"O carrasco de Hitler", por Robert Gerwarth

terça-feira, janeiro 14, 2020 Sidney Puterman

São hoje no mercado editorial muitos os títulos que exploram a proximidade com Hitler. Eu mesmo já li alguns. Vão da amante de Hitler aos padres de Hitler, ao contador, ao sapateiro, aos generais, à secretária, ao guarda-costas etc. Alguns tratam de personagens secundários ou irrelevantes na trajetória do nazismo, com um quê de oportunismo comercial. Não é o caso deste. A bem da verdade, eu procurava especificamente pela história de Reinhard Heydrich, sem mesmo saber que ele era tido como o "carrasco de Hitler". Em seu programa de rádio na BBC em língua alemã, o Deustche Hörer!, o prêmio Nobel alemão Thomas Mann, no exílio, comentou, após a morte de Heydrich: "Para onde quer que fosse esse assassino, o sangue brotava em rios. Em toda parte, mesmo na Alemanha, ele era simplesmente chamado 'o carrasco". É fato. Dos asseclas graduados de Hitler, Heydrich é provavelmente quem mais sujou as mãos com sangue inocente no curto reinado europeu do III Reich. Não obstante, sua estória é menos conhecida - talvez por ter morrido, assassinado, três anos antes do fim da guerra. A foto acima é justamente a minha reverência aos homens que o levaram à morte, em um atentado a bomba em Praga, Tchecolosváquia, em 27 de maio de 1942. É em parte também daí que o meu interesse por ele recrudesceu. Estar no santuário preservado em que os assassinos de Heydrich foram encurralados e mortos por um exército de 800 homens da SS não é uma experiência que se esqueça. E o que descobri nesta minha incursão pela biografia do Açougueiro de Praga é de gelar os ossos, pelo método, perversidade e dimensão. Heydrich concebeu e determinou a morte de uma quantidade impensável de seres humanos, provavelmente chegando à casa dos sete dígitos. Mas, apesar dos números, os seus atos e sua responsabilidade nas atrocidades cometidas pelo regime não ganharam na posteridade a mesma fama pérfida de outros medalhões do nazismo. Esta é a lacuna que Robert Gerwarth corrige. Se mantendo distante do maniqueísmo e da demonização (fácil) do biografado, o autor disseca a vida de Heydrich desde a infância e constrói um amplo panorama da sua gestão implacável à frente da SS e do governo do Protetorado tcheco. Heydrich, filho de uma família de músicos, cresceu em meio à arte e à harmonia familiar. Nada em sua origem justificava - como nos sentimos compelidos a fazer, buscando motivações com alguma razoabilidade e atribuindo os desvios de personalidade a traumas vivenciados - o genocida bárbaro em que se tornou. Após uma juventude banal, sua adesão ao nazismo foi relativamente tardia - sequer havia lido a bíblia do movimento, Mein Kampf. Se aproximou do partido dois anos antes da ascensão de Hitler ao poder, instigado por sua noiva e futura esposa, Lina, pertencente a uma família de nazistas de primeira hora. O partido nazista era então uma organização que procurava se ramificar de forma condizente com o seu crescente peso político, e para isso corria atrás de engordar seus quadros. O currículo apresentado por Heydrich destacava sua experiência na Marinha alemã (ainda que uma passagem frustrada, pois sua breve carreira militar acabou em expulsão), o que deu a ele o pedigree bélico ambicionado por Heinrich Himmler, chefe da Schutzstaffel, a temida SS. À frente da brigada, o ex-agrônomo Himmler aspirava desenvolver um serviço de inteligência, e viu no currículo do candidato um perfil condizente com o que procurava. Em breve a afinidade entre os dois encurtaria o trajeto de Heydrich rumo aos principais postos da SS e ao comando da Gestapo. Para azar do continente, o resultado foi funesto: a dupla recém-formada assassinaria milhões de civis europeus na década seguinte. Gerwarth demonstra esta escalada ambiciosa de Heydrich até o comando na SS, cevada pela criminosa eficácia dos seus métodos. Mais que isso, a crença de Himmler e de Heydrich nos mitos de superioridade racial alemã influenciaram e distorceram suas decisões na condução da máquina do terror. Construíram uma tabela de classificação racial que, incoerentemente (o que muitas vezes, por incrível que pareça, levava Hitler a desautorizar Heydrich), tinha prevalência sobre ações militares e políticas estratégicas do governo. Na sua estapafúrdia taboada étnica, os alemães estavam no topo da cadeia alimentar, tendo abaixo povos germânicos subordinados - como os escandinavos -, sucedidos por etnias às quais restavam a submissão, a escravização ou o extermínio, como franceses, no primeiro caso, eslavos, no segundo, e judeus, no último. A condenação prévia de populações inteiras foi uma elaboração posterior - não havia ainda condições, ou inspiração, para este plano maquiavélico nos primeiros anos do Reich. Após Hitler ser entronizado como o chanceler da Alemanha, em 1933, Heydrich se caracterizou pela perseguição inclemente aos opositores do regime e aos comunistas. Somente após ter dizimado os oponentes reais e potenciais é que ele veio a assumir a liderança na caça aos oponentes imaginários, os judeus (os boatos de uma ascedência judaica, dirigidos a ele e sua família na década de 20, voltaram à baila, e talvez tenham contribuído para sua ferocidade contra os judeus). Mesmo assim, segundo o autor, até o início da guerra, em 1939, não havia passado pela cabeça de Himmler e Heydrich o extermínio em massa da população judaica. Seu objetivo então se limitava à exclusão do elemento judeu e à obtenção de uma Alemanha livre do povo eleito - isto, a despeito dos milhares de judeus deliberadamente mortos pela sua polícia. Matá-los nem de longe era malvisto ou indesejado, só não era ainda uma política de Estado - esta permanecia sendo a busca de alternativas de confinamento no Leste. O avanço da máquina de guerra alemã e as populações cada vez maiores sob administração do Reich multiplicavam o número de judeus a serem espoliados, transportados e confinados. Assim, pouco a pouco, simplesmente assassiná-los tornou-se uma alternativa mais funcional. Este foi o espírito diabólico da Solução Final, defendida e assumida por Reinhard Heydrich, sempre paripassu com Himmler. Pela repercussão mundial de seu julgamento em Israel, em 1961, Adolf Eichmann acabou levando um grande quinhão nesta responsabilidade, talvez desproporcional ao seu real poder (falo de Eichmann em um dos próximos posts, sobre o excelente livro de Neal Bascomb, "Caçando Eichmann"). Mas não se pode esquecer que Eichmann era subordinado de confiança de Heydrich, desenvolvendo a logística adequada à orientação recebida diretamente do seu mentor. Foi ele, o comandante máximo da SS, quem pôs para funcionar o maior esquema de matança de seres humanos já concebido. Foi ele, Heydrich, quem convocou altas patentes nazistas para se reunirem em Wansee, em janeiro de 1942, e firmarem uma decisão consensual sobre o holocausto da etnia judaica da Europa. Antes disso, Hitler já o tinha distinguido com uma outra posição de destaque, a de Protetor da Tchecoeslováquia. Instalado no Castelo de Praga, prometendo dizimar a resistência tcheca, Heydrich foi além e colocou em prática seu plano de germanização do país, classificando a população entre germanizáveis e não-germanizáveis - estes últimos eram mortos ou enviados para campos de concentração. Sua política de transformar a Boêmia em solo alemão incluía a supressão da língua tcheca, projeto já em andamento quando do seu assassinato. Extremamente zeloso da segurança dos seus oficiais, ele mesmo desdenhava de uma escolta. Andava por Praga em carro aberto e tendo por companhia apenas o  motorista. Achava que ser visto escoltado seria uma demonstração de fraqueza. Isto proporcionou aos paraquedistas rebeldes Jan Kubis, tcheco, e Jozef Gabsik, eslovaco, lançados no país algumas semanas antes, a oportunidade de emboscar e matar Reinhard Heydrich. Eles haviam sido treinados pela britânica S.O.E. e vieram do Reino Unido a bordo de um Halifax, saltando em Nehvizdy, Boêmia Central. O atentado, por muito tempo planejado, foi mal executado e a princípio, mal-sucedido: a metralhadora engasgou (ação excepcionalmente bem descrita em "O levante de 44", de Norman Davies) e os atacantes tiveram que se valer de uma bomba de mão para concretizar o ataque. Heydrich sacou sua pistola e disparou contra os agressores, que se escafederam. Transtornado com a audácia dos atacantes, mas fisicamente apresentando apenas ferimentos superficiais, o Protetor foi hospitalizado. O atentado, se pensava, havia fracassado. Ironicamente, fragmentos do estofado do banco do carro, atingido pela bomba de mão, penetraram nas costas de Heydrich e provocaram a septicemia que o matou, sete dias depois. Seu funeral foi o de maior pompa na história do III Reich, onde o morto foi pranteado por Hitler como o "homem com o coração de ferro"A vingança inicial dos nazistas foi executar toda a população da cidade de Lídice, pequeno vilarejo que se acreditava (erradamente) tivesse abrigado os paraquedistas. A cidade foi queimada e sua destruição foi mundialmente alardeada pelos nazistas como um exemplo do que o regime faria contra quem atentasse contra o Reich. A retaliação nazista não se limitou à extinção da aldeia: mais de dez mil tchecos foram mortos em represália, o que contribuiu decisivamente para o colapso definitivo da resistência no país (se compreensivelmente funcionou contra os locais, aterrorizados, em termos de repercussão global o tiro saiu pela culatra: ao redor do mundo, diversas cidades foram rebatizadas pelos países aliados como Lídice, em repúdio à ação nazista). Apesar do terror e das execuções, a SS teve dificuldades em encontrar os agentes. Todas as famílias suspeitas de darem cobertura a Kubis e Gabsik foram torturadas e enviadas para campos de concentração. Somente quando um delator entregou seu paradeiro os rebeldes foram localizados. Os seis paraquedistas estavam escondidos na catacumba da Catedral de Praga. Um exército de 800 homens da SS foi enviado para o cerco e o ataque. Apesar da desproporção - 800 contra 6 -, a tomada da Catedral e a invasão da catacumba exigiu seis horas de combate encarniçado. Entrando na nave da igreja e matando os três paraquedistas que estavam no turno de vigília (dois deles, sem munição, se suicidaram com cápsulas de cianureto e tiros na fronte, sendo um deles Jan Kubis), os nazistas procuraram um acesso melhor para a catacumba, cuja estreita abertura no teto dava passagem para uma única pessoa de cada vez, totalmente desprotegida e sob fogo dos três paraquedistas remanescentes, com Josef Gabsik entre eles (a impossibilidade de acesso foi constatada por mim de corpo presente, quando tive a honra de estar no interior do sepulcro daqueles rapazes valentes). Os defensores conseguiram resistir por algum tempo, mas, quando a SS inundou a catacumba e empregou explosivos para alargar o acesso, os três agentes, acuados, optaram por se matar, da mesma forma que seus colegas haviam feito. Hoje são heróis nacionais e um exemplo da insubmissão do povo tcheco ao invasor nazista. Eu estive na catacumba. Há agora uma entrada por uma porta disfarçada no fundo de uma pequena sala quadrada, sob as escadarias da igreja. No ambiente há painéis com uma diagramação escolar e alguns souvenirs. Um velho tcheco mal-humorado cuida do caixa. Diferentemente de quase todos os museus e igrejas da Europa, a visita à catacumba é gratuita e a peregrinação é estimulada. A câmara é pequena, com espaço para cinco dúzias de sarcófagos e com uma réstia de luz natural. O rombo no teto feito pelos nazistas foi mantido. O filme "Operação Antropóide", lançado em 2016, foi rodado no próprio local e faz uma reprodução fidedigna do atentado e do cerco. No interior da catacumba, em uma concavidade estão depositadas algumas guirlandas de flores e firmadas algumas velas. No corredor principal estão os bustos dos autores do atentado - e que morreram naquele mesmo lugar em que estou. São os responsáveis por um feito histórico e simbolizam milhões de heróis anônimos que lutaram contra o criminoso regime alemão. Meu xará Jan e seu parceiro Jozef, os matadores de Heydrich - a mais alta patente alemã assassinada em toda a Segunda Guerra (nenhum deles morreu no campo de batalha; ou se suicidaram ou foram enforcados) - estão entre os poucos com nome. Reverenciá-los é uma maneira de homenagear todas as vítimas de um dos regimes mais covardes e bestiais da história da humanidade. O paradeiro dos familiares do genocida é conhecido. No pós-guerra, Lina Heydrich, a esposa nazista do Açougueiro de Praga, foi julgada por crimes de guerra - na casa de campo do casal ela cuspia, esbofeteava e mandava chicotear os escravos judeus -, mas foi inocentada e desnazificada. Se mudou para perto dos pais e abriu uma taverna, a Imbria Parva, que se tornou reduto para ex-oficiais da SS relembrarem os velhos tempos. Processou o Estado alemão e passou a fazer jus a uma gorda pensão mensal pelo marido morto, equivalente a de um general (mesmo valor da de um primeiro-ministro). Antes de morrer, em 1985, Lina publicou sua biografia, "Minha vida com um criminoso de guerra", onde ela inocenta o marido, defende o nazismo e a supremacia racial alemã. O filho mais velho de Heydrich, Klaus, morreu em um acidente de carro, ainda em 1943. O irmão de Heydrich se suicidou em 1945. Não foram estas as únicas ocorrências trágicas na família do carrasco nazista. Nos estertores do Reich de mil anos, a mãe de Heydrich, Elisabeth - que ele, no auge do seu poder, repudiou e se recusou a ajudar financeiramente -, abandonada, morreu de fome.

Editora Cultrix, 456 páginas

Sidney Puterman

Some say he’s half man half fish, others say he’s more of a seventy/thirty split. Either way he’s a fishy bastard.

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