretamente seus efeitos colaterais. Muito menos o seu uso indevido.

A solução, também ingênua, seria advertir a Purdue. Ela pararia a produção, recolheria o produto ainda disponível e indenizaria as vítimas. O problema é que não foi nada disso.

Antes mesmo de colocar o medicamento nas prateleiras, a Purdue Pharma investiu em uma mega estratégia de vendas. O foco era no convencimento dos médicos de que um opioide poderia ser uma solução honesta e sem riscos para o paciente. Campanhas milionárias de marketing e publicidade foram lançadas. Representantes de vendas enriqueceram e eram instigados a dobrar suas vendas. Médicos eram estimulados a multiplicar suas receitas. Os médicos que mais receitavam eram contratados para darem palestras para outros médicos.

A Purdue Pharma, liderada por Richard Sackler, da segunda geração da família, criou um case de sucesso comercial estratosférico.

A questão era que a ação em si era criminosa. Do início ao fim.

Como Patrick Keefe meticulosamente nos conta, já nos primeiros anos as evidências do crime começaram a surgir. Clínicas que distribuíam milhares de receitas por dia. Usuários viciados. Pacientes mortos.

Queixas, protestos, processos. Consumidores, vítimas e o sistema legal dos Estados Unidos se puseram em ação, já na virada dos anos 2000. Mas a empresa faturava mais e mais e destinava parte do seu faturamento a custear uma extensa estrutura de advogados e de autoridades corrompidas.

Enquanto essa briga se arrastou, o OxyContin permaneceu na liderança de vendas e enriquecendo a família - que, a propósito, posava há décadas como magnatas da filantropia. O nome Sackler estava em universidades e galerias de arte mundo afora. Já a empresa farmacêutica mantinha o nome da época em que fora comprada por Arthur Sackler. Purdue Pharma. Era como se nem se conhecessem.

Mas, ao longo dos anos, as rotas de fuga à responsabilidade foram sendo mapeadas e cortadas. E, à medida em que o cerco se fechava sobre a farmacêutica, coagindo suas possibilidades de lucro, a empresa se voltou para novos mercados. Para países em que a legislação não proibisse sua comercialização. Criou-se uma multinacional para representar o produto, a Mundipharma.

O Brasil é também um destes mercados.

Em sites brasileiros de vendas de remédios, você pode acessar um resumo sobre a companhia. Em um deles está escrito que "na década de 50, membros da família Sackler adquiriam a Purdue, dando início a (sic) história da marca. Porém, foi apenas em 1972 que a primeira Mundipharma foi de fato fundada, na Suiça. Desde então, ela vem se desenvolvendo cada vez mais e lançando no mercado medicamentos e tratamentos que têm como objetivo aumentar a qualidade de vida dos seus consumidores".

Segundo a justiça americana, porém, o OxyContin não "aumenta a qualidade de vida dos seus consumidores". Para a justiça dos EUA, o OxyContin vicia e mata.

Se por um lado o trabalho de Patrick Radden Keefe é exemplar, por remontar às origens da família e esmiuçar a trajetória profissional do fundador da dinastia - Arthur Sackler -, por outro é frustrante que, até a publicação do livro, os Sackler tenham escapado impunes.

É valiosa demais, entretanto, a contribuição do autor para a desmistificação da indústria farmacêutica e da atuação "desprendida" e "desinteressada" dos profissionais de medicina. Persiste até uma inocência coletiva sobre esse mercado. Como em qualquer outro setor da economia, há bons e maus profissionais. O ideal é que respeitemos os primeiros e rejeitemos os últimos. Mas há que saber discernir entre eles. E, para isso, o livro de Keefe é uma boa ferramenta. 

Não posso deixar passar em branco a série homônima da Netflix, "Império da dor". Entendo que os roteiristas fossem instados a criar uma forma atraente e "moderna" de contar a história. Optaram por uma sátira mezzo documental mezzo cômica, se valendo de clichês contemporâneos da indústria do entretenimento. Ok. Uma série de streaming é um produto. 

Como o OxyContin.

Editora Intrínseca, 543 páginas  |  1a edição  |  Copyright 2022  |  Tradução Bruno Casotti

Título original:  "Empire of pain"



Sidney Puterman

Some say he’s half man half fish, others say he’s more of a seventy/thirty split. Either way he’s a fishy bastard.

0 comentários: