"Viagem ao Volga", por Ahmad Ibn Fadlãn

terça-feira, janeiro 21, 2020 Sidney Puterman

Uma epopeia. Imagine você ser convidado para uma travessia por culturas pré-medievais como nunca antes haviam sido descritas. Este é o ingresso que vem junto com o milenar "Viagem ao Volga". Um diário de viagem minucioso, que passou séculos ignorado. Não mais. Agora esta joia está impressa e disponível. Seu autor é um árabe, emissário do califa ao rei dos eslavos. Era no tempo em que o império ficava no deserto. A Europa era o atraso e a barbárie. Mas havia negócios a fazer - quando não? A viagem da qual o árabe Ahmad Ibn Fadlãn dá pormenores aconteceu há 1.200 anos. Sua missão era levar recursos financeiros para a construção de uma mesquita, um minarete e um forte em uma região não-islâmica, visando defender os eslavos dos khazares (que eram turcos convertidos ao judaísmo). Ou seja, uma empreitada de imperialismo bélico, econômico e cultural nos primórdios das relações diplomáticas. Havia uma certa passionalidade por trás do arranjo, como revela o autor: "O filho do rei dos eslavos é refém do rei dos khazares. Este, quando soube que a filha daquele era belíssima, enviou um pedido de noivado, mas foi rejeitado com desculpas. Então, mandou seus homens, que a tomaram à força. Ele é judeu e ela, muçulmana. Ela morreu nas terras dele, e ele, por sua vez, encaminhou um novo pedido por outra filha. Com medo, o rei dos eslavos mandou escrever ao califa, pedindo a ele que lhe construísse um forte." O itinerário custou meses de travessia a uma delegação vinda do deserto e que superou o frio congelante do inverno russo: os valentes muçulmanos saíram de Bagdá e foram até o coração da Rússia, nas franjas de onde hoje em dia se situa Moscou. Uma expedição de prognósticos incertos. Desenhando o percurso sobre o panorama geopolítico atual, a caravana saiu do Iraque, cruzou o Irã, marchou pelo noroeste do Afeganistão, subiu o Uzbequistão, tangenciou o Mar de Aral, atravessou o Cazaquistão de sul a norte e chegou à Terra dos Rus, às margens do Volga, na cidade de Bulgár. O que ele viu e contou vale um tesouro. Se hoje, em tempos de euro, ainda há quem ache o câmbio uma matemática intrincada, imagine para os viajantes transnacionais da época. Na região atravessada por Ahmad Ibn Fadlãn, o árabe em questão, uma das moedas era o dirrã: "Notei que os dirrãs de Buhãrã são feitos de metal colorido. Alguns deles são chamados dirrãs gitrifi e são de cobre, bronze ou latão. São contados por número, sem pesar - cada 100 para um dirrã de prata. Há ainda outros dirrãs de latão - cada 40 valendo 1 danaca - e também os chamados dirrãs de Samarcanda - 6 valem 1 danaca. Notei que os dirrãs de Huwãrizm são adulterados com chumbo e falsificados em latão. São chamados de dirrãs tãzija e seu peso é de 4,5 danacas." Quê isso, ehm? Complexo. E, sem internet, dificil conferir se estão lhe roubando na conversão. A infinidade de idiomas também não é perdoada por Fadlãn: "Há uma aldeia chamada Ardakwa, cujos habitantes são conhecidos como kandalis; a língua deles parece algo como um coaxar de sapos." Fadlãn relata em minúcias os costumes dos povos (em sua maioria de origem turca) com que entra em contato. Descreve o que lhe parece estranho - e, se era estranho para ele, no ano 922 D.C., imagine para nós, em 2020. Ele segue cruzando os rios, superando o frio crescente e interagindo de forma mais ou menos amistosa com as aldeias em que pernoita. Entre os oguzes, se ressente do procedimento deselegante da mulher do anfitrião: "Fomos à casa de um homem de lá e sentamos. Sua esposa estava entre nós. Enquanto conversávamos, ela descobriu sua vulva e começou a coçá-la; nós, que olhávamos para ela, escondemos os olhos e dissemos: 'Que Deus nos perdoe!'. O marido começou a rir e disse ao intérprete: 'Diga a eles: ela se descobre na sua presença e vocês a vêem, mas ela se protege e não permite a ninguém que a toque". Se ele, que é o marido, pensa assim, então não sou eu quem vai criticar. Outro assunto polêmico, a questão de gênero (na obra intitulada "Pederastia", hoje uma denominação mal-vista), prova o livro, é milenar. Em Jurjanyia, "um homem do povo de Huwarizm passou pela tribo dos Kudarkin, o sucessor do rei dos turcos. Ficou um tempo na casa de um anfitrião para comprar ovelhas. O turco tinha um filho, um jovem imberbe, e o homem de Huwarizm ficou cercando-o e tentando seduzi-lo, até que o garoto cedeu ao que ele pedira. Nisso, o turco chegou e flagrou os dois naquela disposição. Ele levou a questão ao kudarkin, que disse: 'Reúna os turcos!', e ele os reuniu. Então, o kudarkin disse ao turco: 'Você quer que eu julgue justa ou injustamente?' Ele disse: 'Justamente.' Disse: 'Traga seu filho', e ele o trouxe. Então disse: 'Ele e o mercador devem ser executados juntos'. Contrariado, o turco disse: 'Não entregarei meu filho', ao que o respondeu o kudarkin: 'Então que o mercador também seja redimido', e assim foi. O mercador pagou ao turco em ovelhas pelo fizera a seu filho, mais quatrocentas ovelhas ao kudarkin por ter mudado a sentença, e partiu da terra dos turcos." Se o critério fosse aplicado hoje, haja ovelha. Tendo saído da terra "daqueles turcos", Fadlãn e sua caravana seguem viagem até que encontram o comandante do exército turco, Atrak, filho do Qatagãn, e são convidados a acampar com eles. Após a tradicional troca de presentes, os árabes, que declararam ter por missão levar apoio e recursos ao cunhado de Atrak, Yaltwar, são questionados. O turco estranha ser a primeira vez que uma comitiva árabe chega às suas terras e resolve confabular com seus oficiais. Segundo o autor, "dentre eles, Tarhãn era o mais nobre e importante; ele mancava, estava cego e tinha uma mão defeituosa, e disse: 'Isto é algo que jamais vimos ou de que ouvimos falar. Nunca em nossa vida, ou na de nossos pais, um enviado do califa passou por aqui. Só posso pensar que o califa armou uma armadilha, enviando-os aos khazares para que essas pessoas reúnam um exército contra nós. O certo a fazer é cortar esses enviados ao meio e tomar tudo o que eles trazem consigo" (e há hoje quem reclame do Íbis - vê-se aqui que o atendimento já foi bem pior). Mas, fora o susto, a estadia acabou bem: os árabes ficaram detidos por sete dias, enquanto seus anfitriões deliberavam seu destino, até que foram inocentados e liberados. Ufa. Após atravessarem povoações extremamente ricas, onde um homem possuía 10.000 cavalos e 100.000 cabeças de ovelha (contagem do autor), se deparam com os basgrid, que tinham um hábito desgostoso e um culto inusitado. Como dizer? comiam os próprios piolhos e eram adoradores de piroca. No relato de Fadlãn, "eles esculpem um pedaço de madeira na forma de um falo e o carregam pendurado". Indagado sobre a divinização do falo, o basgrid justificou dizendo "porque saí de um igual a esse e reconheço somente ele como meu criador". Sem comentários. A longa viagem do autor, que durou quase meio ano, se aproxima do seu término quando encontram os eslavos, a quem ele chama de búlgaros. Também entre eles a comitiva esteve em risco, ainda que ao fim fossem autorizados a seguir viagem. Fadlãn se espanta com a aurora boreal e com a duração dos dias, a esta altura muito longos, e também que "a noite não é escura - um homem reconhece outro além do alcance de uma flecha". Boa parte da narrativa se estende sobre religião e rituais mortuários, além dos costumes alimentares e da (falta de) higiene. Não há como não citar as abluções matinais presenciadas pelo árabe. Diz ele que, pela manhã, a escrava leva uma bacia dágua para um dos nobres eslavos, para que ele lave o rosto, molhe e penteie os cabelos, escarre e assoe o nariz. Em seguida ela leva esta mesma bacia dágua para o nobre ao lado, que, sem trocar a água e com uma relaxada expressão matutina, lava o rosto, molha a cabeça, assoa o nariz, escarra e devolve a bacia. E assim seguia a diligente escrava, levando de um em um a bacia com a água, digamos, batizada. Os entendidos em tratamento de cabelo que avaliem (me faltam elementos). Outro tema assíduo é a fornicação constante e despudorada. Conta que o rei dos búlgaros passa o dia em seu trono, cercado por sua corte, não saindo dali para nada. Come ali, defeca ali e faz sexo com as suas dezenas de concubinas no próprio trono, à vista de todos. Quando quer sair do trono, trazem um cavalo até ele, sobre o qual ele monta e parte, imagino que com a bunda suja. Se não tinha sela, era mais uma utilidade para o cavalo. Os funerais dos reis e poderosos são exóticos e intrincados, com cada povo os executando de maneira diferente. Em uma tribo foi construída uma mini-cidade para enterrar o rei, dispondo vinte casas em círculo. Para que não se soubesse para qual casa o cadáver do rei foi levado, os escravos que o levaram têm a garganta cortada na volta. Mas um pescoço degolado é bem pouco quando comparado com o enterro de um rei eslavo. O cadáver real é posto em um barco, dentro de uma tenda, uma escrava real se candidata a morrer com ele (para que ele possa ter com quem copular depois de morto), todos os cavalos do rei são mortos e decapitados (para que ele possa ter onde montar depois de morto) e um grande banquete é posto no seu barco. A escrava visita todas as tendas e fax sexo com seus ocupantes, e no dia seguinte vai para o barco do cadáver, onde é visitada pelos amigos do morto, que também fazem sexo com ela, e depois a estrangulam, enquanto a feiticeira da tribo a esfaqueia sob as costelas. Em seguida, o barco, com os dois cadáveres, as cabeças de cavalo e as postas de carne de boi e de ovelha, vira uma grande churrasqueira flutuante e eles (os defuntos), em êxtase, cavalgam no céu. Era uma cerimônia mais ou menos animada, dependendo da sua posição no funeral. O fim de tudo, a entrega do dinheiro, a volta à Arábia e muito mais, é subitamente cortado. O livro acaba. Na verdade, esta é a primeira vez que temos acesso ao seu conteúdo integral. Escrito em 922, o livro submergiu na História, foi parcialmente citado em textos divulgados no remoto ano de 1341, que faziam menção ao relato de Fadlãn, e somente em 1923 o texto foi redescoberto. Esperamos quase 100 anos para vê-lo publicado no Brasil. E que edição. A pequena publicação da Carambaia é um presente à parte. Capa dura, ilustrada com a topografia asiática e hipnóticos reflexos faiscantes que emulam a aurora boreal testemunhada pelo autor. Um primor. A edição é numerada (a minha é a 393 de um total de 1.000), bilíngue e o miolo vem em folhas azul-parker de alta gramatura. Com o perdão do clichê, é para ler, reler e guardar.

Editora Carambaia, 150 páginas.

Sidney Puterman

Some say he’s half man half fish, others say he’s more of a seventy/thirty split. Either way he’s a fishy bastard.

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