"Talvez Esther", por Katja Petrowskaja

segunda-feira, setembro 14, 2020 Sidney Puterman

Lírico, melancólico, dolorido. A jornalista russa reencontra seu passado escrevendo em alemão ("a língua do inimigo") sobre a história da família polaca na diáspora ucraniana. Seus antepassados têm nomes judeus, sua história enterrada era toda judaica. E vinha de regiões distantes do sul. Crescida em Kiev, sempre imaginou a Polcha (o nome russo para designar a Polônia) uma terra estrangeira bela e inatingível. Foi lá que Katja começou a escarafunchar suas raízes. Ela começa narrando seu embarque em uma plataforma de Berlim, rumo a Varsóvia (não duvido que tenha subido no mesmo trem em que embarquei há um ano, carregando livros e expectativas). Um relato sobre o passado desaparecido de um povo que era seu e ela não sabia. Soube adulta, aos poucos. Por isso suas memórias são descosidas. Seu sobrenome russo era uma ficção antiga, de judeus a correrem da morte e se camuflarem em eslavos bolcheviques. Na sua pesquisa delicada, Petrowskaja descobre um ramo da família todo ele dedicado ao ensino dos surdos-mudos, com dezenas de alunos que migraram com quem fugia. Já eram uma sobra de antigos pogroms. Os que não morreram de bala ou de pancada, morreram de fome, exceto um ou dois. Encontra físicos e heróis de guerra. Encontra, entre as ancestrais, vizinhas judias de Molotov, que esbarravam com o futuro Ministro das Relações Exteriores nas escadas do prédio. Ele iria assinar o pacto germano-soviético de esquartejamento da Polônia. Encontra um tio-avô comunista, chamado Judas Stern, que em plena capital soviética tentou matar o embaixador alemão, antes da guerra começar, e que foi executado por isso (há a suspeita de que ele havia cometido o atentado agindo como um espião de Stalin, a mando soviético, e a ele, Judas, teria sido prometida a liberdade após um julgamento e uma execução falsos - mas os russos usaram balas de verdade para atirar na cabeça dele). A avó Rosa, que nunca havia dito uma palavra sequer em iídiche, e que, de uma hora para outra, diante de um disco velho trazido do sebo por Katja, desandou a cantar dezenas de músicas judias. São lembranças prosaicas, de quando em vez, mas quase sempre tristes. Encontra um mal-batizado (Adolf!) parente bastardo, morto em 1938, talvez um surdo-mudo duplamente no lugar errado. Sua cidade, Kalisz, foi visitada por Petrowskaja, que pisou em ruas cujo pavimento era formado pelas lápides do cemitério israelita: um lugar onde até hoje a população pisa sobre judeus mortos. Há também um avô que voltou quarenta anos depois do fim da guerra, para morrer meses após; e uma avó que esperou quarenta anos pelo retorno do marido. Por ele, Katja viajou até a cidade austríaca de Mauthausen, onde houve um campo de concentração clandestino. Como em todos os outros, lá também morreram milhares, e talvez fosse de lá que esse seu avô tivesse vindo, um sobrevivente inesperado, que por quatro décadas resolveu não voltar. Devia ter suas razões, especula (não à toa, o governo russo não admitia que russos sobrevivessem à ocupação, sobrevivente bom era sobrevivente morto). Katja não logrou saber. Nas suas andanças atrás da própria história, esta acabou em desencontro - mesmo ao seu redor essa história foi sempre uma história deliberadamente não contada. Outras transbordaram, mas pareciam inverossímeis, como a que narrava que, na porta da própria casa da autora, na Kiev da sua infância, uma tia-avó foi deixada para trás na evacuação da cidade, quando, por determinação do comando nazista, todos os judeus receberam a ordem de caminhar para a morte - esquecida sozinha no apartamento, semi-paralítica, ela desceu as escadas e encontrou as ruas vazias. Depois de zanzar a esmo, se arrastando, pediu - a uma dupla de soldados alemães que encontrou - que lhe indicassem a direção de Babi Yar, o campo de extermínio. Dela não se sabe bem o nome. Talvez Esther.

Companhia das Letras, 236 páginas

Sidney Puterman

Some say he’s half man half fish, others say he’s more of a seventy/thirty split. Either way he’s a fishy bastard.

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