"Lá não existe lá", por Tommy Orange

domingo, fevereiro 14, 2021 Sidney Puterman


Se é que há por aqui um interesse pelos indígenas norte-americanos, é ralo - já o meu sempre foi encorpado. Certamente porque ainda peguei o fim daquela geração que brincava com o "Forte Apache" da Estrela e assistia filme de faroeste todo dia na Sessão da Tarde (pode ser pouco para despertar interesse genuíno, mas é que eu me interesso fácil por qualquer assunto). E acho que a leitura do "Último dos moicanos", quando eu tinha uns 13 anos, também me deixou pilhado.

Triste é que no cinema a representação deles sempre foi pra lá de ridícula. E não por acaso: cada sujeito inverossímil que eu vi fazendo o papel de indígena... o Burt Lancaster, o Charles Bronson (ambos de olhos verdes), outro Burt, o Reynolds, o Anthony Quinn (esse foi mais aceitável, atuava como grego, também). Sem contar que a performance desabonadora de ficarem fazendo círculos em torno das carroças como se fossem patinhos de metal, num parque de diversões, também não ajudava nada na construção identitária dos índios da América do Norte.

Sem falar no cacique grandalhão que serviu de escada (literalmente) para o Jack Nicholson em "Um estranho no ninho".

A propósito, o livro que deu origem ao filme, que não li, é comentado neste "There there" (título original) pelo personagem Bill Davis, que o teria lido na prisão (um lugar bastante frequentado pelos índios, de acordo com o autor). "Bill amou Um estranho no ninho. Ficou puto quando fizeram o filme e o sujeito Nativo, que era o narrador do livro todo, limitava-se a fazer o papel do Índio doido silencioso e estoico que jogava a pia contra a janela no final para salvar Jack Nicholson."

Em resumo, como você pode constatar, a exposição cinematográfica do povo indígena norte-americano não é nada generosa. Porém, ainda assim, é o que há: não é costumeiro vermos índios ocupando posições de visibilidade nos EUA (uma recente e bem-vinda exceção é a nomeação da kawaik Deb Haaland por Joe Biden; que, parece, não irá parar por aí em sua política de resgate e valorização das minorias). Por isso, quando li sobre o texto de Tommy Orange, me interessei logo. 

A oferta de conteúdo pertinente sobre o tema é escassa. Sobre o índio contemporâneo, então, é quase nenhuma, o daqui ou o de lá. Se aqui não sabemos muito sobre a rotina dos nossos índios aculturados - misturados aos diversos grupos de baixa renda dos quais o Brasil é pródigo -, praticamente nada conhecemos sobre o cotidiano dos descendentes dos índios norte-americanos. 

Daí a relevância de escutar a narrativa dos seus próprios tritataranetos, e como eles se veem incluídos - ou, mais provavelmente, não - na sociedade norte-americana de hoje.

O livro de Tommy Orange sacia esta curiosidade (ainda que só em parte, e, talvez, pela pior delas). Sim, os descendentes indígenas são deslocados, bebem demasiadamente e integram o extrato mais pobre da sociedade americana. Sua estrutura familiar é frágil e sua absorção pelo mercado de trabalho é risível. Alternam entre a tendência à ociosidade e à violência. As tentativas de manutenção da sua cultura soa ridícula e artificial para a juventude. Por outro lado, limitados pelo estereótipo, lhes resta tão pouco a que se agarrarem, que esta representação cerimonial do que já foi a cultura dominante do continente é tudo que têm. 

Os powwows são justamente isso. Um arremedo. Uma migalha. Como uma Feira de São Cristóvão mais elaborada, os indígenas se reúnem em grandes eventos, onde tocam a sua música milenar e vestem suas fantasias de índio. Dançam e celebram em um grande pátio de rodeio, como se desfilassem em uma escola de samba. Basta digitar powwow no youtube que você vai ver que não exagero.

Tommy discorre sobre um destes acontecimentos e se expressa assim, por um personagem: "Ele observa pessoas apontarem para os trajes umas das outras. Ele é uma perua antiga numa feira de automóveis. Ele é uma fraude." Arremata: "Ao fim da Grande Entrada, os dançarinos se dispersam (...), agindo normalmente, como se não tivessem o aspecto que têm. Índios fantasiados de Índios."

A pantomima é sua herança. Porque as referências do passado são elementos míticos inexistentes no seu dia-a-dia urbano, que lhes provoca um misto de intolerância e nostalgia - ou pura impaciência, como nítido na fala de um dos personagens adolescentes: "Tudo que temos neste momento são histórias de reserva e versões cagadas de livros escolares de história ultrapassados."

Este contexto desterrado é o pano de fundo do romance de Orange, enviezadamente lastreado nas entrevistas feitas por um contador de histórias. Um dos seus personagens se candidata a ser financiado pela área cultural da assistência social aos indígenas com este projeto: contar histórias de índios. Mais nada. A ideia é pagar para índios sentarem em frente à sua câmera e falarem o que quiserem, por quanto tempo quiserem. 

Então poderia ser esta, literalmente, a fonte de Tommy. Há momentos em que tudo parece derivar daí. Mas sua reorganização criativa tira tudo de lugar. Como quem entra de madrugada no supermercado, arrasta as gôndolas e inverte as prateleiras, e lhe desafia a achar as latas de molho de tomate. As estórias estão lá, mas ao invés dos índios contarem as estórias, Orange as reconta fatiando-as em nichos estanques, intervalados, como se fossem peças desencontradas de um grande quebra-cabeça, que só vão se encaixar no final.

Cada flagrante de vida é um capítulo e cada capítulo tem o nome de um personagem. E ressaltando que cada um deles é dedicado a contar exclusivamente a história daquele índio ou grupo de índios naquele certo dia, com seus fatos contemporâneos e com suas redivivas reminiscências.

O leitor, feliz por se acomodar à estória, logo terá que dar um reset no conforto do seu entendimento, pois na sequência uma nova carta será tirada do baralho. A nova carta, também conhecida como "o capítulo seguinte", trará um outro personagem, que aparentemente não terá nada a ver com o anterior, a não ser pelo fato aglutinador de que todos são índios. Resta ao leitor assistir a troca de canais entre índios desajustados frente à sociedade americana e frente a si mesmos. No fundo, são jovens adolescentes de periferia, que agem como quaisquer outros. Com o problema que não têm como se misturar na multidão. São índios.

O grande número de cartas-capítulos e, por conseguinte, de personagens, exige bastante do leitor. Eu apanhei um pouco para acompanhar. Quando um personagem volta a ser tema de um capítulo, ele novamente o renomeia, sem distinção dos capítulos anteriores nomeados também por ele. Há vários capítulos chamados Opal Viola Victoria Bear Shield

Vale frisar que, como você pode ver, estes nomes são um tanto quanto inusuais. São na maioria nomes indígenas. E, como explicitado num dos capítulos, os índios jovens odeiam aqueles nomes, que só enfatizam sua diferença excêntrica. Os adultos valorizam a diferença. Já os adolescentes querem ser iguais.

Opal Viola Victoria Bear Shield. Jacquie Red Feather. Edwin Black. Tony Loneman. Dene Oxendene.

Ter esses títulos por nome de batismo tornava mais difícil a busca para ser igual. Para se misturar aos demais. Fato que o nome só piorava o que já estava mal parado, porque a mera cara já entregava.

"Dene não é obviamente nativo. Ele é ambiguamente não branco. Ao longo dos anos, muitos o tomaram por Mexicano, perguntaram se era Chinês, Coreano, Japonês, Salvadorenho certa feita, mas na maioria das vezes a pergunta vinha assim: você é o quê?"

Por aqui assumimos que o racismo na sociedade ocidental se resume ao estigma contra os negros. Mas os norte-americanos são mais variados neste quesito.

O autor se vale de Blue para enfatizar: "Eu trazia para casa insultos racistas ultrapassados como se estivéssemos na década de 1950. Todos xingamentos contra mexicanos, naturalmente, já que as pessoas de onde eu cresci não sabem que os Índios existem ainda."

Outro personagem de Orange, Frank, diz assim: "Seu pai lhe contou que tinha sido proibido de jogar bola na faculdade porque era Índio, em Oklahoma. Em 1963, era tudo o que bastava. Nada de Índios ou cães nas quadras ou bares ou fora da reserva."

Estes excluídos, mal agrupados neste bando melancólico, avançam na sua redoma e mal se cruzarão até o fim do texto, exceto pelo fato de que todos rumam para o mesmo powwow, onde acontecerá o evento máximo que levará o romance ao clímax. Particularmente, achei criativo no conceito, mas disfuncional na execução. Na contracapa, há testemunhos entusiasmados de que Tommy Orange é um legítimo representante do que há de melhor na nova literatura norte-americana.

Decerto o entusiasmo é um misto de estímulo exponenciado com a satisfação de ver a flor brotar do pântano. Encaro a empolgação com ceticismo, ainda que não negue a beleza do texto de Tommy e a desesperança que o consome. Passo a ele a palavra, que fala da história que o cerca pela voz dos seus muitos personagens. 

"Não existe relação especial entre os Índios e o álcool. É só o que é barato, disponível, legal. É o que temos para recorrer quando parece que não sobra mais nada."

"Agora estou envolvido com prevenção ao suicídio. Quinze parentes meus cometeram suicídio ao longo da minha minha vida, sem contar meu irmão."

"Os Índios Urbanos sentem-se em casa andando à sombra de um edifício do centro da cidade. Acabamos conhecendo o horizonte do centro de Oakland melhor que qualquer cordilheira sagrada. Andamos de ônibus, trens e carros através, sobre e por debaixo de planícies de concreto. Ser Índio nunca teve relação com retornar à terra."

"Não cometa o equívoco de nos chamar de resilientes. Não ter sido destruído, não ter desistido, ter sobrevivido não é nenhum distintivo de honra. Você chamaria de resiliente uma vítima de tentativa de assassinato?"

Porém, entre as muitas aspas do livro de Tommy, me pareceu que uma citação irreverente, adesivada no para-choque da picape de um índio, resuma melhor que qualquer outra o sentimento de uma etnia em risco. 

"Lutando contra o terrorismo desde 1492."

Editora Rocco, 303 páginas

Sidney Puterman

Some say he’s half man half fish, others say he’s more of a seventy/thirty split. Either way he’s a fishy bastard.

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