"Matadouro cinco", por Kurt Vonnegut

terça-feira, julho 28, 2020 Sidney Puterman

O que dizem: (...)  O que eu digo: (...). É um romance fragmentado. Hoje se diz "distópico". O autor conta coisas que orbitam ao redor do tema central. São anedotas correlatas, porque reforçam o absurdo da guerra. O tema central é o bombardeio de Dresden na Segunda Guerra Mundial. E tudo o mais é a desconexão entre os objetivos bélicos e políticos de um conflito e a fragilidade dos coadjuvantes que são literalmente convocados a tomar parte nele. E o que perdem dentro dele: pernas, braços, sanidade, pulmões, tudo aquilo que é necessário para o que chamamos "vida". Sem contar os amigos. Enquanto conta estórias a esse respeito, Kurt Vonnegut nos oferece um livro picotado. O que não é necessariamente um demérito, como comento à frente. A destruição de Dresden vem e vai. Mais vai do que vem, até vir de verdade já no trecho final. O protagonista é Billy Pilgrim, um combatente inadequado que é lançado no cenário de guerra com um sobretudo emprestado e uma fantasia de bailarina. Se esperava muito pouco do rapaz, tanto no front, como fora dele, mas o pouco brioso recruta sobreviveu, casou com uma gorda rica e se tornou um bem-sucedido empresário de optometria. Além de presidente do Lions Club. Era um cara humano e compreensivo ("os americanos jamais reconhecem o quanto ganhar dinheiro é difícil, e, por causa disso, quem não tem dinheiro passa a vida se culpando"). O porém é que ele era também meio apalermado e julgava ter sido abduzido por um disco-voador. Os ETs o levavam e traziam de volta de Tralfamador, um planeta distante, onde ele era mantido preso em uma jaula. Confinada com ele ficava a loura Montana Wildhack, uma pin-up gostosíssima. Eles copulavam na gaiola, para entretenimento dos habitantes locais (que, segundo o autor, eram amistosos, com 60 centímetros de altura e formato parecido com um desentupidor, com um olho verde na palma de cada mão, pelo qual enxergavam em quatro dimensões). Lá neste planeta Billy era alvo de diversas experiências sensoriais. Konnegut vai diluindo as impressões de Billy - da guerra, da esposa e do espaço sideral - em uma retórica poeticamente abobalhada. A ação, ou a ausência dela, se dá em três diferentes planos geotemporais (1944, na Europa, em tempos diversos, na América, e em tempo impreciso, em Tralfamador). Delicado, "Matadouro cinco" é um livro metafórico. A abdução de Billy e sua exposição em um zoológico humano são uma provável alegoria para o nosso nível de bestialidade, que leva milhões de humanos a se matarem em ondas sucessivas. Já as botas prateadas e o canivete exibem a estupefata vulnerabilidade de um sujeito catapultado para uma terra estranha e confrontado com um batalhão inimigo. O livro foi lançado em 1969, quando o homem foi à Lua e os EUA estavam enfiados no Vietnam. Por isso, acho que sem regular a época com o livro a gente vai ter dificuldade para entender a leitura. Mas, abre parênteses, eu não sei até onde a boa leitura tem que ser entendida ou apenas lida. E eu também não preciso necessariamente obrigar este livro a ser uma boa leitura para mim (um sujeito numa cidadezinha no interior da América do Sul), agora (cinquenta anos depois do livro ter sido escrito e passado sua mensagem). Fecha parênteses. Mas, após estes devidos e importantes circunlóquios, faz-se oportuno admitir que a obra tem seu brilho e momentos de camaradagem, como quando Billy se recorda de como foi alertado pelo seu colega de tropa de que ele, Billy, estava na linha de tiro: "Larga de ser burro e sai da estrada, seu filho da puta!" O tal colega, Weary, mesmo sendo falso, desleal e violento com os mais fracos - um sujeito escroto, em suma -, salvou Billy diversas vezes. É assim mesmo. Billy foi logo capturado pelos alemães e metido em um vagão. "Os seres humanos do vagão defecavam em capacetes de aço que eram passados para quem estava postado nos respiradouros, que então os descarregavam. Billy era um dos descarregadores. Os seres humanos também passavam cantis, que os guardas enchiam dágua. Quando entrava alimento, os seres humanos ficavam silenciosos, crédulos e belos." No campo de prisioneiros, os ingleses eram bem tratados. Demais, até. Todos os produtos eram importados, à exceção das velas e sabões, que eram alemães, mesmo ("Velas e sabões tinham uma similaridade fantasmagórica, opalescente. Tinham sido feitos com gordura processada de judeus, ciganos, bichas, comunistas e outros inimigos do Estado.") Um dos prisioneiros, Derby, perguntado sobre como foi apanhado, descreveu "o clima artificial incrível que às vezes alguns terráqueos criam para outros terráqueos quando não querem que esses terráqueos continuem habitando a Terra". E por aí vai. É assim mesmo. Já bem no fim do livro, um personagem que o autor não gostava, o professor Rumfoord, detalha como foi a destruição da cidade e a morte das 135 mil pessoas no ataque aéreo. Billy Pilgrim, o protagonista, estava em Dresden na hora do bombardeio. Ele era prisioneiro de guerra dos alemães. Mas, quando o professor justificava a natureza do bombardeio da cidade, dividiam a enfermaria de um hospital moderno de uma rica cidade americana. Do lado direito do professor, havia uma cortina, separando-o de Billy, e do lado esquerdo estava a sua estúpida amante de 23 anos. Billy foi o único sobrevivente de um acidente de avião, mas que não tinha nada a ver com a guerra. Ele agora era um optometrista rico, viajando pelos Estados Unidos, no avião que caiu. Mas ele achava que estava em um outro planeta. Tralfamador, para ser mais exato. Na página 124 eu desconfiei que "Matadouro cinco" fosse um livro tralfamadoriano. "Cada bloco de símbolos é uma mensagem breve, urgente, descrevendo uma situação, uma cena. Nós, tralfamadorianos, lemos todos os blocos de uma só vez, em vez de um após o outro. Não existe qualquer relação específica entre todas as mensagens, exceto o fato de terem sido escolhidas com cuidado pelo autor, de modo que, ao serem vistas ao mesmo tempo, produzem uma imagem da vida que é bela, surpreendente e profunda. Não existe início, nem meio, nem fim, nenhuma moral, nenhuma causa, nenhum efeito. Em nossos livros, o que amamos é a profundidade de muitos momentos maravilhosos, vistos todos de uma só vez." O livro é sobre o bombardeio da Alemanha e sobre um grupo de norte-americanos que cai prisioneiro dos alemães. Mas em boa parte do tempo não é nada disso. O livro fala de um veterano de guerra abestalhado que pensa que foi abduzido pelos tralfamadorianos. Vonnegut conta a estória da guerra e de Billy nestes pequenos blocos, onde cada um deles descreve uma cena. Seus blocos enfileirados produzem uma imagem encantadora. Tudo sempre muito meigo e apatetado. Como se estivéssemos em um jardim-de-infância e uma professora coquete de uma propaganda de margarina dos anos 50 nos mostrasse um monte de coisinhas repulsivas e bonitinhas. O livro faz previsões sobre o futuro e revela que os Estados Unidos serão balcanizados e divididos em vinte nações insignificantes a fim de nunca mais oferecerem qualquer risco à paz mundial. Chineses furiosos destruirão Chicago com bombas de hidrogênio. Isso vai acontecer em 1976, no futuro do livro. No passado Billy mora para sempre no matadouro 5, porque, como ele explica a noção de tempo dos tralfamadorianos, tudo é sempre todo o tempo. E o matadouro 5 onde ele mora e que é o belo título do livro é o matadouro abandonado onde os alemães prenderam os americanos (o que só é mencionado en passant no finzinho). A obra, cult, é um libelo contra a imbecilidade da guerra. Isso é sempre bom. Li entusiasmados elogios ao livro de Vonnegut. Eu, particularmente, não me sinto motivado a repeti-los, mas gostei de tê-lo lido. Me senti idiotamente bem. É um produto literário emocional e estilisticamente dependente do momento em que foi escrito e publicado. Absurdamente transcendente e genial para uns, nem tanto para outros. Para euzinho, seu texto incomodoso é inequivocamente bom. Deixo o comentário final ao autor, já que o próprio se refere ao seu famoso livro sobre Dresden: "O livro é tão curto, tão confuso, tão desarmônico, porque nada inteligente pode ser dito sobre um massacre. Todos devem estar mortos, sem nunca mais dizer ou querer nada. Tudo deve ser muito quieto depois de um massacre, exceto pelos passarinhos."

Intrínseca, 284 páginas

Sidney Puterman

Some say he’s half man half fish, others say he’s more of a seventy/thirty split. Either way he’s a fishy bastard.

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