"Meditações a mim mesmo", por Marcus Aurelius

terça-feira, setembro 14, 2021 Sidney Puterman


Aforismos de cunho filosófico deixados pelo imperador romano Marcus Aurelius Antoninus. São doze livros, ou cadernos, cada um deles com dezenas de reflexões sobre o poder, a justiça, a solidão, a morte e a efemeridade do ser. Tem seu interesse, mas falta capricho. Uma organização acurada valorizaria o conteúdo.

O meu exemplar é uma edição pobre e mal diagramada, publicada pela Boanova.org. Nunca ouvi falar da dita cuja. Googlando, a internet nos conta que ela é uma empresa de "design digital", de São Paulo, que oferece serviços diversos, que vão de aplicativos a games, websites e editoração.

Esta mesma edição paupérrima (pela qual paguei R$ 28,73, já há um bom tempo) está agora na mesma Amazon por R$ 43,71. Não compre, nem se fie pela capa. A que é exibida no site não existe: é ilustrativa. Sugiro tentar a edição da Edipro, oferecida na rede por R$ 19,99. Se não for melhor, é mais barata. Este clone de xerox grampeada que adquiri foi finalizado de forma tão desleixada que, no sumário, a página está em branco, encimada pelo título "no table of contents entries found".

No verso do livro descobrimos que foi impresso nos EUA, pela ICGtesting.com. Provável que a Boanova.org tenha mandado o arquivo do texto para lá e recebido pelo correio os pacotes com a encomenda encadernada. Caça-níquel assumido, que ninguém vai questionar ou processar. Muito menos o Império Romano.

Marcus Aurelius é tido como o último dos "cinco bons imperadores", um ciclo virtuoso de governantes da Velha Bota que teriam se caracterizado pelas suas qualidades pessoais e boa condução administrativa (tudo o que não temos por aqui, quase dois mil anos depois). Aurelius foi longevo e beligerante: liderou o império por duas décadas e travou guerras no Oriente contra os partas e no Norte da Europa contra os alemães, então germanos.

Óbvio que eu busquei essas informações na Wikipedia. Não só eu não sabia, como a edição nem de longe contextualiza. Assim, de acordo com a enciclopédia, Aurelius teria escrito o texto (em grego) como um exercício filosófico para desfrute pessoal: visava lidar com a pressão das próprias responsabilidades burocráticas e militares. Faz todo sentido. O texto apresentado não tem uma unidade que o caracterize, nem aparenta um propósito definido.

Alguns temas recorrentes se alternam ao longo dos livros. Outras citações são demasiado herméticas. Outras ainda podem ser úteis se você é um imperador ou monarca. Se for este o seu caso, a adequação do texto decuplica. Se não, grande chance de passar batido.

Aurelius logo de cara cita Rustico, se auto-aconselhando a "ter a compreensão de que devia corrigir e cultivar o meu caráter, não me entregar à paixão da sofistica (fenômeno cultural de implicações filosóficas, segundo a Wiki), nem compor tratados teóricos, redigir arengas de exortação ou exibir-me, para suscitar admirações". 

Cita Sexto para sugerir a tolerância para com os ignorantes; Apolônio para priorizar a razão; Alexandre, o Platônico, para não se desculpar com alegações de estar sobrecarregado; Alexandre, o Gramático, para não criticar os que usam mal o idioma; Frontão, para destacar a inveja, a falsidade e a hipocrisia dos tiranos.

Ou seja, se alguém acha que há alguma novidade na perfomance dos tiranos (ou candidatos a) atuais, saiba que a fake news, ops, falsum nuntium, é mais velha que andar pra frente. 

In brevi, o tempo passa, mas o ser humano é lento em mudar a si mesmo. Pelo menos, é o que se depreende da leitura. Falando dos seus contemporâneos, Aurelius não mede as palavras: "Desprezam-se mutuamente, mas mutuamente se bajulam; querem dominar uns aos outros, mas submetem-se uns aos outros."

Um conceito bastante visitado por Marcus Aurelius é o do conformismo, da aceitação do curso das situações e da própria personalidade. Ele expõe seu ponto de vista das mais variadas formas. "Todo acontecimento ocorre de maneira que tua natureza ou o suporte ou não. Se te acontece o que a tua natureza suporta, não te rebeles; suporta-o como a tua natureza pede. Se acontecer o que tua natureza não suporta, não te rebeles, porque tanto mais cedo te há de exaurir. Lembra-te, porém, de que tua natureza suporta tudo que de tua opinião depende tornar suportável e tolerável."

Ou seja, aceite-se e aceite os outros ao redor. Sejam bons, maus ou medíocres. "Não admitir que os maus pequem é de insensato; é desejar o impossível."

Ainda que em boa parte do tempo o autor critique a pretensão, o exibicionismo e a soberba, me pergunto também se os seus escritos não buscavam dar a ele um lugar no panteão dos filósofos, já que no olimpo dos Césares ele já tinha uma suíte. Talvez o encadeamento de suas máximas sejam um "Marimbondos de fogo" com pedigree romano.

Seja como for, fato é que, se pinçarmos aqui e acolá, fazendo uma sintética edição dos melhores momentos, resta um bom aprendizado. Lembrando que a gente não tá aqui pra desperdiçar leitura.

"Não esqueças que a virilidade não é arrebatamento; a brandura e a serenidade, por serem mais próprias de homem, são também mais viris; força, nervos e bravura tem quem possui aquelas virtudes e não o agastado e incontentável. Quanto mais essa atitude se aproxima da impassibilidade tanto mais perto está do vigor."

Gostei deste trecho, ainda mais depois da fanfarronice que houve por aqui na semana passada. Embora repetitivo e vez por outra indecifrável, há em Marcus Aurelius sabedoria e bom-senso. Por fim, independentemente de juízo de valor, é uma personalidade interessante - por suas reflexões sobre a efemeridade do ser, a pompa do poder, o brilho da honestidade e o desprezo pela morte.

E com tal propriedade que suas meditações alcançam quase dois milênios e permanecem sendo descaradamente pirateadas, agora no universo virtual - vendidas na rede como se oferecidas na banca de um camelô da Via Apia. Cinco denários na promo do Césão. E é só hoje, vai?

Boanova.org, 131 páginas


Sidney Puterman

Some say he’s half man half fish, others say he’s more of a seventy/thirty split. Either way he’s a fishy bastard.

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