"A diferença invisível", por Mademoiselle Carolline e Julie Dachez
Mais desenhos por aqui. Agora que embalei, vamos em frente. Há muita coisa boa nas prateleiras.
Em "A diferença invisível", os traços de Carolline sobre o roteiro de Dachez ilustram com delicadeza a atmosfera que exala de Marguerite, a tímida protagonista. Introvertida, antissocial, articulada e cheia de manias, ela encarna aquela personagem que todo grupo tem.
Eu, particularmente, me identifiquei bastante com ela. Também sou esquisitão.
E gostei do estilo. Me vi bem representado nas cores e no arranjo minimalista das imagens. A leitura é agradável e a abordagem gráfica proporciona aconchego e empatia.
A protagonista é fã de pãezinhos de espelta. Nunca tinha ouvido falar. Dei uma googlada e descobri que são pães de fermentação natural. Também adoro. Único inconveniente é que são caros.
Nem tudo são flores ou pãezinhos, porém. Há uma série de restrições a serem feitas na proposta da autora. Uma das que faço ao roteiro de Julie Dachez é o viés egocêntrico - a de que pessoas de rotina reservada sejam foco da observação contínua dos demais.
Ela se sente assim. Observada e julgada. E este talvez seja o ponto recorrente do livro, ao redor do qual a história e a própria Julie reiteradamente se posicionam. Convém refletir.
No ambiente social padrão, as pessoas flutuam. São mariposas atraídas pela luz. Circulam e disputam atenção e espaço. Na ânsia pela luz, simplesmente ignoram quem está na sombra.
A ideia de quem opta por estar à sombra (ou seja, de quem se abstém de competir) de que justo aqueles que competem pelos holofotes estejam "incomodados" pelos que estão à margem é despropositada. Revela uma vaidade descabida para quem se proclama do lado de fora.
Ora, o diferente prefere estar de fora por não ter empatia com quem está dentro. Mas alguém que está de fora e se preocupa todo o tempo supondo o que pensa quem está dentro é um sujeito menos diferente, na essência, e mais deslocado, no comportamento; falta interação e sobra insegurança.
E mais, nos remete a uma linha divisória - entre os que se põem à margem porque se sentem bem em uma rotina de mais privacidade e introspecção, de um lado, e aqueles que estão à margem por timidez, e que adorariam, na verdade, integrar diversos grupos e serem populares, do outro.
O que potencializa uma narrativa farta em exemplos contraditórios. Chamaram minha atenção.
Em uma das passagens, o diretor da companhia chama Marguerite para dizer que ela trabalha muito bem. Ressalva, porém, que ela deveria sair para almoçar com os colegas e participar das festas "de pijama". Ora, não me parece que o personagem reflita um gestor real. A experiência geral aponta que, nas empresas privadas, gestores anseiam por produtividade. Tudo o mais é periférico.
Creio que até mesmo apreciam os funcionários mais isolados, aqueles que "ficam na sua". E, cá para nós, todo ambiente "animado" se alimenta da energia dos que o promovem, e não da presença dos "desanimados". Estes só são chamados quando se precisa de quorum.
O mesmo vale para a festinha à qual Marguerite vai com o namorado e da qual resolve sair mais cedo, fazendo com que os participantes da festa a critiquem e fiquem com "peninha" do namorado. Caramba, imaginar que os participantes de uma festa se ressintam porque alguém introvertido sai mais cedo é uma pretensão pouco racional.
A galera não tá nem aí.
A edição é repleta destes exemplos ingênuos. De forma estereotipada, as idiossincrasias do temperamento da "heroína" são rotuladas como sintomas de uma doença específica. Um comportamento fora da curva se torna patológico. Este é o meu ponto.
Porque aí vale uma pequena reflexão: se para cada nova doença tivermos uma literatura, uma academia, um conjunto de especialistas, uma farmacologia, o que estamos fazendo, visto de cima, é uma acumulação de riqueza. Um fluxo financeiro é canalizado para o recém-formado nicho da doença. Nada de novo. Assim funciona a economia. Cria necessidades que fomentam demandas.
E faz parte do jogo. As ciganas que lêem mãos são somente competidoras ultrapassadas dos terapeutas e livros de auto-ajuda. O faturamento das ciganas caiu porque não se modernizaram.
A edição é também uma publicação de nicho e se insere no mercado. "A diferença invisível" está à venda por R$ 69,80 na Livraria da Travessa e por R$ 59,44 na Amazon (um exemplo de porque o mercado livreiro se insurge contra a gigante norte-americana do comércio eletrônico).
A Amazon também oferece o kit "Viva a diferença" por R$ 159,50. O texto do produto nos informa que são "Três histórias autobiográficas para celebrar a vida - e nos marcar para sempre".
Voltando à estória, Marguerite, incompreendida por todos ao seu redor, sai à cata de psicólogos e profissionais congêneres que possam lhe ajudar. Mas todos exibem o mesmo padrão de não-entendimento da doença, produzindo diagnósticos obsoletos e sugerindo tratamentos ultrapassados.
Ela enfim é direcionada para profissionais modernos, que diagnosticam correntamente sua personalidade e dão um nome para sua condição. A partir daí, ela se reúne com outros que receberam o mesmo diagnóstico. Aí, dentro da sua própria tribo, reproduzem as interações sociais de outros grupos: conversam, trocam ideias, se ajudam mutuamente, estabelecem vínculos.
Sem a abordagem dualista com que os demais personagens até aqui foram tratados, todos ásperos, ou mal-intencionados, ou egoístas, ou sem capacidade de empatia, os novos personagens, "doentes", são todos empáticos, contributivos, acessíveis. Saudáveis entre iguais. A fina flor da espécie humana.
A protagonista estabelece uma rotina pessoal, profissional e social equilibrada. Mantém suas idiossincrasias e transforma sua história em um produto que vai abastecer o mesmo filão.
Marguerite agora é feliz e bem-resolvida, e pode vender sua mini-bio ilustrada para centenas de milhares de pessoas, que se identificarão com suas desventuras e estarão convictas de que o diagnóstico correto será também para elas a abertura dos portões da felicidade.
E aí? Não sei. Talvez uma boa síntese seja "me diagnostique uma doença... e eu serei normal".
Editora Nemo, 192 páginas | Copyright 2016 | tradução Renata Silveira
Título original: "La difference invisible"
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