"Apátridas", por Alejandro Chacoff

terça-feira, setembro 07, 2021 Sidney Puterman


Este "Apátridas" fala mais sobre pai - a ausência, ou sua presença vexaminosa - do que sobre pátria. Fala bastante sobre esta, também; ao menos, o suficiente para se aprender um pouco sobre a nossa. Que, na obra, não sai nada bem na fita. Aliás, quase ninguém sai bem na fita nesse livro de estreia de Alejandro Chacoff.

Posso falar de cadeira nessa matéria de pai ausente e vexaminoso. O pai de Alejandro foi omisso, distante, pedinte e mentiroso. Meu pai foi tudo isso, com a diferença que o meu ganhou de mim um terno usado para ficar bem no caixão e o dele ganhou um livro.

Por esse prisma poderíamos encarar o livro de Chacoff como uma catarse; mas uma catarse qualquer um pode fazer, e um livro como esse, não. O texto é uma ode melancólica a um não-pertencimento difuso. O depoente é um autor que não revela quem é, só afirma o que não é. No fim das contas, me parece que o narrador ganha tintas da imprecisão do próprio pai.

A narrativa é sobre família, lugar e dinheiro. A família é formada por dezenas de personagens, que vão dos míticos - uns poucos, como o capanga Romualdo e o avô - aos caricatos, como todos os demais. "Uns caipirões", no dizer do pai, um chileno com um inglês shakesperiano e que, na auto-avaliação do próprio, falava português melhor que os brasileiros.

Se apresentava como um executivo com mercado internacional (EUA, Europa, América do Sul) e desdenhava do país da mulher; do calor à música sertaneja. "Aquilo lá é terrível", definia. O autor escavuca a ignorância local e mete um cientista americano - um antropólogo da Pensilvânia - a relatar aos matogrossenses quem eram os índios: "Estes ali são bororos". Os nativos estavam pedindo dinheiro no sinal e o caboclo Romualdo abriu a janela para debochar dos mendigos: "Ô pingaiada".

O dinheiro jorrava da fonte do avô, um coronel urbano dono de cartório. Dirigente apaixonado do Dom Bosco, fecundava com comida e donativos, em espécie, a eterna romaria dos familiares, que vinham regularmente à casa grande comer, festejar e receber envelopes polpudos com notas vivas.

O velho tabelião fazia pouco dos intelectuais e professores e fazia também generosidade com o chapéu alheio. Repetia para quem quisesse ouvir: "No Brasil só se ganha com o Estado". Quando disseram ao neto que o avô falecido era de direita, ele não acreditou.

Como também nunca conseguiu discernir na penumbra o dia em que seu pai foi posto pra fora da cidade, coagido pela parentalha da mãe e pelos capangas do avô. O menino escutava escondido, na extensão, o pai ao telefone pedindo dinheiro ao sogro - mentindo, chorando, fazendo teatro. Muitos anos depois era o próprio pai quem lhe pedia dinheiro: "Só quinhentos reais, meu filho, é uma parte da sua mesada e eu te devolvo assim que puder".

Vida afora o pai repetiria a mesma ladainha, dizendo que "fora expulso do Mato Grosso pelos jagunços a soldo da familia da ex-mulher, e que os caipirões tinham lhe roubado a casa do Jardim Jequitá". Sei como é essa choramingação. Meu pai acusava o genro, meu tio, de ter roubado o sogro, meu avô, assim dissipando a imerecida herança que caberia a ele, meu pai. Mas se meu próprio avô preferiu confiar no genro ladino do que no filho ovelha negra, tinha carne nesse angu. Vá saber.

Meu avô fugiu da guerra anos antes que ela acontecesse. Seu sexto sentido, ou senso de urgência, não foi compartilhado pela família, que permaneceu na pátria para ser assassinada por outros patriotas (ou pelos vizinhos). Lembro do seu imóvel olho azul, sua pele fria como um peixe, seu desinteresse pela minha presença. Me deu uma coleção encadernada da obra infantil de Monteiro Lobato, em dezessete volumes, e uma coleção desfalcada do Sherlock Holmes do Conan Doyle, sete de nove volumes, faltando o dois e o oito.

O círculo afetivo do autor é encolhido. O avô oscila do mítico ao afetivo, a mãe do afetivo ao caricato. O pai fica no centro desse círculo, como o palhaço no picadeiro, o camelô no Largo da Carioca, São Sebastião levando flecha. Mas, mesmo mantendo o pai sob tiroteio constante, o filho ao fim se desmancha, narrando das estórias contadas pelo pai quando ele era criança, com ele no colo e o pai fazendo todas as vozes.

Meu pai nunca me contou estórias, só mentiras. Já eu inventava estórias de bichos para os meus filhos, em todas as noites da infância. Cada filho tinha direito a escolher um ou dois bichos e dali eu criava, de improviso, a estorinha da noite. O elefante, o macaco, a girafa e outros bambambans começavam brigando entre si, mas depois se uniam contra algum malvadão da floresta e o final era sempre feliz. Então eu entendo um pouco isso também.

De volta ao garoto de Cuiabá, então já marmanjo, sua menção final ao pai é uma pausa na beligerância, uma rendição, um aceno. À mãe, ao pai, ao avô e a toda uma árvore genealógica apátrida - em cuja raiz descansava o bisavô fracassado, que foi a Londres para trazer um relógio quebrado e morreu de pneumonia ao descer o Paraná, do Mato Grosso ao Uruguai, pra vender couro de boi.

Jogou fora a carga nas águas do Rio da Prata, pois, quando atracou em Montevidéu, havia chegado antes a Depressão de 29. Mas aí já é outra história.

Companhia das Letras, 191 páginas

Sidney Puterman

Some say he’s half man half fish, others say he’s more of a seventy/thirty split. Either way he’s a fishy bastard.

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