"Sara", por Marek Halter

segunda-feira, setembro 21, 2020 Sidney Puterman


Um romance bíblico, escrito em um estilo antigo, narrado em primeira pessoa por Sara, no tempo em que ela se chamava Saraí e era a filha cobiçada de um dos mais ricos potentados de Ur. Estão presentes na narrativa referências bíblicas mais e menos conhecidas. Muitas eu ignorava totalmente, o que não surpreende ninguém, porque eu, na minha ignorância, sou incapaz de dizer o que é bíblico e o que não é. Mas o trecho da História (ou lenda) recortado por Halter é belíssimo e me encheu de perguntas. Muitas sobre o conteúdo, outras sobre a forma, e ainda mais algumas sobre o autor. Ou seja: mesmo já tendo lido o livro, e gostado, tenho muito mais perguntas que respostas. Marek Halter havia me impressionado alguns anos atrás, quando li seu posfácio de "Rutka", tão encorpado conceitualmente que para mim é um livro à parte. Não conhecia o autor, e a digressão histórica que ele fez sobre a presença judaica na Polônia me impactou. Embora agora eu tenha trocado sua análise factual do judaísmo polaco para esta sua criação lendária do povo semita, fiquei novamente desconcertado com a leitura do seu texto, ainda que por razões diferentes. Registro, entretanto, que é a segunda vez que Marek me surpreende. Vou resumir aqui o livro, com spoiler - mas, se você conhece a narrativa bíblica, eu não tenho como lhe trazer novidades, já que o subtítulo do livro é "as heroínas da Bíbilia". Se você não conhece, relaxe, porque também não vai fazer muita diferença. O texto inicia narrando a apreensão de Saraí, pré-adolescente, tendo a sua primeira menstruação. Seu pai, um dos manda-chuva locais, a oferece em casamento a um outro figurão poderoso de Ur. Após a cerimônia (cuja descrição é interessantíssima), a noiva foge desabalada da casa e dos limites da cidade, sem permitir a consumação do matrimônio. Na fuga, ela conhece um jovem camponês, Abrão, que a acolhe, na primeira noite; mas poucas horas depois ela é capturada pelos próprios guardas do pai e é posta sob vigilância. É mantida isolada da convivência familiar, pela desonra que trouxe ao pai, que promete jamais falar com ela novamente. Saraí, atentada, consegue uma poção de ervas que a incapacita para a gestação - com isso, tem sucesso no seu plano, que era o de evitar ser dada novamente em casamento. É enviada para uma instituição religiosa, e lá, após alguns anos internada (o autor simplesmente dá um salto nesta parte), se torna a principal sacerdotisa do país, voltando a ser motivo de orgulho para a família. Não obstante, ela não desiste de sua paixão à primeira vista por Abrão, e foge novamente, para se unir a ele. Daí, ambos partem na direção de Canaã e do Egito, para cumprir seu destino bíblico, que Marek narra com vigor e passionalidade. Sua Sara é um personagem feminino obstinado e sensual. Injusta e ciumenta. Eu me senti tomado pela leitura e, após fechar o livro, fui buscar referências que ainda não encontrei. Pouco achei no Google. As sinopses chegam a ser engraçadas, de tão ruins, como a descrição do livro no site da Livraria Travessa, chamando Abraão e Sara de "o primeiro casal 20 da História". Eu queria entender mais a pesquisa histórica que Halter emprega para escrever seus livros. Se o conteúdo é sedutor, a narrativa é anacronicamente escrita em um estilo rococó (pode chamá-lo também de ultrapassado). Entretanto, com ou sem seu cacoete obsoleto, me fascinou pela fartura de detalhes da rotina dos moradores de Ur. Talvez nem tão cedo eu consiga respostas sobre o seu processo de criação. Os livros dele que mais me interessaram não foram editados em português, e ainda não me atrevi a tentar lê-los em francês, o idioma em que foram originalmente publicados. É sua língua derradeira. Sua biografia tem um percurso sofrido e provocador - a Polônia do pré e do pós-guerra, a Rússia invadida, a Israel idealizada e a França redentora -, mas ele escreve sobre a Cananeia. Sua própria fisionomia sugere alguém oriundo de um tempo que não é o nosso. Seu romance é como aquelas cavernas de parques temáticos, verdadeiras em tudo, exceto que são de resina e papelão. Mas quem se importa?

Editora Nova Fronteira, 267 páginas

Sidney Puterman

Some say he’s half man half fish, others say he’s more of a seventy/thirty split. Either way he’s a fishy bastard.

0 comentários: