"Águas fortes cariocas", por Roberto Arlt

terça-feira, julho 21, 2015 Sidney Puterman

"Entre as mulheres desonestas, me interessam as virgens." Pelo estilo e pelo caráter, ninguém duvidaria fosse escrita por Nelson Rodrigues. Não é o caso. A bem da verdade, ela - a frase - antecede em alguns anos a conquista da fama pelo nosso mais famoso dramaturgo. Seu autor é um hermano que passou por essas plagas oitenta e cinco anos atrás. Veio a serviço: escrever pequenos artigos detalhando para os argentinos o que e como era o Rio de Janeiro. Roberto Arlt é o nome da fera. Autor controvertido em sua própria terra, cuja crítica o estigmatizava pelo uso frequente do lunfardo (a gíria argentina), era, não obstante, sucesso de público: suas crônicas, tidas por mal escritas, eram devoradas pelos leitores. Arlt merecia esse apetite. Mordaz e absolutamente incorreto nas suas frases cáusticas, ele vai do fascínio por um Rio ordeiro e trabalhador ao desprezo por esse mesmo Rio de Janeiro. Os artigos, em ordem cronológica, mostram seu deslumbramento com a gentileza e a hospitalidade carioca, a princípio. Se derrama em elogios pela forma carinhosa com que os cariocas se tratam entre si e também a ele. Fica pasmo com a segurança e a honestidade do povo (imagine se voltasse ao Rio hoje). Com a passagem das semanas, porém, o entusiasmo começa a murchar. Logo percebe a superficialidade que têm as coisas na Cidade Maravilhosa. Encafifa com a bovinidade popular, com o inexistente hábito da leitura e ri da nossa revolução de 30 ("revolucionários e legalistas têm o bom cuidado de deixar entre si uma distância razoável, até que cheguem a um território neutro, após atravessarem milhares de quilômetros - o "avanço" costuma durar um ou dois anos, sem que se lamente o desaparecimento de nenhum combatente"). Os negros - que ele chama de "grones", uma inversão de sílabas então em voga entre a malandragem portenha - são alvo de toda sorte de zombaria. Como os argentinos, de quem adora caçoar, principalmente os escritores (detona inclusive com Jorge Luís Borges). Mas, na verdade, ele, ao cabo, não poupa nada, nem ninguém, exceto a si próprio. Arlt, apesar de uma boa penca de asneiras e impropriedades, é uma mente afiada, irreverente e bom de papo. A coletânea que nos é servida é iguaria fina, antipasto apimentado que não deve faltar nas boas mesas. Quem gosta do tempero, que se lambuze.

Editora Rocco, 254 páginas

Sidney Puterman

Some say he’s half man half fish, others say he’s more of a seventy/thirty split. Either way he’s a fishy bastard.

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