"The essential guide to being Polish", por Anna Spysz e Marta Turek

terça-feira, setembro 01, 2020 Sidney Puterman


Meu interesse pela história polonesa recrudesceu ano passado, quando estive na Polônia. Era uma viagem afetiva. Eu e Aninha nos hospedamos no coração da Cidade Velha, na Swietojanska, em frente à Basílica, quase esquina do Castelo Real. Era fim de tarde e início de primavera. Eu mal podia acreditar que estava . Depois de pagar 14 zlotych pro caixa mal-humorado da lojinha térrea, subi a escada em caracol da Taras Widokowy como se subisse pelas raízes. Queria ver o horizonte de Varsóvia com meus próprios olhos. Eu não estava ali à toa: meu pai, meus avós e todos os meus antepassados pela linhagem paterna eram poloneses. Isto me ligava a uma terra de estepes geladas (vêm de lá metade das sequências do meu DNA), em contraponto com minha linhagem materna, toda baiana, de Ilhéus a Salvador, um balaio étnico de negros, índios e portugueses - brasileiro, enfim. Essa brasilidade eu tive o prazer de desfrutar diariamente, desde que nasci; já para me aventurar Polônia adentro eu tive que esperar algumas décadas. Valeu a pena. É uma terra sedutora. Só que o sonho enfim realizado de pisar em Varsóvia - ou Warszawa ("Varchava"), como se diz por lá - aguçou ainda mais minha curiosidade sobre a alma polonesa. Para quem não sabe, a história dos polacos nunca foi fácil. Espremida que nem marisco entre a rocha e o mar - leia-se entre a Alemanha e a Rússia -, a Polônia tem mil anos. Como a maioria dos reinos medievais, foi mudando de tamanho de acordo com as alianças políticas e com o resultado das constantes guerras contra seus vizinhos próximos e distantes. Parênteses: quem quiser conhecer essa história, mas narrada numa versão capa & espada, é imperdível a leitura da lauta trilogia do polonês Henryk Sienkiewicz, Prêmio Nobel de literatura. Adianto que precisa ter fôlego: são três mil páginas, mas tão inspiradas que se tornaram uma âncora da prosa polonesa - "A ferro e fogo", "O Dilúvio" e "O pequeno cavaleiro" (você encontra a resenha dos três títulos aqui mesmo no blog). Como eu dizia, e o livro de Spysz e Turek resumidamente conta, a Polônia cresceu ao derrotar e expulsar os Cavaleiros Teutônicos, se impôs no combate aos rivais cossacos e sofreu um duro revés ao ser ocupada pelos suecos. Rebelde, recuperou sua soberania e se agigantou com o passar dos anos. O país, na condição de grande reino católico do Leste Europeu na Idade Média, e liderando um pacto com a Lituânia, se tornou um dos grandes potentados do continente a partir do Renascimento. No século XVII, com os austríacos postos para fora de sua própria capital pelos otomanos, foram as forças polonesas quem vieram em socorro e expulsaram os invasores muçulmanos de Viena, numa ousadia até hoje rememorada. Mas a História é dinâmica. No século seguinte, uma Polônia enfraquecida foi engolida e gulosamente repartida entre russos, alemães e, não se espante, austríacos. Assim, cortada em fatias que nem pizza, por quase um século e meio - de 1795 a 1918 - não houve Polônia. A plebe impotente e a szlatcha empobrecida viram sua nação ser esquartejada e seu território ser dividido. Ocorre que, debaixo dessa inexistência oficial, o povo manteve viva a identidade polaca. Durante o período das partições (o tal tempo em que deixou de existir um país chamado Polônia), ainda que chegando ao extremo de se proibir à população o uso do próprio idioma, o legado histórico e a tradição oral sustentaram a cultura polonesa ao longo de gerações - polonesas, de fato, mas não de direito. Com a derrota alemã na Primeira Guerra e o desmoronamento do Império Austro-Húngaro em 1918, o país, enfim, saiu dos porões (metaforicamente) e, com a redivisão europeia no Tratado de Versalhes, voltou a ser Polônia. E é certo que jamais o conseguiria, no que dependesse dos russos. Ignorando a nova fronteira, os bolcheviques invadiram o país no ano seguinte ao reconhecimento polonês, na expectativa de tomar de volta a vastidão polonesa e espraiar seu comunismo recém-nascido Europa adentro. Apesar da enorme desproporção de forças, não conseguiram. A surpreendente vitória polonesa contra o muito maior Exército Vermelho era tão improvável que foi batizada como o "Milagre do Vístula" (conto a história desta batalha aqui mesmo no blog, em "Varsóvia, 1920", de Adam Zamoyski). Mas o teimoso renascer polonês foi breve e acabou impiedosamente esmagado em 1939, com a bárbara blitzkrieg nazista (veja as duras imagens dessa invasão em "Kolory Wojny" e a fibra da resistência polonesa em "A cor da coragem", ambos aqui no blog). Em seguida Hitler rachou a ocupação do país com Stalin. Começaram aí mais 50 anos de dominação - seis anos pelos nazistas e 44 anos pelos comunistas. Só depois de mais este meio século de repressão, com a queda do Muro e as conquistas do Solidarnosc, é que a Polônia recuperou sua soberania. O livro nos traz um relato conciso de toda esta epopeia, mas vai muito além da História enciclopédica e proporciona também uma incursão pelo espírito polonês. Que é pra lá de encardido, por um lado, e divertido, por outro. A começar pelo idioma. A língua polonesa, em si, é absolutamente indecifrável se você não for um polonês. Não só a pronúncia, mas a própria grafia é estapafúrdia: embora seja um idioma eslavo, utiliza o alfabeto romano - ao contrário do cirílico, empregado pelas demais línguas eslavas (o que aconteceu pela adoção do Cristianismo em 966, mas faz com que você não tenha as letras corretas para expressar os sons do idioma; daí você pode imaginar a belezura). Esta língua peculiar se tornou uma barreira entre a Polônia e o restante do mundo ocidental - um sempre teve muita dificuldade em entender o outro. A Polônia permaneceu ilhada durante o período comunista, mas, com a liberdade conquistada a partir dos anos 90, uma nova geração migrou para Reino Unido e Estados Unidos, em busca de libras e dólares. Pena que tenha praticamente se restringido ao trabalho braçal, pela incapacidade de entendimento mútuo - a ponto dos poloneses se tornarem sinônimos de peão-de-obra nos países ricos. A situação melhorou com a entrada da Polônia no Mercado Comum Europeu, neste milênio, com uma força de trabalho que já havia se qualificado após a onda inicial. O idioma refletiu a mudança: o refluxo de volta à pátria contribuiu para um novo dialeto, o Polglish, com a importação de dezenas de palavras e expressões em inglês. O vocabulário renovado incluía palavras básicas como ksero (xerox), uploadowac (to upload) ou hejter (hater), até frases inteiras, como "Luknij przez windows'a na mojego nowego car'a" (look out the window at my new car). Nem assim, entretanto, o polonês quebrou sua resistência ao inglês. Por incrível que pareça, muitos poloneses, segundo a autora, ainda consideram o inglês "duro pra falar, difícil de escrever e impossível de ler". Eles não têm noção. Outra prova da falta de noção é que, na Segunda Guerra Mundial, tropas polonesas em Monte Cassino tinham um soldado urso (Wojtek), que comia com os recrutas e carregava armas e munição. Após a guerra, foi viver no zoo de Edinburgh. Convém ressaltar que brasileiros e poloneses têm um forte ponto em comum: aqui nós nos declaramos a terra do "jeitinho" e lá eles sempre têm um jeito a dar em qualquer situação. Tanto, que eles têm uma série de ditos para expressar isso, indo do Jakos to bedzie ("isso vai funcionar de alguma maneira") ao Cos wykombinujemy (nós vamos pensar numa maneira de fazer isso dar certo). Seus apartamentos têm uma denominação típica do período comunista, quando as famílias ficavam por anos na fila para receber uma moradia - que poderia ser uma kawalerka (uma quitinete), um M-2 (um dois quartos) ou um M-3 (um três quartos). No quesito culinária, as autoras dedicam mais de uma página ao meu prato predileto, o pierogi. Elas não me tiraram a dúvida do porquê do nome italiano, mas deve ter mesmo a ver com a origem. Afinal de contas, o pierogi é uma espécie de um ravioli preparado à polonesa - só que muito melhor. O do Zapiecek, então, é imperdível. Eu, vale frisar, só como os pierogi vegetarianos, que, hoje, já são tolerados. Mas, durante muitos séculos, na opinião dos poloneses, um prato de legumes e verduras era forragem animal - ainda que o repolho e o pepino preparados em conserva tivessem sido sempre um hábito. Eu, inclusive, estou comendo um ogórki konserwowe (pepino em conserva, para os íntimos) enquanto escrevo. É oportuno também mencionar o oplatek, um biscoito fininho que, no passado rural, era dado aos animais da fazenda, nas noites de Natal, para que eles pudessem falar com vozes humanas (apesar da tradição inusitada, seja quanto ao estímulo, seja quanto ao orador, não ficou registro do que os bichos disseram). Outra coisa apavorante que aprendemos no livro diz respeito às aulas de História nas escolas. Estas têm um formato singular de aferição de conhecimento, chamado odpytywanie, mas que também atende pelo apelido de odpytka. A dita cuja consiste na wychowawca (o nome em polonês para professora, mas achei válido incluir o nome no idioma original, por razões que você pode adivinhar) escolher a critério dela o(a) infeliz que vai palestrar por 20 minutos sobre algum evento histórico determinado pela própria wychowawca. Que pânico, ehm? Imagina isso aqui. Neguinho já atira no professor por muito menos. Mas não se pode deplorar a educação em um país que, nos tempos de ocupação e de proibição de cursos regulares, tinha uma "faculdade voadora", uma universidade clandestina que a cada semana oferecia suas aulas em uma residência diferente. Alguns alunos brilhantes passaram por esse inusitado sistema, como Marie Sklodowska, que passou à posteridade como Madame Curie (para poder ter acesso a uma posição acadêmica, ela se mudou para Paris e lá se casou com o físico francês Pierre Curie), a primeira mulher a receber o Prêmio Nobel em física. Poucos anos depois, já viúva, descobriu os elementos radium e polonium (assim batizado em homenagem à sua Polônia natal) e recebeu um segundo Prêmio Nobel, desta vez em química. Infelizmente, morreu jovem, pelo câncer adquirido pela sua contínua exposição ao rádio que descobrira. O livro menciona outros poloneses brilhantes, como Mikolaj Kopernik (Nicolaus Copernicus, talvez o mais famoso dos astrônomos), meu xará Jan Szczepanik (o Edison polonês), Kazimierz Funk, o cientista que inventou a vitamina, e o judeu polonês Leopold Infeld, que trabalhou e escreveu um livro a quatro mãos com o judeu alemão Albert Einstein. Infeld emigrou para o Canadá antes da guerra e voltou à Polônia nos anos 50, onde lecionou na Universidade de Varsóvia até sua morte. A questão dos judeus com a Polônia é bem embaralhada. Antes da invasão alemã em 1939, Varsóvia era a maior cidade judia do mundo. Se havia também lá um forte antissemitismo - como havia em toda a Europa Oriental -, é inegável o vínculo que unia poloneses judeus e não-judeus (sobre o amálgama polaco-judaico, indico o romance de Andrzej Szczypiorski, "A bela senhora Seidenman", que, lógico, você também encontra aqui no blog) na construção milenar da nação. Voltando à Segunda Guerra, durante as perseguições nazistas, a católica Irena Sendler, do Zegota, resgatou 2.500 crianças judias. Maksymilian Kolbe era um padre franciscano que salvou da morte 2.000 judeus e também um polonês católico, assumindo o lugar dele em uma condenação à morte por inanição (o padre Kolbe, após duas semanas sem água ou comida, permanecia vivo e os nazistas resolveram apressar sua morte, lhe dando uma injeção letal; foi canonizado pelo papa João Paulo II em 1982 - o polonês a quem Kolbe salvou, Franciszek Gajowniczek, compareceu à cerimônia). Em Jedwabne, os nazistas queimaram vivos 340 judeus em um celeiro. Entre os 4.000 oficiais poloneses assassinados pelos russos em Katyn, 600 eram judeus. Em meio às fotos pessoais que ilustram este post, eu, em Cracóvia, presto minha reverência aos poloneses covardemente mortos em Katyn. Em Auschwitz-Birkenau foi perpetrado um dos maiores genocídios da história da humanidade e foram mortos 150 mil poloneses e 1,5 milhão de judeus. Também acima há o meu registro aturdido diante do que não pode ser compreendido. Fui à Oswiecin e professei lá minha oração cristã pelos meus antepassados judeus. Todo o meu amor e meu deslumbramento por zanzar por esta Polônia rediviva se mistura, sem diluir, na memória desse sofrimento amargo. Até onde sei, nem meus avós, nem meu pai, pisaram novamente no seu país natal. Parece inaceitável, hoje - e é, a qualquer tempo e lugar - esse nível de xenofobia, mas era assim que as coisas se deram em um passado tão recente. Brasileiro até a medula que sou, vira-lata sem etiqueta ou pedigree, carioca raiz, nascido em Botafogo e torcedor do próprio, filho de um polonês do Estácio com uma baiana de Curitiba, mas acima de tudo nativo de uma terra hospitaleira que considera como carioca quem vive no Rio, quem mora no Rio, quem ama o Rio, sem necessidade de linhagem para ser aceito, tenho dificuldade em conviver com este sentimento de aversão e de exclusão. Mas sei que esta é a história da humanidade à qual pertenço (pertencemos todos) e é a história das minorias indesejadas (às quais cada um de nós pertence, sob algum prisma). Lá não foi diferente. Quando nos aprofundamos, um pouquinho que seja, não fica dúvida a ninguém de que a Polônia é sobrevivente de um passado trágico. O país é o resultado milenar de dezenas de povos e culturas, que criaram uma história única, fruto de uma trajetória coletiva de guerras e alianças, vitórias e humilhações, de exclusão e pertencimento, de exílio e regresso. Diversas vezes tentaram aniquilá-la. Jamais conseguiram. Hoje, 1o de setembro, faz 81 anos de mais uma tentativa fracassada de matar a Polônia. Os alemães, como seus antepassados prussianos, e os turcos, e os russos, e os tártaros, e os suecos e sabe-se lá mais quantos, também tentaram. Como fica evidente para quem passeia por esta terra mágica, onde se "fala" esta língua absolutamente incompreensível, tentaram em vão. Niech zyje Polska.

New Europe Books, 313 páginas

Obs.: Na foto da família na árvore, à esquerda, aquele guri de pernas rechonchudas, pendurado no colo da moça gordinha, é meu pai, em 1929, nos braços da minha avó Cirla, em Rembertów, a leste do Vístula.

Sidney Puterman

Some say he’s half man half fish, others say he’s more of a seventy/thirty split. Either way he’s a fishy bastard.

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