"Diários de Raqqa", por Samer

sexta-feira, agosto 28, 2020 Sidney Puterman

Nada do que está na capa deste título editado pela Globo Livros é verdadeiro. Nem o autor. O texto atribuído à BBC ("no futuro, quando as pessoas necessitarem compreender o que foi a guerra da Síria, é este o livro que elas lerão") não procede. Lendo o livro, você não compreende o que foi a guerra da Síria, que é dez mil vezes mais complicada do que isso. Nem o subtítulo é digno de fé. Trata-se de mera marquetagem para produzir o tipo comercial de legenda que se tornou padrão nos livros de não-ficção nos últimos anos: um encadeamento rítmico de frases que dá um ar de thriller e de novidadismo ao produto editorial (recurso popularizado pelos ótimos livros de Laurentino Gomes). Ao fecharmos o livro, descobrimos que Samer não foi jurado de morte, nem muito menos desafiou o Estado Islâmico. Tirante esses detalhezinhos, antecipo: é leitura das boas. Daquelas de não se conseguir largar. Texto valorizado pelos delicados desenhos de Scott Coello, nos ambientando no universo hostil que circunda o narrador, Samer (que, esclareço, não é seu nome real: por motivos de segurança, dele e da família, seu relato foi assinado sob pseudônimo). Seus diários foram publicados no âmago do conflito, em 2016, período em que a cidade ainda estava sitiada. Alvo de 20.000 bombardeios e com 90% do seu território destruído, Raqqa somente foi libertada no fim de 2017. Durante os anos de ocupação, a cidade, no norte da Síria, se tornou a capital do Estado Islâmico, o Daesh. É justamente a narrativa desta ocupação o cerne dos diários de Samer. Ele já era um jovem ativista antes da chegada do Daesh. Era presença assídua nos protestos contra o governo corrupto dos Assad, há meio século no poder. Uma ditadura cruel, que detia, punia e matava seus opositores - onde uma reles denúncia sobre um comentário trazia graves consequências. Foi o que aconteceu com o pai de Samer. Seu chefe o delatou por ter feito críticas à corrupção do regime. Preso, só foi libertado depois que o chefe aceitou refazer seu depoimento, amenizando as acusações. A revisão da denúncia não foi de graça. Para ter o marido solto e com o emprego de volta, a mãe vendeu suas joias e também um terreno herdado do avô, financiando assim a boa-vontade do chefe. Infelizmente, uma transação cotidiana na cultura local. Pior é que a ditadura síria não era apenas corrupta, mas também violenta. O massacre de Hama, conduzido por Hafez Al-Assad (pai do atual presidente), em 1982, matou 35 mil civis. O filho, Bashir Al-Assad, assumiu o poder em 2000 e apertou o torniquete do regime. Por isso, a chegada das forças rebeldes, em 2013, foi considerada por muitos como uma esperança de libertação de Raqqa da opressão praticada pela dinastia Assad. A princípio, foi uma vitória comemorada. Unidos em coalizão, o Exército Livre da Síria, o Ahrar Al-Sham e a Frente Al-Nusra (com o Daesh) expulsaram o exército de Assad da cidade. Jovens como Samer, veteranos das manifestações contra o governo sírio, se entusiasmaram. Mas foi uma reação precipitada. Ao longo das semanas seguintes, viram que a situação era menos promissora do que parecia. O combate militar pela cidade se intensificou e o Daesh assumiu isoladamente o controle de Raqqa - implantando um novo regime de terror, em uma escala alguns graus acima da até então exercida pelas forças regulares. O Daesh é o braço sírio da Al-Qaeda (a Frente Al-Nusra chegou a reivindicar o ataque às torres gêmeas, em 2011) e esteve por trás de diversos atentados terroristas nos últimos anos, incluindo os de Paris, em 2015. Fez de Raqqa seu bastião, aproveitando sua localização estratégica, no extremo oposto da capital da Síria e dispondo da produção dos seus fertéis campos de petróleo, cuja produtividade passou a financiar as ações terroristas da facção. Como corajosamente revelam os diários de Samer - pois o mero registro dos fatos na cidade fazia dele um sério candidato a ser decapitado em praça pública -, o Daesh impôs à cidade um fundamentalismo religioso extremado, exigindo dos moradores locais uma observância peculiar do Corão. Aos homens, tudo era proibido - fumar, beber, acessar internet, ver TV - e às mulheres, tudo isso e muito mais. Patrulhas femininas, como as Brigadas Khansa, circulavam nas ruas em busca de uma burca mais justa ou uma bochecha de fora. Os homens eram interpelados sobre o comprimento das calças - sua bainha tinha que terminar nos tornozelos - e sobre a que horas tinham rezado, e que parte do Corão tinham lido. Como a resposta, fosse ela qual fosse, nunca satisfazia à vigilância do Daesh, os moradores eram então punidos com uma semana integral de cursos sobre a interpretação da Sharia pelo Daesh. Na prática, exigia-se que fossem re-ensinados no culto do Islamismo, sob as regras do Estado Islâmico - que dizia com isso que a interpretação correta do Corão era a nova, trazida pelo Daesh, e não a até então praticada. E sob o chicote do grupo não havia nenhum espaço para contemporização. Para qualquer delito (incluindo uma mera ausência a uma das aulas dos cursos), a punição podia acabar em decapitação. Muitas vezes, em frente à casa da família. O corpo era deixado crucificado, sem a cabeça, como um lembrete do que poderia acontecer a qualquer um que contestasse as regras estabelecidas. Afora esta observância religiosa, na parte econômica a atuação do Daesh era como a de uma milícia: comerciantes, taxistas e trabalhadores tinham que pagar taxas aos integrantes do grupo. Quem assumiu a arrecadação foi a Zakah, uma antiga organização que deveria ser de cunho beneficiente, mas que se tornou um braço de extorsão dos ocupantes. Além do tributo, as lojas não tinham permissão para um lucro superior a 25% sobre seus produtos, o que comprometeu e inviabilizou a maioria dos negócios, que se viram obrigados a fechar as portas. As mulheres solteiras da cidade passaram a pertencer prioritariamente aos soldados do Estado Islâmico. A namorada de Samer teve o irmão sequestrado, acusado de ser simpatizante do governo sírio, e só libertado após negociação com a família, que deu a namorada do autor em matrimônio para o soldado. Esposas eram exigidas e os casamentos se davam a partir dos 9 anos de idade das jovens meninas, apartadas de seus pais. O nível de fanatismo, aliado ao poder sem limites, era extremo: Samer narra a estória do perturbado Waleed, que se tornou integrante do Daesh, denunciou a própria mãe e a executou em público. Ô loco. Raqqa vivia sob bombardeio sírio e a economia acabou estrangulada. Vivendo em ruínas, os moradores não tinham mais acesso aos hospitais, que se tornaram exclusivos dos combatentes do Daesh. Os amigos de Samer, aqueles com os quais ele tinha vínculos antigos nas ações de protesto contra o governo anterior, vinham sendo então acusados de ativismo pelo Daesh e muitos foram presos e executados. O Exército Livre da Síria era agora inimigo do Estado Islâmico. Além de tudo, o Daesh, de forma suspeita, muitas vezes parecia agir em consonância com o governo. Em um cenário confuso como este, em lugar nenhum a população poderia se sentir segura, sequer em família, porque o Daesh tinha infiltrados em todos os grupos da cidade. Com seus amigos mortos, sem trabalho e com o aviso clandestinamente recebido de que ele próprio estava sob vigilância, Samer resolveu fugir. Antes, fez chegar seus relatos escritos a correspondentes no estrangeiro. Como destacam os editores, a valentia do autor em escrever e enviar seus diários enquanto ainda permanecia na Raqqa ocupada, proporcionou uma perspectiva rara e em tempo real do que acontecia na cidade, sob o domínio cruel do Estado Islâmico. Sua narrativa é pulsante e o traço de Coello contribui para concebermos o panorama surreal de opressão que ele e a população síria experimentavam. As imagens da Raqqa destruída não nos deixam dúvida da dimensão da tragédia. Se o marketing de venda da edição é uma balela, seu conteúdo é legítimo e impactante. Revela muito das práticas do Estado Islâmico e dos grupos terroristas defensores do jihadismo. Como sintetiza o autor: "O Daesh utiliza a religião para encobrir sua criminalidade". Um depoimento para não esquecer.

Globo Livros, 108 páginas 

Sidney Puterman

Some say he’s half man half fish, others say he’s more of a seventy/thirty split. Either way he’s a fishy bastard.

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