"A pior viagem do mundo", por Apsley Cherry-Garrard
A viagem faz jus ao título. O autor não exagerou. Já li uma penca de relatos de viagem. De exploradores a fugitivos, nas piores condições possíveis. E nenhuma delas foi pior que esta.
O livro traz o dia-a-dia da última expedição do capitão Robert Falcon Scott à Antártica. Estávamos no início do século passado. O último bastião do mundo ainda por desbravar era o Polo Sul. Nenhum ser humano jamais pisara nele. Scott estava em sua segunda tentativa de ser o primeiro a fazê-lo.
Outros haviam tentado e fracassado. Alguns dos que tentaram retornaram vivos, como o próprio Scott em sua primeira expedição. Outros morreram tentando. Esta segunda viagem de Scott à Antártica acontecia em simultaneidade com a viagem de um outro explorador, o norueguês Roald Amundsen, que "fingiu" ir para o Ártico, mas foi para a Antártida. Tenso, o planeta acompanhava pelos jornais a "corrida ao Polo". Inglaterra versus Noruega.
Imagine o frisson.
Mas não vou criar aqui um mistério que o livro não provoca. Até porque a edição não era o primeiro relato publicado sobre a viagem de Scott - talvez fosse o terceiro ou quarto. Muitos dos sobreviventes da expedição escreveram seus textos, inclusive reproduzindo parte de relatos já publicados.
Então, quando este livro foi impresso, falava sobre um acontecimento de extrema repercussão e notório conhecimento. É como qualquer livro no Brasil sobre a Copa de 50. Não há suspense. O Brasil perde no final. Assim, o livro começa relatoriando as muitas razões para o fracasso da operação. A perda da corrida ao Polo para Amundsen. A trágica morte de Scott e seu grupo no retorno.
Depois de muito debate sobre as falhas, além de críticas à Scott e à maneira como a expedição foi montada, é que finalmente entramos no livro de Cherry-Garrard. Vamos então saber porque o autor foi o último dos integrantes selecionados para a viagem.
E que seleção. Centenas de pessoas se candidataram a acompanhar o célebre capitão Scott. A grande maioria foi sumariamente vetada. As vagas eram poucas. Num átimo os eleitos já estavam praticamente definidos. Cherry-Garrard, o autor, era um jovem nobre inglês, estupidamente rico. Fez de tudo para ser admitido no grupo de desbravadores. Fez contatos. Mandou cartas. Conseguiu uma entrevista pessoal. Se comprometeu a um donativo milionário.
Nem assim. Foi barrado.
Como um autêntico nobre inglês, mesmo desprezado, Cherry manteve de pé sua oferta de donativo, a despeito de ter sido rejeitado. E, como um autêntico capitão inglês, Scott ficou sensibilizado com a nobreza da atitude de Cherry, e finalmente o admitiu naquela que seria a pior viagem do mundo.
Foram mesmo (no plural, foram mais de uma). Reitero que nunca li percursos piores. Posso garantir.
O livro, entretanto, não entrega, em termos de suspense (que não faltou na epopeia em si) o que se esperaria do texto. É sobretudo um meticuloso relato de viagem, fiel ao estilo da época.
Com longas transcrições dos diários escritos por diversos dos membros do grupo, além dos diários do próprio autor, lidamos com uma interminável sucessão de dias exigentes, extenuantes e perigosos. Uma rotina sem descanso descrita de forma minuciosa.
Acordar semi-congelado. Desarmar o acampamento por duas horas sob temperaturas inferiores a 50 graus negativos. Avançar sem enxergar nada, seja na escuridão da noite antártica ou na brancura do dia antártico. Cair ininterruptamente em fendas no gelo e ficar pendurado em um abismo sem fundo, preso por tirantes de couro aos colegas na superfície. Subir e descer geleiras sem fim. Enfrentar nevascas constantes. Armar o acampamento. Se alimentar de paçoca de carne seca, biscoito duro e carne de pônei (os animais que carregaram parte do peso foram aos poucos mortos para virarem ração de campanha) por meses a fio. Dormirem ensopados e acordarem semi-congelados.
Que programa. Não poupava nem o cara que aniversariava no Dia de Natal.
"Um dia de Natal muito bom. Percorremos quinze milhas sobre uma superfície muito variável. Primeiro, apresentava muitas fendas e estava bastante ruim. Era frequentemente dificil decidir por onde abrir caminho. Tive a infelicidade de cair de corpo inteiro numa fenda. Não era certamente uma sensação muito agradável, especialmente no dia de Natal e, ainda por cima, meu aniversário. Enquanto girava no espaço, levei alguns segundos para recompor meus pensamentos e ver em que tipo de lugar eu me encontrava. Não era absolutamente um lugar encantador. Quando me refiz, ouvi alguém chamar lá de cima: 'Voce está bem, Lashly?'. Estava bem, sem dúvida, mas não me agradava nem um pouco essa história de ficar balançando no ar preso a um pedaço de corda, especialmente depois de olhar ao redor e perceber que tipo de lugar era aquele. Parecia ter uns quinze metros de profundidade, 2,5 metros de largura e 36,5 metros de comprimento. Tive bastante tempo para obter essas informações, enquanto ali balançava dependurado na corda."
O relato de William Lashly foi mais bem-humorado do que a tônica do livro, que é mais descritivo do que irreverente. E que, na verdade, se dedica a relatoriar as péssimas condições enfrentadas pelo grupo (eu disse péssimas? leia tenebrosas) ao atacar uma natureza desconhecida e hostil.
E é da logística desse ataque que trata o livro, em última análise. Compartilho com vocês o que me parece ter sido a expedição. Do ponto de partida no continente antártico, da Ilha de Ross (que já seria um destino no mais absoluta raio-que-o-parta para 99,99% dos mortais comuns e jamais um mero ponto de partida) até o ambicionado Polo Sul a distância era de mais de 1.500 km.
Para voltar vivo, mais de 3.000 km. Scott não voltou vivo, mas andou uns 2.800 km até morrer.
A racionália, então, do próprio capitão Scott, antes da partida, era como chegar ao Polo Sul - seu grande objetivo - e retornar razoavelmente incólume da empreitada, para desfrutar da glória. A logística definiria como chegar até lá (andando), como se alimentar e como superar o frio e os obstáculos geográficos de um território, gigantesco e letal, ainda por desvendar.
Que dizer? Sucumbo ao trocadilho infame. Que gelada.
Você começa andando sob um frio de trinta graus negativos pela Barreira de Ross, um interminável campo de gelo com 700 quilômetros de extensão no seu ponto mais estreito, depois enquanto esfria você sobe 200 quilômetros Geleira Beardmore acima, com formidáveis 2.800m de altura, e aí percorre 600 quilômetros sobre um platô congelado. Neste ponto, no meio do nada, igualzinho a todo o nada que você vem desbravando no caminho, a medição diz que você está no Polo Sul.
Parabéns, você venceu. Game over.
Over? nada. Voltar vai ser mais difícil do que foi chegar. Embora geleira abaixo seja - às vezes - mais fácil que geleira acima, o fato é que se arrastar subnutrido e enregelado quatro longos meses sobre o gelo, cuidando apenas de tentar andar em linha reta, comer, dormir e acordar para andar mais, fez com que as forças fossem abandonando o grupo.
Não à toa. Cada dia trazia uma sucessão de desafios fatais. Se a maioria das pessoas jamais enfrentou adversidades deste calibre ao longo de toda uma vida, que dirá ao longo de um único dia.
Mas, noves fora todos os perrengues possíveis - na verdade, os piores perrengues que o ser humano pode encontrar em uma vastidão congelada, ao longo de meses ininterruptos de viagens a pé sobre todas as variantes de gelo existentes, embaixo, em cima, ao lado, por fora e por dentro -, o livro se resume a descrever a execução da logística empregada.
Como chegar a um lugar que nenhum ser humano jamais foi, enfrentando uma topografia que nenhum ser humano jamais pisou, caminhando por 1.500 km (e tendo que achar a trilha no gelo duro para voltá-los), sem nenhum ponto de suporte ou reabastecimento? Impossível. Portanto, parte crucial da logística foi a criação destes pontos de abastecimento - criados na ida, para que fossem suporte no retorno.
Na viagem de Scott, estes pontos não funcionaram como deveriam. O que foi fatal.
O livro é mais longo do que suas 556 páginas indicam. Entrelinhamento estreito e fonte miúda. A fonte não só é pequena, como todas as vezes em que outros relatos foram transcritos, o foram tipograficamente com uma fonte menor, digna de uma bula de remédio.
E são, na verdade, muitos livros, encadernados em um só. Porque tratam de diversas expedições, realizadas em uma "mesma" viagem, e descritas por inúmeros viajantes.
Apsley Cherry-Garrard, o autor do livro, permaneceu por três anos na Antártida e fez cinco longas expedições neste período. Mas é ele quem narra todas as outras expedições em que não esteve, reproduzindo trechos de outros diários. Entendo a dificuldade. Mas uma melhor organização contribuiria para a compreensão ideal do conteúdo.
Me facilitaria escrever sobre o livro, também. Suas idas e vindas me deram um nó aqui.
Houve dezenas de momentos de enorme tensão e complexidade, nem todos bem resolvidos pelos participantes (que, nos piores casos, morreram congelados). A narrativa, porém, boa parte do tempo é inchada com descrições comezinhas; e se torna lacônica nos momentos capitais. Estilo?
O excessivo detalhismo de cada dia de jornada, com diversas mensurações de temperatura, distâncias percorridas, características da superfície, variações climáticas etc empastelam o relato e o tornam enfadonho para um leitor comum. Mas, sem dúvida - como já comentei -, para viajantes e expedicionários é um material e tanto.
Não à toa entregaram o prefácio da edição brasileira para o Amyr Klink.
As páginas finais são reservadas para os diários de Scott e os demais componentes do Grupo Polar. Todos irão morrer na tentativa de retorno à base. É a grande aventura, juntamente com a Expedição de Inverno, descrita na primeira metade do livro (em uma insólita busca ao ovo do pinguim-imperador).
Vale mencioná-la. A Expedição de Inverno contou com três integrantes, entre eles o autor. O grupo viajou na escuridão permanente do inverno antártico, com temperaturas sempre abaixo de quarenta graus negativos, mas em boa parte do tempo próxima de sessenta graus negativos, apostando que do outro lado, no Cabo Croizier, haveria pinguins-imperadores e seria possível coletar alguns ovos para estudo científico.
Estiveram a um triz da morte diversas vezes. Após quatro semanas de viagem (tão ruim que o autor confessa que pediu para morrer), desceram um abismo de gelo e conseguiram pegar três ovos. Na subida, o autor quebrou dois (acabaram na panela). Restou um, o prêmio de consolação para a viagem de três semanas de volta.
A pé, driblando penhascos, caindo em crateras, escalando geleiras e carregando um ovo.
Já o Grupo Polar contou com doze integrantes, mulas, cães e algumas toneladas de material e comida. À medida em que avançavam, iam criando depósitos com alimentos. O grupo se dividiu em três equipes. Uma primeira equipe voltou do fim da Barreira, a segunda equipe avançou até metade do platô e a terceira equipe, com um homem a mais do que o previsto (foram em cinco, quando deveriam ter seguido a previsão original de irem apenas quatro), seguiu rumo ao Polo Sul.
Lá chegando, descobriram que o norueguês havia chegado um mês antes. E deixado bilhetinhos.
A volta foi catastrófica. O homem a mais não tinha esquis (pois sua subida ao platô não era prevista) e atrasou o grupo. Cinco homens comendo a comida planejada para quatro também não ajudou em nada. O excesso gerou atraso e o atraso expôs o grupo a um tempo mais invernal. Uma falha na conservação do óleo nos depósitos deixou o grupo sem fogo no caminho de volta.
O primeiro dos cinco a morrer tinha desatado os tirantes do trenó à tração humana. Já não vinha nada bem. Para não retardar o grupo, parou para reajeitar seus esquis, dizendo que depois os alcançaria. Como não apareceu mais, voltaram e o encontraram morto, de quatro. Estava engatinhando.
O segundo era o que fez todo o trajeto sem esquis. Estava semi-cego e sem dedos. Seu quadro era tão terminal que uma tarde saiu da barraca, em meio a uma nevasca colossal, e disse aos três que ficaram: "Vou ali e talvez me demore um pouco".
Os três últimos, entre eles o Capitão Scott, morreram algumas dezenas de milhas depois, dentro da própria barraca, em seus sacos de dormir. Sem comida, sem fogo e sem condição de avançar em meio às tempestades de neve que duraram dias.
Cherry-Garrard escreve em retrospectiva, dez anos após os eventos, e analisa o que deu errado na expedição ao Polo. Sofre por não ter podido evitar a morte de Scott e dos demais companheiros - que morreram relativamente próximos do acampamento-base, depois de terem caminhado por dois mil e oitocentos quilômetros.
O autor poderia tê-los salvo. Havia feito expedições de busca, sem sucesso. Mas, sem que o soubesse, por uma macabra ironia do destino, havia chegado muito perto deles. O sonhado resgate por pouco não aconteceu. Bastaria ter avançado um pouco mais, que ele teria salvo o capitão Scott. Por toda a vida carregou o peso deste quase. O próprio livro "A pior viagem do mundo" foi escrito numa tentativa de explicar para a posteridade o que se passou naquela expedição desgraçada.
A posteridade foi ainda mais rigorosa com Scott. Hoje se acredita que ele cometeu graves erros de planejamento, que condenaram a expedição ao fracasso e seus participantes à morte.
Companhia das Letras, 556 páginas | 1a reimpressão | Copyright 1922 | Trad Rosaura Eichenberg
Título original: "The worst journey in the world"
P.S.: Na ilustração, seguro uma capa "alternativa". Porque a capa original, de Helio de Almeida, é um desserviço. Apresenta o título em quatro linhas, em três cores (vermelho, cinza e preto), em dois tamanhos de fonte e com dois fundos (preto e branco). O cara deve ter pensado: "Para a pior viagem, a pior capa". Desculpaí, mas não vou postar ela não.
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