"Uma breve história do Islã", por Tamara Sonn

domingo, fevereiro 21, 2021 Sidney Puterman


O subtítulo promete ser este "um guia indispensável para compreender o Islã do século XXI". Não se fie na chamada. A obra passa longe disso. Lançada originalmente nos Estados Unidos em 2004, mas publicada no Brasil somente em 2011, chegou aqui exatamente uma década após o seu leit motiv: defender e recontextualizar a cultura muçulmana para um recalcitrante cidadão ocidental, abalado pelo 11 de setembro contra as torres gêmeas.

O resultado passou longe do objetivo. A densidade do livro é irregular e em momento algum há equilíbrio entre as narrativas religiosa, histórica e política. A primeira é dominante e monocórdia. Uma ênfase excessiva nas divisões grupais surgidas após a morte de Maomé, há um milênio e meio atrás, ocupa boa parte do trecho inicial da obra.

A questão proposta é a divergência entre diversos grupos - e Sonn discorre sobre qual deles seria o genuíno representante do legado maometano. A legitimidade de cada facção em se dizer o autêntico porta-voz do islamismo é, para nós, inextrincável. Não temos conhecimento prévio, nem a obra nos faculta uma fração que seja deste discernimento. Assim, a insistência no tema faz com que o livro se assemelhe mais a um tratado religioso do que a uma análise histórica.

Mais à frente, após uma primeira metade engessada, o livro se aventura em contornos mais seculares - com a chegada das Cruzadas e, posteriormente, do Império Otomano - e há uma significativa redução do peso da religião na narrativa.

Nas páginas dedicadas aos séculos XIX e XX a tônica se torna a organização política dos países muçulmanos. É quando a autora se sente mais à vontade, embora ainda aqui o texto se ressinta de fluidez, essencial a qualquer obra. A opressão imperialista, as cisões internas, os ditadores de ocasião e a decadência do Ocidente se tornam o novo foco de Tamara Sonn. 

Não obstante, o bloco inicial, histórico-religioso, não traz respostas e desdobramentos à complexidade do tema; e o bloco final, histórico-político, não tem a musculatura necessária para nos esclarecer sobre um período tão conturbado da geopolítica mundial.

Fica no leitor a impressão de que, em meio à superficialidade e indefinição temática da obra, há algumas boas passagens, mas que não logram constituir unidade. Resta então incompleta a missão à qual o livro se propôs: resgatar a personalidade da cultura islâmica perante o cidadão do Ocidente.

Outrossim, muito pouco do que é narrado nos permite um aprofundamento na rica história do Islã - que, pela sua enorme contribuição para a história moderna, merecia uma dissertação mais bem fundamentada. Para quem supõe fosse este o escopo da obra, a tentativa foi em vão.

Fora isso, há que se considerar que houve dezenas de outros ataques subsequentes ao atentado de 11 de setembro, data fatídica que a autora pretenderia dissociar do Islamismo. Homens-bomba em boates cheias de jovens e caminhões atropelando multidões deliberadamente não ajudaram a melhorar a imagem dos jihadistas.

Transmissões ao vivo de jornalistas sendo decapitados também contribuíram muito pouco - nada, na verdade - para dissociar o terrorismo sem fronteiras da cultura islâmica milenar.

Na última década, a França se tornou o epicentro das agressões de grupos terroristas muçulmanos, mas não a única: eles se distribuíram por outros países e continentes, África e Ásia incluídas. 

A pandemia paralisou a escalada das ações. Não há dúvida de que o vírus mata diariamente muito mais ocidentais que o mais bem sucedido dos ataques. Um pouco antes da sua suspensão, porém, nós, brasileiros, fomos também atingidos (embora a América do Sul venha se mantendo longe do roteiro de atrocidades, ocasionalmente cidadãos brasileiros têm suas vidas ceifadas).

Ainda que não tenhamos muita experiência em sermos atacados, é notório que não há como uma vítima se defender de um atentado terrorista. Tudo acontece antes que se perceba e antes que a vítima tenha a oportunidade de questionar o carrasco, na hora fatal: "Sou inocente e não tenho nada a ver com isso. Você está me trucidando por que mesmo?"

Esta simples frase, por exemplo, não pôde ser dita pela imigrante baiana Simone Barreto. A brasileira foi morta enquanto rezava em uma igreja em Nice, sul da França. Mãe, negra, religiosa, morreu degolada em um ataque covarde - em nome de uma causa que nós aqui não fazemos a menor ideia do que seja. Nem entendemos também sob que aspecto o assassinato aleatório de civis pacíficos poderia contribuir para que árabes que se supõem injustiçados conquistem o que reivindicam cometendo injustiças contra populares inocentes.

Mesmo um bom livro teria dificuldade em defender uma cultura da conduta terrorista de radicais.

Um mau livro, nem pensar.


José Olympio Editora, 274 páginas

Sidney Puterman

Some say he’s half man half fish, others say he’s more of a seventy/thirty split. Either way he’s a fishy bastard.

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