"Respire", por Rickson Gracie

domingo, novembro 14, 2021 Sidney Puterman


Narrativa franca e despojada de um atleta de exceção. Rickson Gracie talvez seja o mais lendário expoente de uma família lendária. É bastante coisa. Entre os fãs e praticantes da arte suave, a percepção de Rickson como o lutador mais dominante do clã é quase que unânime.

Não só no Brasil, mas também do outro lado do planeta, onde ele atingiu o ápice da sua carreira. Um artista marcial completo e, sob a ótica japonesa, um autêntico samurai - com aguda superioridade em todas as áreas onde a luta acontece: técnica, física, mental, emocional e espiritual.

Vale lembrar que este conjunto poderoso de competências não se deu por acaso. A leitura do depoimento de Rickson Gracie a Peter Maguire revela que ele foi preparado desde a mais tenra idade em direção ao topo. Não só ele, é verdade: muitos outros da família o foram também, e atingiram patamares altíssimos de execução e reconhecimento. Mas talvez nenhum outro Gracie tenha alcançado o nível de controle da luta atingido por Rickson.

E some-se a todas estas valências seu poder da superação. De certa forma, este é o tema do livro. Que não se restringe ao jiu-jitsu, a valiosa commodity da família Gracie. A narrativa avança além do combate e do lutador; se debruça sobre estágios mais elevados de entendimento, não só da própria performance como a do adversário. E, melhor, Rickson fala disso sem papas na língua.

A convicção com que se expressa não se reveste de agressividade. Suas palavras são calculadas e respeitosas; mas também afiadas. Ele assume de forma incisiva, porém sem arrogância, sua posição de melhor lutador da família Gracie. Declara as principais influências que o construíram como atleta, homem e lutador: o pai, Hélio Gracie; o primo criado como irmão, Rolls Gracie; o responsável pelo que podemos chamar de seu patamar superior de consciência córporea, Orlando Cani.

Mas o jiu-jitsu é inevitavelmente o tema recorrente da publicação. Tudo acaba remetendo ao tatame. Rickson se vale dele como referência e medida; e através dele faz comentários, curtos, sobre os seus mais conhecidos protagonistas. Não fica em cima do muro ao opinar sobre os nomes de maior repercussão da família: Carlos, Carlson, Rorion, Royce, Renzo.

Um espaço maior é dedicado a Rorion, enaltecendo suas habilidades de marketing ("eu podia ser o melhor lutador da família, mas Rorion era de longe o melhor promotor do jiu-jitsu Gracie"). Rickson detalha como o irmão divulgou o jiu-jitsu nos Estados Unidos, em uma era pré-internet. Uma fita VHS intitulada Gracie in Action virou coqueluche e era encaminhada aos compradores pelo correio. A ação ajudou o clã a se estabelecer nos EUA.

Desavenças comerciais, entretanto, levaram ao rompimento entre os principais nomes da linhagem, culminando com a proibição, por parte de Rorion, do uso do nome Gracie.

"Além de ser faixa-preta, Rorion era também formado em Direito, e geralmente usava seus conhecimentos para conseguir vantagens em negociações", explica Rickson. "Depois que ameaçou processar outros membros da família (...) por usarem o sobrenome Gracie, alguns se renderam. Jiu-jitsu Gracie virou Brazilian jiu-jitsu", detalhou, mas sem concordar. "Acho que se Rorion tivesse deixado que todos usassem o sobrenome, nossa arte marcial ainda seria conhecida como Jiu-jitsu Gracie e, talvez, fosse ainda maior do que é".

Ao falar de Rorion, naturalmente o tema UFC vem à tona. Muito se questiona o porquê de não ter sido Rickson, e sim Royce, o Gracie escolhido para participar da primeira edição do evento. A possibilidade de representar a família entusiasmou Rickson ("finalmente uma oportunidade de fazer meu nome lutando nos Estados Unidos, era a chance que buscava quando me mudei"), mas as coisas não seguiram o curso esperado.

"Quando Rorion afirmou que queria que nosso irmão mais novo, Royce, competisse no primeiro campeonato, me deixando de backup caso ele perdesse, fiquei desapontado", revela. Na verdade, importa destacar, uma parcela expressiva dos admiradores do esporte também se surpreendeu. Rickson esclarece que "apesar de parecer uma decisão sensata, ele tinha outras razões para isso. Por não estarmos nos dando bem na época do primeiro UFC, não queria arriscar que eu me tornasse uma estrela e o ofuscasse". 

Hoje se sabe o impacto duradouro deste primeiro torneio. As vitórias que acumulou no evento fizeram de Royce Gracie uma lenda - ainda que até então ele fosse praticamente um desconhecido. "Royce era um garoto despreocupado que nunca vencera um título importante no jiu-jitsu, quanto mais uma partida de vale-tudo. No entanto, era o Gracie mais fácil de lidar", esmiuça Rickson, que assumiu a tarefa de treinar o irmão mais novo para a disputa, física e mentalmente.

"Eu gostava de Royce e queria vê-lo fazendo sucesso (...). Durante o verão, Royce e eu nos encontrávamos sempre na academia de Pico Boulevard. Ele não era páreo para mim, então pude forçá-lo até o limite e além". As edições iniciais do evento são hoje cultuadas e o resto é história. Os fãs do esporte - e de ambos - poderão saber muito mais do que se passou lendo o livro.

Elogia o primo Renzo ("um lutador de berço que, em vez de ficar com medo em situações assustadoras, era focado") e ressalta que ele se tornou um dos professores de maior prestígio nos EUA. Rickson reproduz um comentário sobre como era a experiência na academia de Renzo em Nova York, feito por um atleta que era aluno tanto dele como do primo:

"É um aprendizado difícil. Imagine pegar dez bebês e jogá-los na parte funda de uma piscina. Nove deles provavelmente vão se afogar, mas o sobrevivente se tornará um nadador olímpico."

O estilo da sua prosa remete ao estilo das suas lutas. Sem firulas - apenas objetividade. Os temas são muitos. Aprendeu cedo com o pai o lugar da política. 

"Não temos controle sobre essa gente. Eles fazem o que querem. Tem filho da puta na direita e filho da puta na esquerda. Política não é pra gente."

O controle das próprias emoções é uma prioridade, inclusive lidar com o medo. "Minha curiosidade sempre superou meu medo, mas o medo também era um bom amigo. Pessoas que dizem não ter medo de nada são estúpidas ou loucas. Medo é uma emoção que serve para proteger você, mesmo que às vezes não precise de proteção."

E o medo é um tema que leva ao título do livro. Rickson detalha como empregar a respiração para dosar a emoção. "Se quero dominar a adrenalina quando estou nervoso, respiro devagar até que as emoções estejam sob controle. Se quero aumentar meu ritmo, não uso minha mente para dizer isso ao corpo, só respiro mais fundo e rápido." E explica que "durante momentos de grande esforço, expirar se torna mais importante que inspirar".

Rickson é taxativo quanto à importância de controlarmos nossa respiração: "Não saber como respirar é como ter uma mão e não saber usar os dedos."

Um aprendizado que veio a se somar a tantos outros atributos que fizeram dele o lutador imbatível que se tornou (Rickson jamais foi vencido), como destreza, vocação, raciocínio e coragem. O jiu-jitsu, neste caso - como já disse, a commodity da família -, vem do berço.

Mas, como eu já frisei, o depoimento de Rickson vai muito além dos limites da luta. Seu relacionamento com os filhos - principalmente com Rockson, seu primogênito, que partiu jovem - é um exemplo de franqueza e amor. 

Logo após o lançamento do livro no Brasil, o autor foi entrevistado por Pedro Bial, onde o principal assunto abordado foi a perda do filho (esta edição do "Conversa com Bial" é facilmente achada na rede). A emoção de Rickson impacta qualquer um que seja pai. No livro entendemos mais profundamente como ele lidou com esta perda insubstituível.

Rickson, despojado, abre o jogo e fala dos primórdios do esporte e dos valores da família. Fala de Brasil, Japão e Estados Unidos. Fala da Yazuka e das gangues do Rio. Fala de roubos, brigas e drogas. Fala da sua comunhão com a natureza e a espiritualidade.

Como dizem os americanos, um statement. Seu livro é uma declaração pública da sua primazia e do seu legado. Nunca haverá um outro Pelé, nem nunca haverá um outro Ayrton Senna ou um outro Gustavo Kuerten. Provável que nunca mais haja um outro Rickson Gracie.

Harper Collins, 254 páginas

P.S.: Quem não merece a faixa-preta é a revisão do texto. Um número muito alto de deslizes, que só posso reputar à pressa nos preparativos pré-impressão. "Cada" em vez de "cara (pg 79), "soltados" em vez de "soldados" (pg 144), "Rorion" em vez de "Royce" (como vencedor do UFC 4, pg 179), "UCF" em vez de "UFC" (pg 180), etc. A avalanche de typings não deslustra o conteúdo, mas desabona a editora.

Sidney Puterman

Some say he’s half man half fish, others say he’s more of a seventy/thirty split. Either way he’s a fishy bastard.

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