"Qué pasa, Argentina?", por Janaína Figueiredo

terça-feira, maio 07, 2024 Sidney Puterman


Todo brasileiro carrega algum sentimento em relação à Argentina. Creio até que a alma portenha faz parte do nosso imaginário coletivo. Para o bem ou para o mal. Jamais indiferentes. Os vemos atrevidos, sedutores, milongueros. E também marrentos, preconceituosos, megalomaníacos...

Acho que dá para listar aí mais uns quinze adjetivos. Escolha os seus. Por isso mesmo, ler sobre a Argentina sempre me atraiu. Pena que existam poucas obras para preencher essa lacuna no nosso (des) conhecimento. Eu mesmo já li há alguns anos uma delas, do ótimo Ariel Palacios. Agora surgiu mais esta, de Janaína.

A autora tem credenciais para destrinchar para o leitor tupiniquim a complexidade argentina. Brasileira, carioca de Santa Teresa, filha de jornalista, mudou para Buenos Aires aos nove anos. Casou com um argentino, é mãe de um casal de argentinos e é correspondente de um grande jornal brasileiro.

Ou seja, está com um pé em cada lado. Ops, talvez mais para lá do que para cá...

Não importa. Ela resume sua história em um dos capítulos do livro (de onde pesquei a bio acima). A leitura nos ajuda a entender em detalhes seu vínculo com este estranho país ao sul do continente. Estranho, sim, pois, como ela própria nos lembra, "existem três tipos de países no mundo: os desenvolvidos, os subdesenvolvidos e a Argentina".

Não julgue que há algo diferente na água que eles bebem - diferente lá é o povo. Ela cita o historiador argentino Tulio Halperín Donghi, que definiu os argentinos como maníaco-depressivos: "Temos duas horas de euforia por dia e catorze de depressão. O resto... Bom, no resto do tempo dormimos - mal".

Embora sobrem coisas esquisitas sobre os nuestros hermanos, a autora, porém, passa ao largo da tradicional lista de excentricidades folclóricas. Cita uma ou outra, mas foge dos estereótipos. Prefere contextualizar a ambiguidade argentina, um povo que vive falando mal de si mesmo; mas que, ao mesmo tempo, rebate qualquer estrangeiro que os critique.

Se somos diferentes neste pormenor, ela mostra que em muitos outros somos beem iguais...

Noves fora os inevitáveis comparativos, não faltam bons insights. Para quem se surpreende com a imponência da capital Buenos Aires, vemos que do século XIX para o século XX o país acumulou 35 anos de crescimento consecutivo a uma taxa anual de 6%. Mucha plata. Não à toa muitos emigrantes europeus viviam um dilema hoje impensável: emigrar para os Estados Unidos ou Argentina?

Uma dúvida que hoje soaria como piada. A jornalista confirma uma impressão que sempre tive, ao dizer "a Argentina poderia ter sido uma potência global se não tivesse dado tantos tiros no próprio pé". Mas onde foi que se deu este desvio de rota?

É aí que entra a parte mais elucidativa da obra: uma longa e paciente digressão sobre a sobressaltada política argentina. A autora nos conduz ao que talvez seja o cerne da questão, nos idos da década de 40. Mais precisamente, ao golpe militar de 1943. É quando pela primeira vez ouvimos falar de um dos integrantes do movimento golpista, que foi sucessivamente nomeado secretário de Trabalho, ministro de Guerra e, por fim, vice-presidente. Um tal de Perón.

Se forasteiros curiosos querem compreender melhor a trilha acidentada que leva ao coração argentino, ela passa por este sujeito aí. A partir dele, nada mais foi o que era no futuro do país. Três anos depois, ele ascenderia à presidência e a Argentina nunca mais seria a mesma. Se há alguém responsável pelo carma local, ele tem nome e sobrenome. Juan Domingo Perón.

Perón, a essa altura do campeonato? O cara não está morto e enterrado há mais de meio século?

Pois é. Mas sua seita e seus cardeais estão vivinhos da silva. Esteja certo de que, para compreender a Argentina, é preciso entender o peronismo (ainda que, se ele fosse inteligível, certamente a Argentina não estaria no beco em que está e teria provavelmente cumprido a profecia de ser uma milionária franquia europeia na América do Sul).

A jornalista nos ajuda a acompanhar a transformação do país ao longo dos anos, sob as sombras carregadas da política e da mitomania local. E a perceber como a derrocada argentina permanece inextrincavelmente ligada a Juan Domingo Perón e tudo o que o cerca. É quase uma fé.

"A conexão dos militantes peronistas com seus líderes é considerada religiosa por cientistas políticos", esclarece a jornalista. Pode apostar. Leigo que sou, estou de acordo. Estive mês passado na Patagônia argentina e me surpreenderam os memoriais públicos, ornados com flores frescas, dedicados a Perón e à Evita. Se morreram, parece que foi anteontem.

Não acredita em Janaína? Então vá pesquisar. Quem se aprofunda na história argentina percebe logo que há o antes e o depois de Perón. E, se muitos forasteiros querem compreender melhor este passado ainda tão presente, os nativos também. A ruptura entre o viés de potência continental das primeiras três décadas do século XX e o confuso labirinto sócio-econômico que o país se tornou nos últimos três quartos de século é tema ininterrupto de debate - entre os próprios argentinos.

(Que, historicamente, estão há pouco por lá. Janaína destaca que em 1914, logo após o desembarque de 4 milhões de europeus, um em cada três habitantes da Argentina não havia nascido no país. Uma nação de imigrantes que, com a Europa metida em duas guerras fratricidas, se tornou um dos países mais pródigos do planeta; mas que não conseguiu se sustentar no topo.)

É fato. Ela não cita, mas eu já li em algum lugar que os franceses, no início do século passado, quando queriam enaltecer a riqueza de alguém, diziam "rico como um argentino".

De novo, a comparação entre o passado promissor e o presente árido é dolorosa. Por meio deste livro de Janaína, entretanto, conseguimos enxergar o cenário com mais de nitidez. Qué pasa? A jornalista nos reitera a impressão de que a fronteira entre as duas metades (pujança e derrocada) é o peronismo. Seria esta uma definição simplista? Talvez. O - em alguns momentos - didático texto de Janaína Figueiredo só veio a confirmar minha percepção.

Como ela mesma enfatiza, não há política argentina sem a participação de Juan Perón, e do seu subsequente peronismo, desde os anos 40 do século passado. E isso vem até hoje.

"O peronismo conta com um controle social da população que nenhum outro partido político conseguiu ter até agora. Seu problema são as divisões internas, que começaram quando Perón ainda era vivo", esclarece a jornalista. "As facções vivem uma permanente guerra pelo controle do movimento".

Ela cita um empresário local que convive com o peronismo há setenta anos, com farto conhecimento de causa. "Os peronistas são gerenciadores de poder, mas não sabem administrar um país".

Acho que aqui a gente não tem dificuldade de entender como isso funciona, ops, não funciona.

Vimos com ela também que o peronismo pode ser de "direita", com Menen, ou de "esquerda", com os Kirchner. Ainda que rotulá-los sob um espectro ou outro do grande arco político possa não agradar a gregos nem troianos, constatamos que a corrupção é um ingrediente presente nos dois lados.

Para ilustrar, a autora traz depoimentos dos populares, que convivem diariamente com as denúncias de corrupção. "Cristina roubou, sim, mas tenho certeza que um dia ela devolverá tudo ao povo", confia uma seguidora, cuja fé idólatra segue imune ao ato (o roubo) em si.

Lá, como cá, me parece que o povo não se importa com este pormenor. Pobre América Latina.

Ela mesma se pergunta: "O peronismo pode desaparecer?" Para concluir que "isso ainda parece algo difícil de acontecer. O que poderia surgir seria uma divisão permanente de suas alas antagônicas, e esse poderia ser o começo do fim do peronismo tal como é conhecido há oitenta anos".

Mas Figueiredo vai além do universo político. Fala de cultura, cinema, carestia, pobreza. Da obsessão portenha pelos psicólogos e pelas terapias. Fala inevitavelmente de futebol (mas seriam evitáveis os erros factuais cometidos; faltou tenência ao revisor) e das idiossincrasias regionais.

A Argentina é intrincada, enigmática e sofrida. Nem tudo Janaína esclarece, mas um tanto ela clareia - pero no mucho. Por lá, o céu é sempre cinzento, como lamenta um argentino emigrado:

"Muitos perderam a esperança de que algum dia o país mude, tornando-se um país normal".

Globo Livros, 190 páginas  |  1a edição  |  Copyright 2023

Sidney Puterman

Some say he’s half man half fish, others say he’s more of a seventy/thirty split. Either way he’s a fishy bastard.

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