"Passado a limpo", por Eduardo Bueno

sexta-feira, agosto 07, 2020 Sidney Puterman

"Os pelados na praia. Os peludos na proa." Apesar da brochura (com trocadilho, por favor) abrir com esta bela frase de efeito do Peninha (apelido do gremista autor do livro), o graúdo livreco é um baita dum merchan. É divertido, manda bem com sua profusão de anúncios retrô, hilários, mas é um caça-níqueis. Sim, a obra é escrita pelo autor de tantos textos fundamentais para a popularização da História no Brasil. Sem questionamentos - o Peninha, todo mundo sabe, é impagável. Mas é tanto, que eu não pagaria (ainda que tenha pago, antes de sabê-lo) por esse livrinho dele, mais estreito do que a fina silhueta do próprio. E é sobretudo impagável porque inencontrável: nem na Amazon, nem na Saraiva, nem na Travessa. Você pode querer pagar, mas não há a quem. Ou mais impagável ainda se você for no maior sebo virtual do Brasil, o site estantevirtual.com.br. Lá você encontra a edição por módicos (!) R$ 333,00. Como ele é fininho, com 25 exemplares da publicação (que juntos têm a grossura de uma páginas amarelas) você tem o suficiente para comprar um Fiat Uno Mille 2003 em bom estado. A propósito (não sei do que, que fique bem claro), este foi o primeiro ano do mandato do presidente Lula, ainda antes do Mensalão. Esta política recente (para quem, cara pálida?), um assunto sujo, vem dar as caras neste singelo almanaque dedicado à biografia da higiene por aqui. Tem Collor e o já citado Lula, em uma curiosa perspectiva de como o governo petista era visto em seus primeiros cinco anos, na ótica de um irreverente historiador de esquerda. Mas o que o livro tem mesmo é a descrição resumida da (falta de) higiene ao longo da História. Vai até lá os egípcios, passeia pelos gregos e romanos, até desembarcar em Porto Seguro, dando margem à frase do Peninha que abre o texto, lá em cima. Os porcos e os limpos. Os imundos imunizados e os asseados vulneráveis. Morreram os limpos, em mais uma sujeira da História (haja trocadilho...). Mas aquele que me ler somente até aqui pode supor que o livro é ruim. Não, não, não! é bom. Só que é dispensável. Supérfluo, já que entrega tão pouco. Dá umas pinceladas no tema (pinceladas é bem o termo - ele conta que, nas embarcações quinhentistas, o vaso era um balde pendurado por uma corda, que era içado, c(*)gado e lançado à água novamente; e que o pincel higiênico era uma corda cuja extremidade se mantinha dentro dágua, corda a qual era usada pincelando com água salgada a região furicular do sujeito embarcado e devolvida ao mar) e revela que a circuncisão é invenção higiênica dos egípcios, copiada da cabeça aos pés (vá lá) pelos judeus. O doloroso é escutar que o saneamento básico romano de 2.000 anos atrás era muito superior ao de boa parte do Brasil de hoje. Onze aquedutos transportavam 151 milhões de litros por dia e supriam as inúmeras casas de banho de Roma: havia mil delas, em torno do ano 130 D.C. Quem conseguiu reverter esta prática pecaminosa de banhos para todos foi a Igreja Católica. Segundo o historiador João Carlos Oliveira (citado pelo Bueno, a quem eu cito), tratou-se de "um esforço concentrado da Igreja para proscrever as casas de banho como lugares propícios à luxúria, à devassidão e ao amolecimento dos costumes". Ou endurecimento, nas casas mistas. Seja como for, esta fé pudica foi enriquecida pela medicina, que achava que o contato da água com o corpo humano abria os poros e os deixava vulneráveis aos "ares nocivos". O sucesso da orientação foi tal que os europeus restringiam os banhos a um máximo de dois - por ano. Em 1526, por exemplo, o rei inglês Henrique VIII adiou uma audiência com o embaixador francês para daí a seis meses. O motivo foi ter sabido que o parisiense havia tomado um banho três semanas antes. Que perigo de contaminação, ehm? Inusitado é que a etiqueta sanitária na Europa daquele tempo requeria o uso da garganta. Explico: quando o sujeito queria dar descarga, na ausência da própria (que ainda teria que esperar uns 400 anos para ser inventada) ele pegava o penico e lançava o conteúdo pela janela. Em Lisboa, a garganta era usada para gritar "água vai", por três vezes. Embora de água não houvesse nada (havia ali você bem sabe o quê), a frase era essa. E tinha que ser gritada rigorosas três vezes antes do lançamento, sob pena de multa. Em miúdos, significava que você podia jogar m... pela janela na cabeça de qualquer um que passasse na rua, desde que gritasse antes. Civilizado. Para cabelos fartos, havia serviços especializados com macacos amestrados, que catavam piolhos. Não contariam comigo para faturar. Um surgimento que mudou o curso do planeta foi a privada. Pra essa eu tiro o chapéu. Sem ela, a vida seria muito pior. Agradeço de público aos seus "inventores" John Harringston, Alexander Cummings e George Jennings. Para minha surpresa, não só foram necessários três ingleses para inventarem o vaso sanitário, como eles fizeram seu desenvolvimento ao longo de 287 anos. Por sorte, eu nasci quase 80 anos depois do aprimoramento definitivo da engenhoca de transporte hidro-encanado dos dejetos corporais. Muito confortável, estão os três de parabéns. Bueno revela como, com a passagem dos anos, a higiene conquistou seu espaço em meio à imundície. A Alemanha inaugurou no século XVIII a Medichinizepolizei ("polícia médica"), com um protocolo para a higiene pessoal. Mas era uma exceção em um planeta ainda bem pouco asseado, que ainda teria que usar muito jornal áspero para manter uma limpeza bem esfolada das suas partes íntimas. Pelo fim dessa crueldade com as retaguardas mais delicadas, estendo meus cumprimentos à Scott Paper, que em 1887 inventou o papel higiênico. Já era um prenúncio da higiene consumista que assolaria a América do Norte alguns anos depois, com o sistema capitalista fazendo girar a máquina registradora, sob a lucrativa política do american way of life. O pós-guerra mudou a relação das pessoas com os hábitos pessoais de higiene e o Almanaque do Peninha diverte com os insights ilustrados da indústria americana de limpeza. O que era exceção, tornou-se regra. O que era escondido, passou a ser exibido. Pasta de dentes, desodorante, absorventes, cremes e sabonetes se tornaram itens obrigatórios de consumo. Folgo em saber e mais ainda em usar. Por todo o exposto, reputo que o nosso querido Peninha, amado até pelos colorados, também merece sua casa na praia e exultou com o patrocínio da Kimberly-Clark, líder mundial nos produtos de higiene recém mencionados aqui e fartamente ilustrados na colorida edição. Devidamente asseado (o que inclui litros de álcool gel, por força do momento viral), dou vivas ao gênio do inigualável Eduardo Bueno. E, apesar da pequena fortuna com que está cotado este meu raquítico exemplar, e dos despeitados senões que enfileirei, falo dele o que o falaram os Cantores de Ébano da sua graúna: não vendo, não troco e não dou.

Gabarito Editorial, 79 páginas

Sidney Puterman

Some say he’s half man half fish, others say he’s more of a seventy/thirty split. Either way he’s a fishy bastard.

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