"A vida louca dos revolucionários", por Demétrio Magnoli

segunda-feira, setembro 07, 2020 Sidney Puterman


Demétrio Magnoli é um craque do texto e da análise política. Sua leitura é garantia de agudeza e uma sempre implícita ironia. Já o conhecia dos artigos. Agora tive a satisfação de uma primeira incursão em um livro seu - fala de revolucionários, o que vem bem ao caso na data de hoje. Ou não teria sido D.Pedro I um revolucionário, derrubando o pai, Portugal e os monarquistas com uma só tacada? Abordagem que vale a pena considerar. Mas não desta vez, pois, de acordo com o cardápio de Demétrio, o bufê se restringe aos personagens mais recentes. Nesta compilação, a pretexto de nos apresentar algumas personalidades revolucionárias, Demétrio Magnoli nos oferece, na prática, uma saborosa introdução à geopolítica do século XX. O que é, de fato, ser "revolucionário"? Nós habitualmente nos referimos assim a algumas figurinhas carimbadas. Gandhi, Lenin, Danton, Guevara, Mandela e Malcolm X, entre outros menos votados, são hours-concours neste álbum. Mas qualquer um que conheça o estilo de Magnoli sabe que obviedade não casa bem com ele. Como o autor já antecipa na abertura, a proposta do livro é fugir dos nomes demasiado conhecidos. Boa. Talvez seja uma forma de buscar a essência da denominação "revolucionário", hoje muitas vezes confinada aos limites de um estereótipo marqueteiro. Demétrio escolhe doze cidadãos que julga emblemáticos. Eu conhecia alguns de nome, mas poucos com alguma profundidade. Outros jamais tinha ouvido falar. A leitura, por isso, fica ainda mais provocativa. E a história dos personagens selecionados por Magnoli vêm junto e misturada com a dos seus aliados e antagonistas, abrindo sobremodo o leque. Há uma unidade entre os selecionados que dá substância à leitura: como convêm aos que propõem mudanças de paradigma, estão (quase) sempre do lado mais fraco da corda. Para sintetizar o grupo de biografados, poderíamos dizer que quatro deles militaram pela causa negra e pelo anti-colonialismo, três o fizeram pelos ideais comunistas, um em prol do fascismo modernista, um pelo sindicalismo sul-americano, um pela morte da ocidentalidade judaico-cristã (e também dos muçulmanos não-fundamentalistas), uma contra o establishment alemão e, o meu predileto, um indiano britânico a favor da democracia e contra o totalitarismo.

Magnoli começa pelo norte-americano John Reed, que, com seu "Os dez dias que abalaram o mundo", ajudou a construir a narrativa da Revolução Russa, mesmo tendo sido engolido por ela. O jovem editor do "The Masses" ("um jornal dirigido contra a rigidez e o dogma em qualquer lugar em que se encontrem") não soube identificar a tirania quando ele próprio se tornou parte dela. Sua antiga companheira do Village, a anarquista Emma Goldman, chegou a Moscou para ajudá-lo na apologia do regime e o que encontrou foi a tragédia. O Exército Vermelho matava os adversários e os diferentes. Reed, ainda iludido, adoeceu e definhou por vinte dias. Seu amigo Lincoln Steffens escreveu: "O espírito revolucionário o capturou. Ele tornou-se um guerreiro de uma causa, um revolucionário aqui e um comunista na Rússia. Ele não sorriu mais." Ao mesmo tempo, Lenin publicava seu livreto "O esquerdismo, doença infantil do comunismo". Logo no seu perfil de abertura Magnoli nos deixa entrever que falar de revolucionários é falar de ilusões. 

O segundo mini-biografado é o arquétipo do revolucionário e merece aqui um espaço privilegiado. Trata de Viktor Serge, nascido Viktor Lvovich Kibalchich, belga russo que foi preso em Paris, aos 27 anos, como bolchevique, sem ter nunca na vida pisado na Rússia dos seus pais. Na prisão, sobreviveu à gripe espanhola e acabou trocado como refém de guerra, desembarcando em Petrogrado (segundo Serge, a "Capital do Frio, da Fome, do Ódio e da Tenacidade"), em janeiro de 1919. Ele, um anarquista de origem, se tornou um bolchevique de prestígio, mas sem compartilhar da visão exclusivista do Partido, já que o ímpeto contrarrevolucionário dos mencheviques também lhe dizia respeito. Não obstante, o comando anarquista que aderira aos bolcheviques na luta contra os exércitos brancos fora traído. O terror vermelho se impunha e Serge pressentia isso: "O perigo está em nós mesmos." Kronstadt, símbolo da Revolução de Outubro, esgotada pela miséria, tinha seus marinheiros exigindo o fim do comunismo de guerra e a renovação dos sovietes, por meio de eleições. Seu brado era "sovietes sem bolcheviques". Foram acusados de adversários da Revolução, esmagados no confronto e tiveram fuzilados os sobreviventes. Sistematicamente, a Revolução Russa, após ter matado os inimigos, matava seus apoiadores. Magnoli conta como o idealista Serge tentou manter vivos seus ideais. Abandonou, por fracassada, a colônia agrícola à qual se recolhera e foi para Berlim, onde testemunhou o trágico fracasso do levante comunista de 1923. Voltou à União Soviética após a morte de Lenin, quando assistiu Stalin se livrar dos aliados e montar uma gigantesca estrutura burocrática com meio milhão de novos comunistas, sedentos por empregos em um país miserável. Numa carta em 1928, Serge diria que "os que fizeram a revolução são removidos pelos que ascendem". Comunista apaixonado e trotskista por convicção, se opôs desde o início ao "terror vermelho" e foi expulso do PCUS (Partido Comunista da União Soviética), enquanto Trotsky seguia para o exílio. Viktor, sempre contestador, amargou três meses de prisão. Ao sair, se dedicou a escrever - seu relato da ascensão stalinista somente foi publicado no país mais de meio século depois. Como tradutor no Instituto Lenin, assistiu o Plano Quinquenal criminalizar os proprietários rurais, coletivizar a agricultura e semear milhões de mortes. A miséria grassava e o Estado perseguia e matava. Ele não se omitiu e denunciou a prisão de milhares de socialistas, anarquistas e sindicalistas, enviados para o Gulag. Natural que a vez dele também chegasse. Foi preso em 1933 e seus interrogadores exigiam que confessasse uma inexistente conspiração trotskista. Acabou deportado para o Casaquistão, onde viveu na miséria e ficou retido por três anos, até que uma coalizão internacional de escritores comunistas medalhões conseguiu sua libertação. Foi para a Bélgica, de onde foi expulso, e rumou para Paris, onde se tornou correspondente do POUM, "união dos trotskistas da Oposição de Esquerda com antistalinistas da Catalunha que se moviam na direção da Internacional Socialista", no dizer do autor. Enquanto Trotsky se opunha ao POUM, Serge considerava suas críticas como "um reflexo do seu sectarismo bolchevique e uma aversão visceral à diversidade política entre os revolucionários". Em resumo, Viktor admirava Trotsky, mas cada vez mais identificava nele o mesmo totalitarismo stalinista que repudiava. O relacionamento dos dois foi envenenado por intermédio do filho de Trotsky, Leon Sedov, que tinha por homem de confiança Mark Zborowski (vulgo Etienne), um agente infiltrado da NKVD (Comissão do Povo para Assuntos Internos), a polícia política soviética. Etienne, que, suspeita-se, assassinou Sedov, inoculou divergências entre Serge e Trotsky. Um enredo intrincado que Putin hoje não se envergonharia de a(ssa)ssinar. Paris caiu nas mãos dos nazistas e Serge fugiu para Marselha, de onde migrou para o México, mais de um ano após o assassinato de seu ídolo e amigo Trotsky, com quem já havia se reconciliado. Ilhado em um mundo em constante transformação, o jornalista russo ficou sem ter onde publicar seus textos: os Estados Unidos, porto natural para o seu discurso, eram agora aliados dos soviéticos. Morreria alguns anos depois, de volta a Paris, sempre insatisfeito com seus livros, com a falta de reconhecimento e com a falta de mercado ("Meus livros tiveram um destino singular. Na minha primeira pátria, a Rússia, e exatamente porque eu pretendia servi-la sem mentiras, foram proibidos. Nos Estados Unidos, os editores conservadores consideraram-nos demasiadamente revolucionários e os editores de esquerda demasiado antitotalitários."). Ainda assim, suas memórias e seus livros permaneceram relevantes, como destaca Magnoli: "Serge foi enterrado sob uma lápide sem inscrições. Seus livros sobreviveram, cada vez mais lidos e apreciados. (...) São clarões de lucidez num tempo de destruições, ruínas e sombras."

Filippo Tommaso Marinetti, apresentado como o poeta do fascismo, foi o criador do futurismo, estilo artístico italiano que se perdeu no tempo. Entusiasta da modernidade, da violência e das guerras, a relevância de Marinetti como revolucionário é bem contestável. Ainda que tenha contribuído para a concepção e instauração do fascismo italiano, nunca foi suficientemente levado a sério. Não obstante, seu nome está marcado para sempre no Brasil: em uma viagem sua ao país, com sua defesa da arte futurista e das novas opções de transporte, do avião ao ônibus, acabou batizando o lotação baiano, que até hoje, mais de cem anos depois, ainda é chamado de marineti pelo povo de Salvador. Apologista bélico, morreu de enfarte no front, como combatente voluntário, aos 65 anos. Sua morte comoveu os romanos, que acompanharam seu féretro sob forte emoção. Mussolini viu na procissão pelo velho soldado um manifesto de apoio ao seu regime, e aproveitou para fazer um comício empolgado. Era 16 de dezembro de 1944. A próxima grande aparição pública de Il Duce foi o próprio enforcamento.

Um outro revolucionário retratado por Magnoli seria um ativista negro polêmico em uma época de Black lives matter. A proposta de completa evasão dos negros dos Estados Unidos, feita pelo jamaicano Marcus Garvey, no início do século passado, não seria viável, nem desejada, agora (provavelmente jamais o tenha sido), mas inflamaria a fogueira midiática. Garvey, em seu início, aderiu ao discurso de Bruce Grit, lendário pan-africanista nascido escravo e que defendia a "resistência organizada" contra o retrocesso segregacionista no Sul dos Estados Unidos. O apelo de Grit não tinha meias-palavras: "Se eles queimam nossas casas, queimem as deles". A grande diferença a dividir os dois baluartes da causa negra era que Bruce Grit defendia a integração e a justiça racial na América; Marcus Garvey era pelo retorno negro ao continente africano, onde se projetava antecipadamente como um imaginário "presidente da África". As posições de Garvey eram tão radicais que ele conseguiu o prodígio de se unir à Ku Klux Klan: ambos, ele e os rascistas linchadores, queriam os negros fora do país. Garvey criou a UNIA (Associação Universal para Progresso dos Negros) e fundou a Black Star Lane, uma companhia marítima para transportar os negros norte-americanos de volta para a África. Enfatizava que o lar natural dos negros não era a América, mas a "pátria africana". Não à toa, Garvey estava em rota de colisão com outras lideranças negras da época: ele atribuía à UNIA a missão de ser um movimento "contra negros que não querem ser negros" - o que incluía todos aqueles que não pensavam como ele, naturalmente. Sua ânsia pelo protagonismo acabou reconhecida. A "Primeira Convenção Internacional dos Negros", realizada em 1o de agosto de 1920 em um Madison Square Garden abarrotado, com 25.000 presentes, o elegeu "presidente provisório da África". Reproduzo aqui o cabeçalho da matéria publicada pelo New York World: "O Moisés da raça negra veio a Nova York e lidera uma organização universal que já representa 2 milhões, prepara-se para eleger sua alta direção e sonha reviver as glórias da Antiga Etiópia". No evento foi aprovada uma "Declaração dos Direitos dos Povos Negros do Mundo", que reivindicava direitos iguais para negros e brancos, o fim das leis de segregação racial e a soberania para os povos africanos. Preso em 1925 e deportado em 1927, Garvey fundou na Jamaica, o seu país natal, o PPP - Partido Político do Povo. Em 1935 mudou-se para Londres, de onde assistiu Tafari Makkonem, que assumiu o trono etíope com o nome de Hailé Selassie I, ser expulso da Abissínia por Mussolini. Ao mesmo tempo, nos EUA, 12 milhões de negros estavam sendo ameaçados pelos supremacistas brancos de deportação para a Libéria, sob o eufemístico epíteto de "repatriação" - coerente com o brado de "Back to Africa", de Garvey, que, mais uma vez, polemicamente apoiou os racistas. Garvey prosseguiu seu ativismo na capital britânica, agora ao lado de Ras (título honorífico etíope para chefe) Selassie, ou Ras Tafari (nome de batismo do imperador) - vem daí a origem do Movimento Rastafari. Segundo Magnoli, a "mitologia rasta, de fortes tonalidades políticas, organizou-se em torno da ideia de que, no dia da libertação, navios da Black Star conduziriam os negros de todo o mundo à Terra Prometida africana." Em 1966, após a morte de Garvey, Ras Tafari visitou a Jamaica, onde uma multidão de 100 mil rastas o aguardava fumando maconha pelas ruas. Rita Marley teve um encontro com o imperador, unindo a partir daí, de forma indissolúvel, o reggae à religião rastafari. O combativo Moisés negro acabou se perdendo na poeira dos tempos.

Cyril James, bem pouco conhecido por aqui (aliás, como a maioria dos biografados de Magnoli), era um filho culto da classe média negra trinidadiana e um habilidoso jogador de cricket. Integrou em Londres o Partido Trabalhista Independente, o ILP, à esquerda do Partido Trabalhista tradicional. Quando das sucessivas cisões da esquerda internacional, reagindo à orientação da Segunda Internacional, de Engels, e não aceitando a submissão à Terceira Internacional ("um polvo comandado por Stalin a partir do Kremlin", nas palavras de Demétrio), dissidentes do partido fundaram o Bureau de Londres, que acabou conhecido como "Internacional Três e Meio", que tinha o propósito de unir as social-democracias europeias em um único movimento. Trotsky fez do Bureau um trampolim para edificar a Quarta Internacional, à qual James aderiria, integrando a Liga Nacional Socialista. Como o foco era quase que exclusivamente o proletariado europeu, Cyril logo derivou, ainda que dentro das suas convicções socialistas, para o pan-africanismo, criando o Escritório Internacional de Assistência à África e lançando um livro dando sustentação histórica à luta pela independência de Trinidad. Mas sua maior obra veio em seguida, "The Black Jacobins", onde mostrava como os líderes revolucionários haitianos "seguiam a corrente irresistível da Revolução Francesa". Como observa Magnoli, o trinidadiano interpretava a questão africana de uma maneira particular, à parte da questão racial: o fazia sob "o prisma do capitalismo, do imperialismo e da revolução social". Caiu nas graças de Trotsky, com quem se encontrou pessoalmente no México, pela ponte que representava para o universo negro, mas as diferenças os separaram: a fé no proletariado do russo era contraposta pela fé no capitalismo de Cyril (que já naquela época intitulava a União Soviética de "capitalismo de Estado"). A atuação de James pelo movimento negro repercutiu pelas décadas seguintes. Mesmo tendo sido preso e deportado em 1953 dos Estados Unidos, por conta do seu ativismo político, viria a se tornar, segundo Demétrio, em "um ícone da cultura radical ocidental". Voltou aos EUA nos fim dos anos 60, a tempo de se encontrar com o dissidente dos Panteras Negras e porta-bandeira do Black Power, Stokely Carmichael. Ironicamente, o pan-africanismo que ele tanto defendeu com legítimo idealismo acabou ferramenta legitimatória de governos africanos ditatoriais.

Não escondo que George Orwell era o mais ansiado dos capítulos para mim. Suas obras são uma concepção distópica da primeira metade do século XX, que se projetam no terceiro milênio. O conhecimento dos pormenores da vida do coerente revolucionário George Orwell, nascido Eric Arthur Blair, espicaça o interesse ("espicaça" não é isto que você está pensando, embora George viesse a se descobrir estéril). Após ter inusitadamente trabalhado por cinco anos como policial na Birmânia, seu idealismo radical - o combate pessoal ao fascismo e a defesa da democracia - o levou a abandonar uma promissora carreira como jornalista, em Londres, para se engajar como soldado voluntário do POUM (Partido Operário de Unificação Marxista), contra Franco na Guerra Civil Espanhola. Foi ali também que ele descobriu a guerra interna da esquerda, quando, dentro do próprio confronto com o fascismo, percebeu que o partido comunista estava mais interessado em implodir o POUM do que em derrotar o franquismo. Uma deliberada dissensão comunista (havia uma guerra oficial e uma guerra subterrânea, na definição do autor) provocou a queda do partido operário e a vitória de Franco. A propósito, seu livro sobre a Guerra Espanhola foi uma das primeiras narrativas confiáveis sobre o evento. Sobre o tema, o próprio Orwell tentou publicar depois as Memórias de Viktor Serge, que, exilado no México, tinha uma cópia única do texto e temia postá-la (tempos sem xerox, sem computador, sem internet). Como Serge, também foi acusado pela esquerda de trotskista, corrente da qual ele sempre fizera troça, definindo-a assim: "Os fatos de que os trotskistas são em todos os lugares uma minoria perseguida e de que a acusação usualmente dirigida contra eles (a de colaborarem com os fascistas) é obviamente falsa criam a impressão de que o trotskismo é intelectual e moralmente superior ao comunismo; mas é duvidoso que exista muita diferença". O mundo de então era bem confuso para quem se comprazia em manifestar apoio à esquerda. Os defensores da esquerda eram jogados para lá e para cá pelos seus líderes supremos, de quem dependiam para ter uma "opinião" (até hoje é assim, e o esquisito comportamento não é exclusivo da esquerda, pelo menos por aqui). De críticos do nazismo, súbito os esquerdistas passaram a ser seus aliados, com a aliança entre Hitler e Stalin. Durante quase dois anos, os esquerdistas mundo afora criticaram o imperialismo britânico e norte-americano e elogiaram o nacional-socialismo alemão. O nazismo invadiu a Polônia, ocupou Áustria e Tchecoslováquia e marchou sobre a França, botando o combustível russo de Stalin nos tanques que subjugaram Paris. Intelectuais ingleses que viriam a integrar o Grupo de Historiadores do Partido Comunista britânico assinaram manifesto de apoio a Hitler, entre eles o icônico Eric Hobsbawn. Orwell diria: "Os intelectuais que estão hoje argumentando que democracia e fascismo são a mesma coisa me deprimem horrivelmente." Não à toa, Orwell foi sistematicamente difamado pela esquerda ao longo dos anos. Lúcido, tinha uma visão clara de um mundo conturbado: "A Guerra na Espanha e outros eventos de 1936-37 alteraram a escala e, daquele momento em diante, eu sabia onde me situava. Todas as linhas de trabalho que escrevi desde 1936 foram escritas contra o totalitarismo e a favor do socialismo democrático." Ainda que radicalmente avesso à dominação inglesa, foi adversário do movimento comunista no Reino Unido, "controlado por pessoas mentalmente subservientes à Rússia e que não têm outros objetivos senão manipular a política externa britânica de acordo com os interesses da Rússia". O escritor sempre se ateve à denúncia da duplicidade moral: "a disposição para criticar a Rússia e Stalin é o teste da honestidade intelectual", afirmou ainda antes do fim da guerra, em 1944. Um ano antes da sua morte precoce, aos 46 anos, já doente, George Orwell forneceu à amiga Celia Kirwan - funcionária do serviço de propaganda do Ministério do Exterior britânico - uma lista com 38 nomes de personalidades da esquerda que não eram "confiáveis". A lista só veio à público meio século depois, e alguns pontuais detratores o rotularam de "delator". Não obstante, na pretensa lista não havia informações sobre as pessoas relacionadas - e uma possível falha moral na elaboração da lista ratifica sua humanidade imperfeita. Gosto muito do epitáfio escrito por Demétrio ao final do texto: "O escritor morreu em janeiro de 1950. Hoje, seus três inimigos mortais - o imperialismo, o fascismo e o comunismo soviético - fazem parte do monte de ruínas da história do século XX. A revolução dos bichos e 1984 são obras imortais, mas a atualidade de Orwell não está exatamente na temática de suas duas grande sobras. O asceta moralista ensinou-nos algo sobre a conspurcação politica da linguagem: os abomináveis eufemismos fabricados por burocracias governamentais e máquinas partidárias com a finalidade de ocultar a verdade objetiva. Lendo Orwell, aprendemos a ler o que está escrito abaixo dessa camada de sujeira."

A dissertação de Magnoli sobre o sindicalista boliviano Juan Lechin Oquendo amplia nossa percepção de que não sabemos nada mesmo. A política boliviana, então, é um buraco negro e raso. A despeito da minha ignorância, entretanto, o autor não me fez cair de amores pela trajetória de Oquendo. Bom saber que foi defendido um viés comunista no império inca, em "El ingenuo continente americano", escrito nos anos 20 por um tal Tristán Marof, que, na verdade, era Gustavo Adolfo Navarro. Nada é o que parece. Curioso que, diferentemente de agora, as raízes indígenas da população não eram um componente do debate político, restrito às concepções proletárias. Os quechuas, aimarás, chiquitanos e guaranis que compunham dois terços da população boliviana, de acordo com o censo de 50, não tinham "lugar de fala". Eram todos apenas operários. A memória do líder sindical Lechin Oquendo, que quase foi presidente e chegou a ser considerado "vice-rei" da Bolívia, pode ser resumida pelo seu filho único, o dramaturgo e escritor Juan Claudio Lechin: "Meu pai foi um líder sindical por mais de 40 anos. Durante sua era, os sindicatos na Bolívia abrigaram todas as tendências políticas - comunistas, anarquistas, liberais, maioístas, trotskistas, nacionalistas. Todas as camadas de bolivianos eram membros - camponeses, motoristas de táxi, mulheres, cegos, mineiros." Em seu livro, Lechin sugeriu que "o conceito de fascismo serve para iluminar as estratégias políticas de Fidel Castro, Hugo Chávez e Evo Morales". Como ressalta Magnoli, enquanto Lechin filho dava entrevistas sobre Lechin pai, que o autor intitulou "vice-rei da Bolívia", um grupo pacífico de indígenas que protestava contra a construção de uma estrada apanhava nas ruas de um bando de militantes do MAS (Movimento ao Socialismo), armados de porretes e bananas de dinamite. 

O auto-declarado marxista Frantz Fanon, autor do cultuado "Os condenados da Terra", é mais um nome bem pouco mencionado nos dias atuais. Um negro francês da Martinica, psiquiatra estudioso e revolucionário, que se engajou pela libertação da Argélia e defendeu a cultura universal. Sua formação pessoal passou pelas armas: com seu país como uma colônia francesa, e com as forças navais rendidas ao regime colaboracionista de Vichy, reagiu à opressão sexual dos marinheiros franceses contra as jovens martinicanas, rumando para a Dominica britânica e se alistando pela França Livre. Lutou em Casablanca, na Argélia e na Alsácia, onde, após arriscarem a vida, ele e a tropa de negros caribenhos foram alijados do desfile da vitória sobre os nazistas. Nos anos seguintes se tornou um pesquisador de renome e um dos principais porta-vozes da revolução argelina (ainda que a História lhe prive deste reconhecimento), mas sempre fiel às suas convicções de integração e universalismo, como escreveu, ainda em seus anos de juventude: "Eu sou francês. Eu me interesso pela cultura francesa, pela civilização francesa, pelo povo francês (...). O que posso fazer, eu, com um Império negro?" Um câncer precoce vitimou o revolucionário, que da Tunísia foi à Moscou, em busca de tratamento, mas, sem sucesso, de lá seguiu para os Estados Unidos, onde imaginava ter mais chances - senão de cura, ao menos de amenizar as dores e seu próprio fim. Seu passado anti-colonialista fez dele suspeito de comunista entre os americanos. Sua busca pela cura nos EUA fez dele suspeito de traição pelos comunistas. Encerra Magnoli que "os livros escolares da Argélia contêm imagens e curtas biografias dos vultos da Revolução, mas Fanon não está entre eles. A memória e o esquecimento sempre fazem sentido."

E o que dizer de Sayyid Qutb? Demétrio busca o muçulmano que inventou a Jihad e ensinou Osama a odiar a América, terra de todo o mal. Qutb, um egípcio misógino que passou algum tempo nos EUA nos anos 40, retornou ao seu Egito natal e escreveu uma série de livros condenando a cultura ocidental e defendendo o retorno aos ensinamentos originais de Maomé. Como instituição dedicada a este resgate, fundou a Irmandade Muçulmana, que compôs com o governo emergente de Nasser. Este logo viu que os muçulmanos fanáticos eram uma ameaça ao seu governo, e prendeu Qutb - algum tempo depois o enforcaria. O irmão de Qutb foi para a Arábia Saudita, onde seu discurso radical caiu como uma luva. Aperfeiçou os textos de Qutb e liderou os esforços por uma pregação fanática e um ataque contra o Ocidente. Em uma das suas palestras, como destaca Demétrio, o estudante Osama bin Laden estava na audiência. As ideias violentas de Qutb germinaram e impactaram para sempre o nosso mundo em 11/9 - que nesta sexta-feira completa 19 anos.

Ulrike Meinhof é integrante do grupo terrorista alemão Baader Meinhof, nos anos 60 e 70. Não dá nem para identificá-la como uma protagonista legítima da própria biografia, tanto que Magnoli se vale de outros personagens para contar sua curta trajetória. No bojo de um protesto jovem e violento contra a hipocrisia de um governo dissimuladamente solidário ao nazismo, acabou inaugurando uma vertente antinazista antissemita e se aproximando de grupos árabes pró-palestina. O fim foi pouco glorioso. Presos, os violentos ativistas acabaram se suicidando. Brincar de terrorista com policial alemão acaba sempre em suicídio. Evite.

O capítulo dedicado a Steve Biko é saboroso, pois há pouco conteúdo disponível por aqui sobre o período do apartheid na África do Sul. Aprendi no capítulo que a expressão vem do africâner "apart-heid", que significa "marcha separada". Nele, o governo local, a partir de 1949, criminalizou o casamento misto e estipulou uma classificação da população do país em critérios de cor e idioma, constituindo quatro grupos principais - brancos, negros, coloured (mestiços) e asiáticos. O grupo dos negros tinha nove subdivisões, num esforço de retribalização da população sul-africana. Biko e seu irmão ingressaram na luta política após serem presos como suspeitos de integrar o Poqo (ala militar do PAC, o Congresso Pan-Africanista de Azânia). Os anos 60 pareciam o Éden das siglas no país. Além do PAC e do Poqo, havia o CNA (Congresso Nacional Africano), o MK (Umkhonto weSizwe), o UCM (Movimento Universitário Cristão), a NUSAS (União Nacional dos Estudantes Sul-Africanos), o Movimento de Consciência Negra, o BCP (Convenção do Povo Negro) e a SASO (Organização dos Estudantes Sul-Africanos), que Biko viria a liderar. Demétrio descreve como o líder negro, que tanto inspirou a luta contra o regime discriminatório, não era propriamente um defensor da causa racial - e sim um idealista da liberdade. Biko lutava contra a colonização secular da África e defendia o valor da genuína cultura africana. Admirador de Nelson Mandela, Steven Biko se tornou famoso com a coluna I write what I like (cujo título me faz lembrar o daqui do blog Eu li e achei isso, que não tem fama nenhuma) e manteve até o fim dos seus dias a convicção de que sua luta não tratava de uma questão exclusivamente dos negros, e sim de todos os oprimidos pelo regime sul-africano. Morreu jovem, nas celas do regime que combatia.

O autor opta pela sanguinária performance do cambojano Pol Pot para fechar sua coleção. Um genocida psicopata que promoveu mais uma daquelas revoluções comunistas que faz a humanidade começar do zero. Literalmente: ele decretou o Ano Zero como o primeiro de governo do Khmer Vermelho. Já os outros números do seu reinado foram menos tímidos: 1,5 milhão de cidadãos mortos em 4 anos de administração, mais de 20% dos cambojanos. Um dos três países da Indochina (ao lado de Vietnam e Laos), o Camboja era uma bomba-relógio, em atrito com seu antigo colonizador, a França, seu explorador milenar, o Japão, e seu sempre malquisto vizinho, o Vietnam. Seu rei deposto se aliou à China e aos vietcongues do Vietnam do Norte, apoiando a insurreição do Khmer Vermelho. Ainda que sem peso no início do conflito, sob o comando de Pol Pot a força guerrilheira foi encorpando física e ideologicamente: em breve eram mais de 100.000 soldados, que passaram a controlar a maior parte do país. Após a tomada da capital, Phnom Penh, Pot expulsou a população: 2 milhões de cambojanos deixaram a cidade a pé, para trabalharem nas plantações coletivizadas de arroz. Pol Pot via na sua própria gente os "inimigos da nação". O nome verdadeiro do ditador ensandecido era Saloth Sar e foi Secretário-Geral do Partido Comunista nos 12 anos anteriores ao seu golpe. Nunca se soube a razão do nome adotado. Há quem diga que eram as iniciais de Politique Potentielle. Outros dizem que Pol era o nome dos aborígenes cambojanos. Não importa. A influência do seu apelido idiota sobre o número de mortos é nenhuma. Evidenciando que o passado sempre está à porta, na semana passada morreu Kaing Guek Eav, o "Camarada Duch", aos 77 anos. Era o torturador chefe do Khmer Vermelho e, segundo a notícia publicada nesta quinta-feira, 3 de setembro, assumiu ter supervisionado a morte de ao menos 14 mil pessoas na famosa prisão Tuol Sleng, a popular S-21, um campo de extermínio e um símbolo do genocídio. Com a queda do regime, fugiu para a Tailândia e foi preso em 1999. Em seu julgamento, o temido torturador disse acreditar que "apenas 20% das informações extraídas durante as sessões de tortura correspondiam à verdade". Praticamente 100% dos torturados morreram após fornecer as informações. 

Pondo momentaneamente os revolucionários de lado e dando um leve pitaco na capa, eu tiraria aquela padronagem do fundo, que embola e empastela a arte principal, que são os perfis em P&B dos biografados dentro dos escaninhos dispostos na silhueta vazada de uma cabeça. Só pela explicação complicada dá pra você perceber quão confuso é. A tipologia do título também não ajuda nada. O miolo, com páginas pretas com letras brancas, e com páginas estampadas em preto 50% com letras pretas, é um desserviço à leitura. A fonte dos entretítulos e das páginas duplas antes de cada biografado funcionam bem e são coerentes com a proposta gráfica "revolucionária". No restante, atrapalham ao invés de valorizar.

O conciso livro de Demétrio Magnoli traz uma contribuição importante ao pensamento político, da concepção à narrativa. De timoneiro neste bonde por esta segunda divisão da geopolítica, Magnoli nos conduz por um planeta complexo e cruel. E, acima de tudo, não nos deixa esquecer que, se o necessário idealismo pode mudar o mundo, pode ser também somente inócuo e violento.

Leya, 239 páginas

Obs.: Na foto, o artigo de Demétrio sob o livro discute questões importantes no Brasil de agosto de 2020. Em plena pandemia, um grupo de manifestantes pró-governo se organizou para defender a condenação de uma menina de 10 anos (estuprada pelo tio!) a parir o priminho indesejado. Brasil profundo.

Sidney Puterman

Some say he’s half man half fish, others say he’s more of a seventy/thirty split. Either way he’s a fishy bastard.

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