"Deus tenha misericórdia dessa nação: a biografia não-autorizada de Eduardo Cunha", por Aloy Jupiara e Chico Otávio

segunda-feira, outubro 25, 2021 Sidney Puterman


O livro traz a cronologia da investigação e condenação do ex-deputado e ex-presidente do Congresso Eduardo Cunha pela finada Operação Lava-Jato. Para quem não lembra, a Operação Lava-Jato foi uma ação da Justiça brasileira, de Primeira Instância, que se notabilizou por levar a julgamento nomes de peso da política e do empresariado nacional, por prática de peculato e corrupção.

As tais condenações - em grande parte ocorridas na Vara Especializada em Crimes Financeiros, sediada em Curitiba/PR - foram em sua ampla maioria referendadas pela Segunda Instância. Composta por três desembargadores, esta Segunda Instância (no caso em questão, o TRF-4), a quem cabe a análise, endosso e correção das sentenças promulgadas, não raro elevou as penas. O rigor dos inquéritos e o ritmo das condenações trouxeram pânico ao universo político.

Reproduzo aqui uma das passagens do livro, em aspas do ex-presidente Lula, que se manifesta sobre a operação em um elegante telefonema para a então presidente do país, Dilma Rousseff. 

"Nós temos um presidente da Câmara [Eduardo Cunha] fodido", afirma Lula, prosseguindo: "Um presidente do Senado [Renan Calheiros] fodido, não sei quantos parlamentares ameaçados, e fica todo mundo no compasso de que vai acontecer um milagre e que vai todo mundo se salvar."

O desespero era justificado, sob as lentes de então. O barata-voa demorou bem mais do que o imaginado. Mas a redoma de proteção da alta esfera finalmente obteve a neutralização da ameaça e - o melhor dos mundos - a anulação das penas, pelos erros processuais de praxe encontrados pela corte superior. Um carimbo falhado, uma gota de café numa capa de processo; problemas graves, incontornáveis, que dão margem ao sempre esperado cancelamento da sentença.

Ou seja, voltando ao telefonema elegante, demorou, mas todos (exceto o pobre do Sergio Cabral) se salvaram. E os dois, Dilma e Lula, mal imaginavam os santos que performariam o inesperado milagre. A ansiada salvação da pátria seria realizada pela mais improvável das duplas: Jair Messias e Gilmar Mendes. Pelo que se viu nos jornais, os dois, um pelo Executivo, com seu preposto na PGR, e o outro pelo Judiciário, com seu controle da Segunda Turma, conduziram a implosão da Lava Jato e tramaram para fazer do seu principal nome, Sergio Moro, a nova Geni da mídia brasileira.

Lula, salvo e soltinho da silva, é hoje - inconcebivelmente, há dois anos atrás - candidato à Presidência da República no pleito de 2022. Eduardo Cunha, também livre, articula seu retorno ao Congresso, e tenta paripassu pavimentar o caminho da filha na política (Cunha já está tão engajado na campanha que tuítou, sexta passada, dia 22 de outubro, cheio de graça: "Hoje estão lançando o iPhone 13. Eu vou passar e esperar o 14. Número do PT, nem no iPhone.")

Sergio Moro já não é mais o bicho-papão da Justiça, com seus execráveis métodos ilegais. Vale recordar que, preso pelo juiz, em 9 de fevereiro de 2017, Eduardo Cunha publicou um artigo na Folha de São Paulo, intitulado "O juiz popular", onde dá sua opinião quanto à atuação de Moro. Chama seu decreto de prisão de "injusto", "uma afronta à Lei 12.043/11, que estabelece que antes da prisão preventiva existem as medidas cautelares alternativas".

"O juiz, para justificar sua decisão, vale-se da expressão 'garantia da ordem pública', sem fundamento para dar curso de legalidade ao ato ilegal", disse no artigo o ex-deputado, complementando que "convivendo com outros presos, tomo conhecimento de mais ilegalidades - acusações sem provas, por exemplo, viram instrumentos de culpa. A simples palavra dos delatores não pode ser a razão da condenação de qualquer delatado. Ocorre ainda pressão para transferir a um presídio aqueles que não aceitam se tornar delatores, transformando a carceragem da Polícia Federal em um hotel da delação."

É mais que compreensível a indignação da classe política. A lei é feita pelos políticos. Desta forma, os políticos elaboram e aprovam leis que visam dificultar que seus próprios crimes sejam investigados. Um juiz que, atrevidamente, contorne as referidas leis, criadas pelos políticos com o fito de blindá-los, se torna, assim, sob o escrutínio frio da lei, um juiz que comete ilegalidades

Não pense que este procedimento dos bem remunerados profissionais da política seja mal-visto pelo cidadão. Pelo que observei nestes últimos dois anos, a opinião média do cidadão brasileiro acolhe com carinho o ponto-de-vista dos supracitados Eduardo Cunha e Lula - denominada pelos togados das altas cortes como garantista - e é pouco adepta da interpretação mais rigorosa de Sergio Moro, tida pelos doutores e pelos rábulos como punitivista.

Assim, o que parecia aos incautos uma revolução na Justiça brasileira - a prisão dos criminosos de colarinho branco - retrocedeu e, pelo andar em marcha-ré da carruagem, tende a erguer uma vetusta muralha entre os políticos criminosos e o Código Penal, que volta a valer apenas para nós. Como é mesmo que diziam os antigos? ah, lembrei: tudo como dantes no quartel de Abrantes.

Bem, se é que não ficou pior. De toda maneira, ultrapassado o assunto não está. Há bem pouco, a CPI da Covid, que testemunhamos o relatório, trouxe para as manchetes personagens que jamais seriam do conhecimento popular - não fossem as centenas de milhares de mortes e justo a CPI instalada para investigá-las. O onipresente Ricardo Barros, ex-ministro da Saúde do governo anterior, e poderoso líder do governo atual, teve alguns dos seus indicados convocados para depor (o próprio Barros já depôs). Não se saíram bem, seja pelo que falaram, seja pelo que não falaram (entraram com as mais diversas medidas jurídicas que os protegessem do próprio testemunho ou da prosaica obrigação de falar a verdade, vê se pode; mais batom na cueca do que isso, impossível).

Pasme: o atual diretor-presidente da Agência Nacional de Saúde Suplementar (ANS), Paulo Rebello, indicado por Ricardo Barros para fiscalizar os planos de saúde, declarou só ter sabido das mortes suspeitas na macabra Prevent Senior pela... CPI! (ou seja, ao longo do ano não viu tv, não leu jornais, nem acessou a internet). É, no mínimo, inusual um fiscal que desconhece tudo o que os "fiscalizados" fazem, ainda que os fiscalizados ocupem as manchetes com mal-feitos tenebrosos.

Outro indicado do tentacular Ricardo Barros, Roberto Ferreira Dias, diretor do Departamento de Logística do Ministério da Saúde, em depoimento à CPI negou as múltiplas acusações de recebimento de propina e achou normal ter autorizado um pagamento de 18 milhões a uma empresa useira e vezeira em fechamento de contratos sem licitação (no mínimo três de 80 milhões, mais um de 60 milhões, outro de 30 milhões, e por aí vai), por uma prestação de serviços estimada em cifras não superiores a R$ 1 milhão. A empresa chama-se VTC-Log e seu diretor, Raimundo Nonato Brasil, depôs também na CPI e negou até o que ninguém perguntou. Já o presidente da empresa não depôs porque está com câncer. No mundo da Prevent, idosos com arritmia ganham kit covid e executivos cancerosos não depõem.

E porque gastei valiosos parágrafos do meu modesto blog para falar dessa trama? Porque este é o formato-padrão do desvio de dinheiro público. Uma parceria "público-privada" em que o dinheiro sai da conta pública e entra (após um pit-stop no extrato bancário da empresa "parceira") na conta privadíssima do político que autorizou o pagamento. Por isso os partidos políticos indicam diretores e presidentes de empresas estatais. Para que autorizem pagamentos que vão parar - em parte ou integralmente - no bolso deles mesmos, os políticos eleitos.

Eleitos por nós, é sempre bom lembrar.

Eduardo Cunha foi condenado por ter cometido este gênero de crime. Mas atente que Cunha é apenas um entre muitos. Milhares de políticos estão cometendo este mesmo crime hoje. Cometeram ontem. E comete-lo-ão (com a licença estilística do ex-presidente Michel Temer, que também os comete, segundo os autores) amanhã.

Se você abrir o jornal vai ver que o Valdemar Costa Neto, condenado no Mensalão e parceiro de Lula, Dilma e Temer nas mais variadas tratativas, acabou de obter com Bolsonaro a demissão do diretor do Banco do Nordeste, emplacando outro sujeito mais do seu agrado em seguida. É a política de sempre. Nunca houve uma nova para que pudéssemos chamar essa de velha.

Todos estes tubarões da velha política que citei acima foram tema do repercutido vídeo postado por Ciro Gomes na semana passada. Nele, em meros cinco minutos, a dupla Ciro-Santana denuncia as tramóias de Lula para derrubar Dilma no primeiro governo da presidenta, com direito a incluir, en passant, Eduardo Cunha como o todo poderoso em Furnas, em uma indicação nada inocente de Lula.

Aí mora o x da questão. Assim, um atributo valioso desta biografia não-autorizada é ir neste x e dissecar os bastidores das indicações. Que, em se passando um pente-fino, mesmo o mais bobinho conclui que praticamente todas são pra lá de suspeitas e não requer muito estofo pra chegar nesse veredito.

Basta a gente por os olhos no funcionamento deste emaranhado de nomeações - gente que nunca entrou num barco é nomeada capitã de navio pesqueiro. Para que os políticos negociam, nos restaurantes de elite, a colocação dos seus apadrinhados na cadeira de direção de estatais com bala na agulha, ou, como diria o folclórico ex-presidente da Câmara Severino Cavalcanti (cavando sua própria mamata na Petrobras), na "diretoria que fura poço"?

Muito mais do que descrever os atos escusos de um político pego com a mão na botija, leituras como esta servem para iluminar, perante os cidadãos, o mecanismo bilionário que está por trás do discurso fajuto de respeito a um hipócrita "estado democrático de direito", como o pessoal adora repetir.

Quer coisa mais acintosa do que essa apelidada "PEC do Gilmar" (Proposta de Emenda Constitucional, de autoria do deputado petista Paulo Teixeira)? No frigir dos ovos, a tal PEC era uma operação que visava tornar quase impossível tipificar como crime o roubo de dinheiro público por parte dos agentes políticos.

Com base nos partidos que trabalharam pela sua aprovação, há quem, vendo o PT, identifique na costura a assinatura de Lula, e, vendo o Centrão, veja o jamegão do Jair. Esta interpretação, se correta, flagraria os dois principais candidatos à presidência em 2022 unidos - só que para dar um golpe mortal no que resta de proteção da sociedade perante a ganância genocida da classe política.

Sorte que a pressão contrária foi tal, por parte do MP e da mídia, que o golpe deu com os burros n'água. O articulador (derrotado, momentaneamente) pela aprovação dessa PEC foi o presidente do Congresso, Arthur Lira, eleito com o apoio e, diz-se, investimento do clã Bolsonaro. 

Sobre o talentoso organizador, vale até uma digressão: o alagoano Arthur Lira foi preso em 2008 pela Operação Taturana, da Polícia Federal. Tratava-se do desvio de R$ 200 milhões de reais da folha de pagamento da Assembleia Legislativa de Alagoas. Dezenas de rachadinhas de uma vez só. À época, a Polícia Federal o nominou como um cidadão "sem limites para usurpar dinheiro público". Pois o nominado recebeu carta branca do atual Presidente da República para tocar junto com Ciro Nogueira (chefe da Casa Civil de Bolsonaro) o caixa do país.

Como o pessoal gosta de dizer nas entrevistas, tudo feito de forma republicana.

Vemos hoje, na prática, o desmonte do combate à corrupção. Já o neguinho que rouba um pacote de biscoito no mercado da esquina, esse sim está f*, como diria o ex-presidente mais honesto do Brasil: apanha no flagrante, cumpre pena em instância zero e ainda é arrombado na cela, onde corre o risco de receber visita íntima diariamente. 

Mas, findo este volumoso, e melequento, nariz-de-cera, vamos dedicar uma meia-dúzia de linhas ao texto correto de Jupiara e Otávio - se é que algum bravo resiliente, termo da moda, me leu até aqui.

A biografia é fruto do trabalho relevante da dupla de jornalistas. Aloy nos deixou precocemente e o livro é mais um processo de investigação (menos) e pesquisa (mais) ao qual ele se dedicou. O seu "Os porões da contravenção", que esmiuça os vínculos entre a ditadura, o crime e o jogo do bicho, você também encontra comentado aqui no blog.

Dá para perceber, logo no início, que a biografia é não autorizada: abre revelando o apelido de colégio do biografado. "Cavi" era a a junção das sílabas iniciais de "caolho" e "viado". Maldade da garotada, que pega no pé dos mais frágeis. Mas Eduardo Cunha não gosta de lembrar do apelido.

O Eduardo Cunha debutante no mundo da política é apresentado com detalhes, com destaque para as movimentações de seu pai Ely Cunha (que, na década de 60, chegou a ser preso por fraude). Foi o pai que o recomendou a Cleo de Sá Freire, fundador do Partido da Juventude ao lado de Daniel Tourinho, e que viria a ser o partido pelo qual se candidataria Fernando Collor.

Cunha, que já tinha antes se filiado ao partido de Sandra Cavalcanti, que concorrera ao governo do Rio em 1982, foi bater na porta do pastor, se dizendo entusiasta do Caçador de Marajás. Uma longa e rentável carreira teria início aí. O leitor acompanhará como um personagem discreto partiu do  desconhecimento absoluto à Câmara do estado. E, de lambuja, os saborosos bastidores da sua nomeação para a presidência da - então - cobiçadíssima Telerj.

Sua passagem pelo posto máximo da companhia telefônica é picaresca, bem ao seu estilo: chegou a propor pagar as perdas salariais dos funcionários, que contestava, com fichas de orelhão, produto da casa. Mas, fora o chiste, o posto endossa o que comentei algumas linhas acima, e que é a tônica da política brasileira. A distribuição de cargos. Diretorias e presidências de empresas de participação governamental não servem para dirigir e presidir - e sim se prestam à criação de feudos de desvio de dinheiro público.

Só isso já justificaria a edição. Mas quem quer revisitar, ou conhecer em primeira mão, passagens memoráveis da biografia do ex-deputado não terá do que se queixar.

Poucos sabem do seu trabalho ao lado de PC Farias, o célebre tesoureiro de campanha de Fernando Collor, um velho gordo e careca assassinado por ciúmes por uma jovem lourinha bronzeada. Pelo menos o Mario Sergio Conti, em seu livro "Notícias do Planalto", insiste que tudo se passou assim.

Uma outra associação super bem-sucedida de Cunha foi com o dono do laboratório do popular Atalaia Jurubeba, o deputado Chico Silva, proprietário também da Rádio Melodia FM. O dono da emissora, que se tornou a líder absoluta no Rio de Janeiro, agradeceu publicamente a Cunha, que teria obtido uma redução de 80% em uma dívida do empresário com o INSS, no valor de R$ 16 milhões. A gratidão de Silva provocou a conversão de Eduardo Cunha - em evangélico, comunicador da rádio e em um dileto braço-direito do radialista.

Já que estamos falando em "religião", outra impagável da Eduardo Cunha e suas empresas é o registro do domínio Jesus.com e a criação de centenas de endereços eletrônicos com variações do tema. Ou sua completa dissociação entre a calça e o bolso. Por diversas vezes flagrado com valores que a Justiça considerou pertencentes a ele, ainda que em nome de pessoas jurídicas ou trusts (termo do mercado empresarial), ele se saiu dizendo algo semelhante a que a calça não tem nada a ver com o dinheiro encontrado no bolso.

Não convenceu a Justiça, que o condenou.

Menos prosaicos são as dezenas de processos listados pelos autores em que Eduardo Cunha é denunciado, desde o remoto ano de 1991 (já lá se vão trinta anos de denúncias). Segundo os autores, com base em reportagem da Folha de São Paulo, houve então fraude na licitação das listas telefônicas, quando Cunha era o presidente da companhia.

Para quem não sabe do que se trata uma lista: imagine um livro que tenha todos os usuários do Facebook no Rio de Janeiro, com o link de cada usuário impresso. Era isso.

Ao descrever casos e inquéritos que remontam dos anos 60 à primeira década do século XXI, os autores prestaram um serviço inestimável àqueles que têm interesse em se inteirar sobre a atávica engrenagem de corrupção no país. 

O alinhamento dos autores ao governo Dilma Rousseff é de somenos importância, ainda que tire parte do lustro da obra. Decerto haverá quem se valha da ostensiva parcialidade de Otávio e Jupiara para tentar invalidar o farto conteúdo. Não terá sucesso. O relatado foi obtido em processos e em páginas de jornais. O leitor consciencioso estará qualificado a tirar suas próprias conclusões.

É fato também que o livro carece de testemunhos e peca por falta de ritmo. A segunda metade do texto é sobretudo reprodução cronológica do que foi publicado na mídia. A narrativa tem vezes que se arrasta, sem brilho, como se fosse uma leitura de voto pelo Dias Toffoli. Raramente a abordagem é envolvente. Porém o conteúdo é correto e a leitura é relevante - o que já é bastante coisa. Não importa para que lado torçam os autores.

O livro foi publicado em 2019. Foi há apenas dois anos, mas era um outro século. Máscara era coisa de bandido e alguns criminosos ricos estavam presos. Bolsonaro já tinha abandonado o nióbio mas ainda  não tinha adotado a cloroquina. Seiscentos mil brasileiros a mais estavam vivos.

Rapaz, a gente era feliz e não sabia.

Editora Record, 363 páginas

Sidney Puterman

Some say he’s half man half fish, others say he’s more of a seventy/thirty split. Either way he’s a fishy bastard.

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