"Pedro Páramo", por Juan Rulfo

domingo, novembro 07, 2021 Sidney Puterman


Do realismo fantástico do qual a prosa da América hispânica é pródiga, há poucos exemplos mais concisos; e mais remotos. Publicado em 1955, o primeiro romance de Juan Rulfo se manteve sua última obra até 1986, quando o autor morreu. Por trinta e um anos o escritor mexicano foi laureado, homenageado e incensado, sem jamais escrever uma única nova linha que fosse.

Viveu assim como se fosse seu personagem, farto de mistério e de ausência.

É que o livro encorpa assim, cheio de paradoxos - os parágrafos deste Pedro Páramo são um labirinto dentro de um pesadelo. Ou vice-versa. É um texto de miragens. Em um looping bizarro, todos que vão, vêm, exceto os que não voltam nunca mais. Como a produção literária de Carlos Juan Nepomuceno Pérez Rulfo Vizcaíno. O autor sequer se chamava Rulfo na certidão de batismo original e teve o nome acrescentado para reverenciar o avô morto.

A propósito, mortos e nomes dão a tônica do romance. Enquanto ainda estava nos manuscritos, o nome do futuro livro seria Los Murmullos. Mas, na hora da impressão, teve o título mudado para este Pedro Páramo. Decisão sofrível. O anterior, "Os murmúrios", insinuava mais do texto.

Os nomes enfeitam as páginas e são muitos, com grafia e sonoridade ímpares - Fulgor Sedano, Filoteo Aréchiga, Damiana Cisneros, Toríbio Aldrete, Eduviges, Abúndio, Doloritas, Felicitas e por aí vai - e os mortos são todos.

Na herdade de Media Luna, lugarejo a meio caminho de Contla e Sayula, todos os habitantes que cruzam as vielas, que servem as mesas e fecham as portas estão mortos. Incluindo o narrador - estão todos mortos. 

No Brasil, "Incidente em Antares", de Érico Veríssimo, foi lançado em 1971 e tinha um pano de fundo semelhante. Uma cidade onde os mortos saíam às ruas. Ressalte-se que era linear, mais verboso e sem a poesia sobrenatural do romance de Juan Rulfo.

Talvez o mais famoso exemplo do realismo fantástico latino-americano, "Cem anos de solidão", a obra-prima de Gabriel Garcia Marquez, tenha um quê de Pedro Páramo. O best-seller de Gabo foi publicado em 1967, uma dúzia de anos posterior ao trabalho do mexicano.

Para não deixar ninguém na curiosidade, segue uma palhinha da prosa de Rulfo.

"O que ela está dizendo, Juan Preciado?"

"Diz que ela escondia os pés entre as pernas dele. Seus pés gelados como pedras frias e que ali se esquentavam como num forno onde se doura o pão. Diz que ele mordia seus pés dizendo a ela que eram como pão dourado no forno. Que dormia encolhida, metendo-se dentro dele, perdida no nada ao sentir que sua carne se quebrava, que se abria como um sulco aberto por um prego ardoroso, depois morno, depois doce, dando golpes duros contra sua carne macia; mergulhando e mergulhando, até o gemido. Mas que a morte dele tinha doído ainda mais. Isso é o que ela diz."

"Ela está se referindo a quem?"

"A alguém que morreu antes dela, na certa."

O autor é do ramo e não são poucos os elogios que se pode fazer à obra. Muitos deles são gentilmente elencados, no prefácio, pelo tradutor, Eric Nepomuceno. O preâmbulo que abre a edição é titulado "Anotações sobre um gigante silencioso".

Ignoro se os dois Nepomucenos - o Juan e o Eric - são parentes. Mas, diferentemente deste último, não vou colocar azeitona na empada de Juan Rulfo. Principalmente depois da apresentação apoteótica do familiar eventual, que elevou às alturas o nível de expectativa. O lirismo macabro da sua escrita é sedutor, mas, à medida em que as páginas se sucedem, dá a impressão de girar, girar e não chegar a lugar nenhum.

Noves fora a sensualidade suarenta do texto, surpreende, por ingênua, uma certa rendição ao clichê na construção dos personagens. A tipificação do coronel - o dito cujo que é o nome do livro - traz o carimbo do estereótipo. Com todo respeito à hispanicidade do tema, quem quiser um coronel com a complexidade que o posto exige não precisa cruzar a Amazônia. Basta pegar o Ramiro Bastos de Jorge Amado, em Gabriela.

Não faltam jagunços em ambas as narrativas - nem em Ilhéus, nem em Comala. Mas na obra de Rulfo os revolucionários surgem como uma alegoria capenga. Como outras passagens da trama, é um elemento não só desnecessário, como mal resolvido. Não ganha corpo, nem se desenvolve de forma coerente. O capanga-mor Sucuri é outro lugar-comum, sem eira nem beira.

Digo isso porque a prosa avança hermética, indefinida, pelas primeiras cem páginas. De uma hora para outra, porém, tudo ganha escala. De um universo de pequenos e secretos conflitos íntimos é anunciada uma marcha revolucionária, com adesões e traições. Trezentos homens pra cá, setecentos homens pra lá, carpideiras no cio e uma censura constante de cada um sobre todos os outros.

Concluo, diante do exposto, que o preâmbulo megalomaníaco dos Nepomucenos não se sustenta. Pena. Ainda assim, nem mesmo desanimado por todas estas fragilidades que enumerei, eu diria que o livro é ruim. Não é. Ainda mais que, sendo curto, não desperdiça sua graça. E, como eu revelei no primeiro parágrafo, este foi o primeiro e o último romance de Juan Rulfo.

Me distraí, é fato - com alguma dose de tédio -, apreciei a morbidez da sua poesia, mas, para mim, é uma xícara de asa quebrada. Não funciona como relato e as belas piruetas da acrobacia ficcional não são minha praia. Isto posto, se aparecer algum inédito póstumo dele, vou deixar passar.

Editora BestBolso, 137 páginas

Sidney Puterman

Some say he’s half man half fish, others say he’s more of a seventy/thirty split. Either way he’s a fishy bastard.

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