"O espetáculo da corrupção"

segunda-feira, setembro 28, 2020 Sidney Puterman

Vemos isso todos os dias. A corrupção é um problema crônico no Brasil. Os políticos se elegem com a promessa de acabar com ela, mas, uma vez eleitos, se dedicam a perpetuá-la. Por isso, o processo eleitoral é um jogo de perde-perde para a sociedade, que perde qualquer que seja o resultado das urnas. Não é difícil entender o porquê - o enraizamento da corrupção é complexo e profundo, mas sua mecânica é simples e rasa. Um pequeno grupo de pessoas (os políticos eleitos) que administram o caixa coletivo de milhões de pessoas (a população) busca desviar o máximo possível da riqueza do caixa coletivo para o seu próprio patrimônio pessoal. Para viabilizar esta transferência, o gestor eleito (ou um subordinado a mando) direciona para cúmplices externos reservas do dinheiro público que estão na sua área de influência. Este agente do Estado, isolado ou em bando (formando uma quadrilha nos bastidores da administração), seleciona cúmplices na esfera privada para firmarem um contrato (sancionado via licitação dirigida) que credencie o cúmplice como destinatário do dinheiro. Uma vez transferido o dinheiro do cofre do Estado para a conta corrente do "parceiro", parte dele é recuperado pelo gestor (diretamente ou por um intermediário) e o restante fica retido com o cúmplice, a título de pagamento efetivo do trabalho ou como comissão pela intermediação. Esta "recuperação" do dinheiro, já fora do cofre público, é comumente feita em dinheiro vivo (ou dissimulada em uma transação bancária para o próprio ou para terceiros), mas também em produto, em serviço ou em patrimônio. Pronto. Compare com tudo que você já viu na cobertura jornalística dos escândalos de corrupção e você constatará que esta é uma fórmula-padrão. Retirada efetuada, os percentuais de divisão do butim são apenas um detalhe técnico e dependem do gênero do contrato. A operação, se bem-sucedida, tende a se perpetuar, mesmo que aconteça uma eventual substituição dos operadores - seja por conta de uma nova eleição que implique na renovação do agente interno, seja uma nova licitação que promova a substituição do parceiro externo. Porque a esta altura o dreno do dinheiro público já estará instalado e aceitará sem rejeição o revezamento dos atores (daí decorrerem acirradas disputas políticas pelo controle de determinados orçamentos públicos, onde os esquemas já são rentáveis e conhecidos - ministérios "com porteira fechada", estatais, secretarias de saúde, diretorias "que furam poço", como definido pelo finado presidente do Congresso Severino Cavalcanti, etc e etc). A corrupção no Brasil é um ótimo negócio. Se para a população é uma situação perde-perde, para os participantes é uma operação com alta probabilidade de sucesso (tanto que as pessoas literalmente se matam para conseguir um lugar no esquema). Fato é que a corrupção remunera bem e oferece baixo risco de punição. O risco é mínimo porque o sistema responsável por vigiar e punir é também uma célula integrante da operação corrupta. Os três organismos que têm a missão de reprimir a ação criminosa - fiscalização, policiamento e Justiça -, pertencentes à esfera pública, são beneficiários passivos do lucro do crime. Passivos porque dependem do crime cair em sua jurisdição para que possam monetizá-lo. Nesta esfera, o faturamento dependerá da alçada do agente público (variando de acordo com seu poder de liberar da pena, da prisão e do pagamento); do montante flagrado do desvio; da situação judicial do delinquente (investigado, detido ou julgado); e da sua capacidade de liquidez. A combinação destes fatores regulará o prêmio a ser pago pela vítima ao agente do Estado (situação análoga à que acontece nos morros, quando o traficante - neste caso não um corrupto, mas um vizinho de outro artigo do código penal - é preso pela PM, que vai cobrar um valor de resgate à altura da sua importância e fortuna, como discorre incisivamente Rodrigo Nogueira, em seu ótimo "Como nascem os monstros"). Em qualquer das circunstâncias, nesta etapa o agente público coator realiza o lucro ao receber do agente público flagrado em peculato o pagamento para liberá-lo da punição prevista em lei. Muitas vezes este pagamento já está precificado no fluxo de caixa do agente corrupto ativo e funciona como um habeas-corpus preventivo informal. Em outras, o nível hierárquico dos envolvidos é tão alto que tudo se dá por cima, em um tráfico de influência em que o preço é ajustado somente na fatura seguinte (como naqueles filmes de mafiosos, em que o protegido fica devendo um favor ao capo). Já nesta etapa, é frequente que um coadjuvante - muitas vezes tão bem remunerado quanto os protagonistas - seja requisitado, o escritório de advocacia. Mal comparando, o agente corrupto depende dos advogados como o atleta depende do departamento médico. Alguns atletas são mais assíduos do que outros no estaleiro, mas poucos ficam imunes, porque há sempre um inquérito passível de ser aberto por uma delação, uma ex-esposa, uma chantagem ou um dedo-duro. Daí a importância do reparo de blindagem proporcionado pelos advogados, que via de regra agem no limite da lei - que aqui é bastante elástica. Nós, gostemos ou não (eu não gosto, que fique bem claro para você que me lê), devemos reconhecer que este é o cenário político-legal brasileiro. É o nosso habitat. À parte o moralismo (que mais esconde do que coíbe), aqui é assim. É como uma loteria: é ótimo para poucos (os que põem a mão na eventual bolada) e ruim para muitos (os contribuintes que obrigatoriamente bancam o prêmio). Não obstante, apesar dos pesares, muita gente boa sonha em tirar a sorte grande e se dar bem. Virou parte da engrenagem na sociedade brasileira e modus operandi padrão do detentor de mandato. E este panorama não se restringe às grandes negociatas. Pela facilidade e pela tradição, esta apropriação pessoal do dinheiro coletivo é praxe até no varejo dos ocupantes dos cargos públicos, não importa sua relevância. Hoje sabemos que qualquer funcionário - do patamar mais baixo ao mais alto, do faxineiro da câmara à presidência da República - é suscetível de se corromper. E não só ele, como toda a sua curriola, como diz o populacho. A expectativa de muitos dos que orbitam ao redor deste funcionário é pegar uma aba. Quando um integrante do quadro da administração pública dá as cartas neste jogo, irriga diversos canais da sociedade: comparsas na montagem da operação, cúmplices que se mancomunam no desvio e parentes que se associam na ocultação. Esquemas amadores se profissionalizam e esquemas profissionais se sedimentam. Como vimos, é um sistema crescente e que, nas últimas décadas, vem se apropriando de porções cada vez maiores do caixa coletivo. A repercussão financeira deste assalto é lenta, pelo gigantismo da nossa arrecadação, mas evidente, porque drena a capacidade da União custear a prestação de serviços, a administração da máquina pública e o investimento em infra-estrutura. A conta é cobrada na precariedade das nossas instituições. E, pior, esta retirada nunca é suficiente: o dinheiro do caixa coletivo, sob controle dos políticos eleitos, é também canalizado para o pagamento de um universo crescente de novos funcionários, contratados pelas levas renovadas de dois anos em dois anos, quando as eleições municipais, estaduais e federais dão posse a novos contratantes, que empregarão como assessores seus cabos eleitorais e pendurarão a conta na viúva (acabei de ler no jornal que a eleição municipal para 2020 apresenta um aumento de 71,4% na quantidade de candidatos a vereador). Na esfaimada corrida individual para abocanhar o maior quinhão possível do dinheiro concentrado no caixa coletivo, cada vez sobra menos para ser destinado pelos trâmites burocráticos do caixa oficial à população carente, a quem só resta se conformar, ultrajada. E o desaforo não fica por aí. Como os veteranos do esquema não querem ganhar menos e os novatos também estão sedentos pelo seu quinhão, não só o tesouro é todo canalizado para os dutos da corrupção, como há uma demanda permanente pela geração de excedentes, por meio do aumento dos impostos cobrados à população. O domínio do dinheiro público por este grande mecanismo empobrece a classe trabalhadora (a quem cabe produzir e gerar dinheiro para sustentar a ciranda) e desossa o próprio país, pois o dinheiro arrecadado, via impostos, é fruto da tarifação sobre o trabalho, a renda, a circulação de moeda e a produção, e, ao ser interceptado pelo agente corrupto, é em parte desviado para o exterior (exemplos aleatórios que podemos tirar da mídia: offshore de Paulo Maluf nas ilhas britânicas, contas ocultas de Eduardo Cunha na Suiça, imóveis do petista Marco Maia em Miami, depósitos do tucano José Serra na mesma Suiça acolhedora), onde gerará dividendos e engordará a poupança de uma população que não fala português. Em síntese, a conta sobra para a maioria, que não tem mandato, cargo ou aconchambração (com quem os tem) para ser admitido nesta corrida do ouro. E não tenho dúvida de que esta maioria é a vítima e é também cúmplice do próprio roubo que sofre. É a parte espoliada, mas tem culpa no cartório. Ela é determinante para a perpetuação do sistema, não porque é quem produz a riqueza a ser roubada, mas porque é uma maioria silenciosa, que acata sua própria expropriação sem grande escândalo. Conivente, por omissa, não é vigilante e nem ajuda a fiscalizar. A cultura brasileira é tolerante com a corrupção. O cidadão corrupto não é repudiado no âmbito social, nem rechaçado na esfera comercial. É chamado de doutor pela vítima. Em tese, da boca pra fora, a corrupção é recriminada, mas, no dia-a-dia, na convivência prática, não há condenação moral. Nem no ambiente dos negócios, nem no recinto familiar. Ao contrário. Os laços de sangue sintetizados no homem cordial por Sérgio Buarque de Hollanda em "Raízes do Brasil" (comentado aqui no blog também) são os preferenciais na montagem inicial das quadrilhas de desvio de dinheiro público. Porque no início da atividade do agente público corrupto, o aliado mais confiável (senão o ideal, porque o dinheiro fica em casa) são os filhos e cônjuges, propiciando o envolvimento de outros parentes (próximos ou distantes) à medida que os esquemas de corrupção requeiram mais pessoas para sua sustentação/expansão. Novas levas de calouros são absorvidas pelos esquemas de desvio, de modo a viabilizar o crescimento da operação. E, se antes nos debruçamos sobre a corrupção em tese, não podemos deixar de nos deter sobre a corrupção na prática. A forma mais usual do desvio de dinheiro público é a contratação dos serviços de rotina. Os emergenciais são ainda mais preciosos, porque contornam as barreiras de fiscalização e motivam dispensa de licitação. Uma prova cabal de como a oportunidade estimula a ação criminosa são os desvios que se aproveitaram da pandemia. Só com base em denúncias e nas evidências deixadas por funcionários que foram com muita sede ao pote, a Polícia Federal já realizou 44 operações, 605 mandados de busca e 56 prisões, em um total investigado de R$ 1,3 bilhão de reais - com destaque para a performance carioca, que respondeu sozinha por R$ 831 milhões do total desviado e que culminou na destituição de um governador, talvez insuficientemente bem-relacionado para se sustentar no cargo. É o Rio na liderança. Mas é fato que a maior parcela do dinheiro desviado, na esfera federal e estadual, decorre das grandes obras de infra-estrutura e na gestão das estatais (estas ainda têm menos restrições na ordenação de despesas). Como exemplo, pagamentos de políticos, por empreiteiras licitadas para as obras viárias em São Paulo, ocuparam há pouco as manchetes (embora até pareça que há muito, porque nesta área específica o nosso noticiário é bem dinâmico). Ou os já clássicos desvios bilionários de dinheiro nas maiores estatais, como na Petrobras, que levou a empresa a pagar R$ 10 bilhões de reais somente como compensação aos acionistas estrangeiros que foram ludibriados pelas perdas resultantes de práticas corruptas na direção da companhia, onde os executivos de alto escalão são escolhidos pelos políticos, via parcerias com o Governo Federal. Mas, como venho discriminando aqui, esta operação é recorrente em todos os níveis da administração pública. Na esfera estadual, para não teorizar, acabamos de ver a prisão de agentes públicos do Estado do Rio (incluindo secretário do estado e ex-candidatos do próprio governo), que gerenciavam contratos de fundações e ONGs, eterno escoadouro de dinheiro público para os bolsos privados. Na esfera municipal, os contratos com empresas responsáveis pelos transportes coletivos e recolhimento de lixo figuram como as maiores oportunidades disponíveis ao gestor político para desvio de dinheiro público. Um exemplo clássico - e trágico -, com repercussão nacional, foi o ocorrido no município paulista de Santo André, onde a discussão sobre a divisão do dinheiro desviado em conluio com as companhias de ônibus resultou na execução do prefeito Celso Daniel e no assassinato posterior de mais de uma dezena de envolvidos (assunto dissecado em ótimo livro-reportagem de Silvio Navarro, que você encontra aqui no blog). Outra maneira, useira e vezeira, de transferir algumas migalhas do caixa coletivo para o patrimônio pessoal do agente público é a contratação forjada de servidor. O agente público autoriza uma contratação legal, com pagamento de salário e benefícios sociais, mas o trabalhador contratado não precisa dar a contrapartida do trabalho. Popularmente, é conhecido como "funcionário-fantasma", por não precisar cumprir expediente regular. O "contratado", de posse do salário recebido, direciona parte dele ilegalmente para o agente público contratante. O exemplo mais extremo da prática é a apelidada "rachadinha" denunciada na Alerj, envolvendo dezenas de deputados, dos mais famosos aos simplesmente ignorados - e todos olimpicamente impunes. Hoje há uma grita temporária em torno do assunto, pelas provas do ilícito envolvendo os filhos do atual presidente, mas ninguém propõe o fim da generosa verba de R$ 125.000,00 mensais (para cada vereador, deputado ou senador, com valores variando de município para município e de estado para estado). Suspendê-la temporária ou definitivamente aliviaria as despesas do erário e permitiria uma reavaliação da conveniência de que funcionários sejam contratados ao bel-prazer de cada possuidor de mandato (corroborando a normalidade com que a população vê a prática, esta semana um conhecido comentou comigo que está na expectativa de ser contratado como assessor - ele ainda não sabe do que - em uma secretaria de um município da Baixada, onde ganharia uns 3 ou 4 mil e teria que "voltar" 1 ou 2 mil ao agente contratante, mas, confessa ele resignado, tá bom, melhor que nada, tenho que dar meus pulos). Há também casos em que o contratado pelo agente público efetivamente trabalha, mas não em uma função pública, e sim em uma função privada, que atenda de forma particular o contratante público. Um exemplo recente é a trágica morte do filho da funcionária do prefeito de Tamandaré, Sérgio Hacker - mas que trabalhava para ele em um condomínio no Recife (de onde seu filho caiu do nono andar), como babá, ainda que constasse na folha de pagamento do município de Tamandaré como funcionária pública. Nesta ocorrência triste, o foco da mídia, naturalmente, está na primeira-dama relapsa e não no prefeito que prevaricou, ainda que ambos sejam crimes. De todo modo, mesmo com a imperdoável negligência que resultou na morte do pequeno Miguel, este é mais um entre os milhares de casos que tendem a cair no esquecimento e não resultar em punição - nesta alçada, há sempre alguém que é amigo de alguém e que susta o processo penal, uma ajuda muitas vezes sequer oriunda de um agente jurídico (este mês mesmo saiu na mídia que um agente do Executivo, o prefeito Marcello Crivella, mandou sustar a demolição da casa do senador Romário - uma conta sempre passível de ser cobrada). A brigada judicial interpreta a lei para proteger seus clientes e sabe que tudo será esquecido em semanas: criminosos são soltos, diligências são anuladas, instâncias são trocadas e crimes prescrevem. Repetindo, o esquecimento coletivo sobre as falcatruas tem muito a ver com o frouxo limite pessoal de condescendência. Para o povo, desviar dinheiro público é mais uma questão de oportunidade do que gerador de reflexão sobre um princípio moral. As pessoas beneficiadas por este desvio, ativa ou passivamente, não se sentem devedoras do caixa coletivo ou sequer se vêem como fraudadoras. Elas aproveitam a oportunidade de ganho que lhes aparece e geralmente seus parentes próximos são coniventes, dentro da filosofia do "todo mundo faz e se dá bem, por que não eu?" Ainda que em proporções muito desiguais, o aproveitamento de oportunidade de quem está em cima é bem semelhante ao de quem está embaixo. Esta auto-justificativa está no funcionário humilde que aceita trabalhar de forma privada para o patrão importante - mesmo sabendo que o seu pagador é o Estado -, como também para o grande empreiteiro, que é beneficiário do desvio de bilhões de reais e considera este desvio um componente natural do processo econômico do país. Este é justamente o ponto do "Espetáculo da corrupção". O espetáculo em questão não se refere ao acinte de como a corrupção se alastra pelo país, mas condena justamente o combate à corrupção. Considera-o exagerado, espetaculoso, inconsequente e danoso. O livro do advogado Walfrido Warde, publicado pela Editora Leya em 2018, defende a corrupção (no sentido de que ela é inerente ao nosso sistema) e o lobby. Argumenta nas suas 142 páginas que a punição ao empresário corrupto (o cúmplice do agente público) é demasiada e que as ações nos últimos cinco anos, de investigação, denúncia e prisão dos corruptos é midiática. O autor alega que as empresas flagradas em conluio com agentes públicos para desvio do dinheiro público para o patrimônio pessoal dos consorciados são indutoras de crescimento econômico e sua marginalização é desfavorável aos interesses do país. Que os valores exigidos para ressarcimento dos cofres públicos superam a capacidade de pagamento das empresas condenadas por corrupção, comprometendo sua sobrevivência. A propósito, o autor repudia com veemência a agora moribunda operação Lava-Jato (a já lendária operação contra a corrupção escapou dos ataques dos governos anteriores, mas foi definitivamente desmontada pelo atual governo). Embora a existência da operação por um lado tenha elevado astronomicamente os valores pagos aos advogados, pois centenas de brasileiros pertencentes ao créme de la créme sócio-econômico se viram de uma hora para outra presos, como reles mortais (e, em pânico, dispostos a pagar qualquer coisa para saírem da cadeia), por outro a continuidade da Lava-Jato mataria a galinha dos ovos de ouro, vedando os dutos de corrupção que abastecem a elite parasitária (veja aqui no blog o ótimo livro sobre a Lava Jato assinado por Vladimir Netto). E considerando que os advogados são o último elo de uma avantajada sequência de poderosos flagrados com a boca na botija, isto significa que toda uma antiga ordem se encontrava em vias de ser implodida. Políticos de todos os matizes estavam tendo suas falcatruas reveladas e estavam indo para a prisão por isso; juízes de Primeira Instância os estavam condenando, frente à robustez das provas, e tendo suas sentenças confirmadas (algumas vezes até ampliadas) pela Segunda Instância; empresários corruptos estavam sendo detidos dentro de casa às seis da manhã e condenados poucos meses depois. Ainda no auge das investigações, magistrados do mais alto calibre se insurgiram contra a audácia da equipe de Curitiba. Sendo certas ou erradas as decisões da força-tarefa, a continuidade da Lava Jato subtraía uma enorme fatia de poder das instâncias superiores, retirando a valiosa espada de Dâmocles das mãos da mais alta corte. Talvez por esta desidratação súbita de poderes que se julgavam tão solidamente estabelecidos, o fuzilamento da Lava-Jato tenha escalado uma artilharia tão qualificada - com snipers oriundos do governo, do Congresso, dos partidos, da PGR e do STF, com a contribuição empolgada dos políticos em geral (e seu exército virtual de propagadores de fake news, capitaneados por jornalistas subvencionados e por toda a sorte de perfis de desinformação nas redes sociais). Com o derretimento do apoio popular (geralmente uma opinião pública manipulada pelos protagonistas supramencionados), criou-se o cenário perfeito para o seu linchamento - que, entre centenas de outros detratores entusiasmados, o livro ao qual me referi acima já promovia. E reitero que a leitura do ensaio foi um pretexto oportuno para raciocinarmos sobre o funcionamento de um mecanismo (como já denominou o cineasta José Padilha) que é um torniquete nas pernas do país, mutilando-o para o enfrentamento comercial, diplomático e tecnológico diante das nações melhor preparadas. Aquele que poderia ser o fiel da balança, o eleitor, está enredado no teatro demagógico e virtual que preside a discussão pública dos assuntos coletivos. Problemas objetivos se subordinam a considerações subjetivas, dissimulatórias e evasivas. Em meio aos discursos cruzados no grande palanque eletrônico, a massa eleitora escolhe um dos lados, na vã ilusão de que o lado escolhido a defende. Na prática, sem perceber, participa de uma roleta russa com seis balas no tambor, onde ela entra com a cabeça e o coletivo político entra com o dedo no gatilho. Trajar uma alegoria partidária, em uma discussão maniqueísta, é o mais perto que o eleitor chega de um arremedo de cidadania. Na sua visão caolha, este eleitor acerta, em parte, ao condenar um dos lados como desonesto, incompetente e negligente; mas erra, por sua vez, ao não perceber que o lado que escolheu defender é também desonesto, incompetente e negligente. A verdade é que, da forma como o sistema está disposto, a cidadania, em si, 90% dos brasileiros jamais conquistará. O historiador Jorge Caldeira, em seu excepcional "História da riqueza no Brasil", vai longe e identifica nas Ordenações portuguesas do século XVI - que instituíam legalmente a desigualdade -, a essência da organização social brasileira, que se perpetuou através dos tempos. Esta desigualdade oficial foi reafirmada na Constituição de 1988, que tornou constitucional o direito de minorias em manter ad infinitum seus privilégios (em detrimento, logicamente, de quem não os tem, criando a figura constitucional do privilégio adquirido). O acesso à Pasárgada dos barnabés, ao Olimpo das sinecuras e ao Éden dos que têm mandato eleitoral criou dois andares estanques no continente brasileiro: o de cima, para poucos, e o de baixo, para o resto. Os que circulam no andar de cima manipulam as leis, viciam as licitações e têm ilimitado acesso aos cofres. São os donos da corrupção. A massa no andar de baixo só frequenta virtualmente o pessoal de cima quando se presta a republicar memes nas redes sociais - no mais, ela vive desassistida em seu gueto econômico e social. A corrupção funciona como uma ducha viral, uma barreira anti-sanitária que a mantém distante de um Estado funcional. No Brasil que nos é oferecido, somente o enriquecimento pessoal permite ao cidadão driblar a exclusão. Só os ricos e os socialmente bem-resolvidos desfrutam na plenitude dos mecanismos de proteção estatal, já que, parasitado pelos dutos permanentes da corrupção, o Estado é sugado da substância que viabiliza a sua atividade social: o dinheiro. Sem dinheiro para comprar e investir, não há Saúde, não há Educação, não há Segurança, não há Infra-Estrutura. Sem dinheiro, o Estado é como um hotel de filme de faroeste: só tem a fachada. Assim, o povo, a arraia-miúda, o pseudo-cidadão que integra este contingente de 90% das almas do país, só é convocado para fazer figuração. O pobre coitado(a) pode ganhar um agrado, um emprego de favor, um sanduíche de mortadela, mas, na volta para casa, a condução lhe rouba duas horas do dia, sua residência não tem saneamento básico, sua luz vem do gato e sob o seu próprio teto ele é vítima da polícia, do tráfico e da milícia (e ainda tem que torcer para não adoecer, pois o atendimento médico disponível para este subcidadão é medieval). Pena que os bem-aventurados, os 10% que desfrutam de uma vida com dignidade em um país indigno, também não entendem que a política de exclusão é o caminho da derrota continuada. Citando novamente o professor Jorge Caldeira, sua acurada (e original) análise do binômio formado por política e economia no Brasil através dos séculos enxerga as raízes da apropriação dos cargos públicos pelos políticos a partir do início do século XX. Ele culpa o presidente Campos Salles por subverter a política econômica audaciosa do presidente anterior, Prudente de Moraes, em uma versão republicana do Poder Moderador, fazendo do nosso regime presidencialista uma cópia mal ajambrada do sistema imperial. Desde então, o toma-lá-dá-cá, ou o "é dando que se recebe", uma releitura desonesta do Evangelho, se espraiou com vigor pelo nosso organismo político e se tornou a filosofia dominante. É uma tese. Como eu tentei expor nesta minha longa digressão, esta filosofia é parasitária e não há vacina que nos proteja dela; a não ser o conhecimento preventivo do seu funcionamento e uma ação organizada coletiva contrária. Enquanto isto não acontecer (se é que acontecerá um dia), a finalidade precípua do político brasileiro - salvo as sempre raras e honrosas exceções -, ao se eleger, permanecerá sendo transferir o máximo do dinheiro público para si e para os seus, concomitantemente mantendo a si e aos seus dentro da redoma pública, comendo por dentro o aparentemente infinito caixa coletivo. Enquanto isso, na várzea, o contribuinte-eleitor, cada vez mais espoliado, se engalfinha na rua e nas redes sociais contra os demais cidadãos roubados, seus iguais (incluindo amigos e parentes), na defesa encarniçada dos políticos que vê nos palácios e acompanha nas lives. A devoção apaixonada dos brasileiros a estes políticos, verdadeiros profissionais da picaretagem (escolha você os exemplos, eles não faltam), me lembra muito um outro líder carismático do interior de Goiás, João Teixeira de Faria, vulgo "João de Deus". Pelo discurso e pela presepada, você, crédulo, pode pensar que ele quer lhe curar as feridas e salvar sua alma. Mas, na verdade, ele quer é comer sua filha.

Sidney Puterman

Obs.: Todos os livros que você vê amontoados na ilustração do post estão comentados aqui no blog. Uns ótimos, outros nem tanto - mas somados, oferecem uma Aula Magna de Brasil.


Sidney Puterman

Some say he’s half man half fish, others say he’s more of a seventy/thirty split. Either way he’s a fishy bastard.

2 comentários:

  1. Sidney, achei ótima a sua crítica do livro "o espetáculo da corrupção", expondo com clareza didática a fórmula da corrupção brasileira. Aliás, o resumo vai ao âmago da questão e não poupa o próprio contribuinte que, mesmo sendo constantemente assaltado replica o comportamento, entre outras coisas, levando vantagens na forma de favorecimento e dinheiro em troca do voto. Perpetuando o ciclo como uma parte menor da engrenagem desse mecanismo corrupto, sem perceber que o problema é de cunho moral. Talvez, até o perceba e não ligue. Infelizmente (e acho que isso não é um problema só dos brasileiros, mas é que aqui ele se mistura à tessitura cultural e social), não vejo como essa realidade pode mudar já que esse sistema, em suas entranhas, prevê a própria subsistência como a única maneira de governar. E o pior, com a nossa participação, passiva ou não.

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  2. Obrigado, Adilson! Sim, triste paradoxo em que a vítima, por tolice ou ganância, acaba auxiliando o criminoso. Já não bastasse o cidadão ser jogado no caldeirão para dar conta do apetite dos políticos, ele ainda ajuda a mexer a colher. Até quando?

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