"O Sobrevivente", por Aleksander Henryk Laks com Tova Sender

segunda-feira, julho 27, 2015 Sidney Puterman

Houve uma vez em que o autor de "O Sobrevivente", Aleksander Laks, me deu um abraço e um beijo. Não - não foi somente uma vez. Houve pelo menos duas. Por duas vezes colou suas bochechas nas minhas. A sensação foi de peixe gelado - a mesma que eu sentia, criança, ao beijar meu avô José. A mesma pele branco-esverdeada. Os mesmos olhos. Minha mulher, Ana, diria mais: que os olhos do meu avô e os de Aleksander têm as mesmas pálpebras, que saem retas do cenho e caem sobre o olho, como uma cortina semi-fechada, que eu também tenho. Ana é boa observadora. São mesmo estranhamente iguais. Laks e meu pai são contemporâneos e compatriotas: o Sobrevivente nasceu um ano depois que o meu pai, Samuel. Ambos na mesma Polônia. Mas talvez chamá-la de pátria, para eles, não soe adequado. Se o pai de Aleksander permaneceu no país, em Lodz, apesar dos maus presságios vindos da Alemanha, o pai do meu pai, Izrael (o avô José), decidiu diferente. Se antecipou. Veio em 1930 para o Brasil, trazendo mulher, filho, cunhadas e cunhados. Da família dos pais de Izrael não veio ninguém - meu avô José nunca mais os viu. Morreram todos, tragados pela bestafera nazista. E é aí, pelo retrovisor, que a história dos Laks é igual à história dos Puterman que permaneceram em Varsóvia. Eu, da boca da minha família paterna, nunca soube nada. Nem da Europa, nem do Holocausto, nem do seu recomeço em um novo país. Diante da separação dos meus pais quando eu tinha apenas sete anos, desse percurso dos imigrantes europeus só carreguei o nome. O contato era errático e a proximidade nenhuma. Pena. Mal e mal soube deles, que, agora, à exceção do meu único primo (que revi ano passado), também partiram todos para o outro plano, mortos de velhice. Mas desde os meus treze anos que sei bem a dimensão do que ocorreu na Europa dos anos 30 e 40. Se meu avô José (nos documentos, Izrael; José foi o nome "brasileiro" que adotou, assim como minha avó Cirla Rawicz Puterman se rebatizou Cecília) trocou poucas palavras comigo ao longo da vida, deu-me livros, de valor inestimável, incluindo minha preciosa coleção infanto-juvenil do Monteiro Lobato, encadernada, que guardo até hoje. Me deu também, não lembro quando nem como, um livro da sua própria estante, "Treblinka", sobre o campo de concentração e o assassinato em massa de mulheres e crianças. Li-o, moleque, com sofreguidão, e caí estarrecido - como aquilo poderia ter acontecido? Como milhões de pessoas foram subjugadas e mortas como gado? Desde então li compulsivamente tudo o que encontrei sobre a Alemanha de entre as guerras, o Tratado de Versalhes, a Segunda Guerra e a Solução Final, as grandes crateras de lixo moral que mancharam para sempre a história da Europa. Com a avidez que sempre tive por saber mais, quando li que um sobrevivente dos campos de extermínio faria uma palestra em Petrópolis, eu estava na primeira fila. Fiquei petrificado. Ele voltou, anos depois, e eu de novo estava lá - dessa vez, com minha esposa e meu filho. O palestrante era o Sobrevivente, Aleksander Laks, no Brasil desde 1949. Numa terceira vez, levei as fotos tiradas na segunda palestra, para que ele autografasse as fotos e o livro - que, lamento, jamais li, enquanto ele viveu. Sabia que o livro era a transcrição das palestras. Eu tinha dezenas de outras obras esperando para serem lidas. Não queria sofrer, de novo, ouvindo de novo a mesma sucessão sem caráter. Ser exposto novamente à mesma maldade infinita, que já conhecia de cor e salteado. O que eu devia saber, porém - eu que tanto leio -, é que um livro é um testemunho insuperável. É o discurso elevado à enésima potência. É a chave que abre a porta das pessoas e dos fatos. Agora, eu entrei. Fui no passado do Sobrevivente e andei por entre seus terrores. Passeei entre as grades, a fome, o frio e os cadáveres. Uma caminhada que já fiz cinquenta vezes, por cinquenta livros diferentes. Mas essa semana - até que enfim! - os pesadelos e calafrios que nunca saíram da cabeça de Laks ficaram para trás. Há cinco dias, Heniek, o Sobrevivente, morreu. Aos 88 anos, deixou o planeta hostil e foi rever o pai. Foi também reencontrar suas duas mães e as sete boas almas encarnadas que o ajudaram (como emocionantemente descreve Tova Sender no posfácio). Que felicidade não devem estar desfrutando nesse instante! O pai, herói, recebe no plano espiritual seu filho, super-herói. (É nítido que eu sou reencarnacionista, né? Pois é. Sou.) Então, como disse, li o livro e entrei. Com ânsia, de um dia para o outro. O relato que ele deixou é demolidor. Sem floreios, sem divagações. O preto no branco. O judeu na Europa sob o jugo nazista. Num só fôlego. Antecipa que Auschwitz e tudo o mais que viveu sob o domínio sem escrúpulos do III Reich não era comparável ao inferno - era cem vezes pior. Da invasão alemã à Polônia, dos guetos, dos campos de concentração, dos trabalhos forçados, da capitulação nazista, da ocupação aliada - cada um desses períodos foi repleto de humilhação, de assassinatos, de crueldade e covardia. É indescritível e não há como escolher uma ou meia-dúzia de atrocidades para citação. São vergonhosamente ímpares. Quem quiser que as leia. O fim da trajetória de Laks, com a Marcha da Morte imposta pelos alemães aos prisioneiros, fazendo com que perambulassem, sem comida, açoitados e sob o frio, por uma Alemanha em destroços, às vésperas da vitória aliada, além de simbolizar a absoluta falta de propósito da inumana perversidade nazista, levou condenados judeus a dividir novos campos com prisioneiros de guerra - e aí o livro de Aleksander Laks, judeu polonês, se mistura com o de Robert Antelme, guerrilheiro francês, cujo livro, "A espécie humana", li há poucos meses. Eles contam de forma diferente o incontável. O inacreditável. O inconcebível. Ainda que às portas do morte e soterrado por um gênero de maldade sem igual, o pai de Heniek, Jacob Laks, pediu ao filho, após seis anos de gueto, prisão, tortura e fome: "Se você sobreviver, conte tudo o que aconteceu conosco. Conte sempre, ainda que não acreditem." Nada mais. Foi o que fez o Sobrevivente. Se milhões de vezes houve quem tentasse alterar a História, Aleksander Laks, o Sobrevivente, não permitiu. Ele não faz concessões, digressões ou firulas. Apenas conta o que sofreu. O que viu. Ele sobreviveu e jamais parou de contar. Eu tive a feliz oportunidade de escutar e aplaudir o Sobrevivente. Duas vezes! Uma honra. Agora li seu livro. E agora conto o que Heniek, o Sobrevivente, contou incessantemente enquanto durou a sua longa vida. Sou mais um a repetir e preservar sua história. Deus te abençoe, Heniek.

Record, 172 páginas

Sidney Puterman

Some say he’s half man half fish, others say he’s more of a seventy/thirty split. Either way he’s a fishy bastard.

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