"A ordem do dia", de Éric Vuillard

domingo, fevereiro 28, 2021 Sidney Puterman


Ensaio instigante. Éric Vuillard embrulha o estômago do leitor com a cumplicidade entre os magnatas da indústria alemã e o nazismo recém aboletado no poder. O francês conta sua estória como um joalheiro escolhe safiras. Ou como um alemão arranca dentes de ouro da boca de um judeu moribundo.

O escritor se detém em algumas minúcias capitais da tomada da Europa pelos nazistas. A reunião dos ricaços com Göring, o vaidoso comparsa de Hitler, c'est l'ouverture. É com esta turma que ele abre e fecha o livro. Um jantar da cúpula do partido com os homens que comandam a Krupp, a Bayer, a BMW, a Opel, a Daimler, a IG Farben, a Agfa, a Shell, a Telefunken, a Siemens et caterva

Göring, o presidente do Reichstag, discursa. Eram oito da noite do dia 20 de fevereiro de 1933. Hitler fora indicado chanceler há poucas semanas. O orador ressalta que no início de março haverá uma eleição parlamentar. O partido nazista precisa da contribuição financeira dos presentes para fazer frente aos gastos de campanha. Göring diz que, se o partido conseguir a maioria dos assentos, ficará no poder dez anos. Logo se emenda, com um riso galhofeiro: "Cem anos."

Findos os prolegômenos, surge a grande estrela. O Führer, em pessoa. O chanceler da Alemanha. Faz uma exposição breve (meia horinha só) ao empresariado: "Era preciso acabar com um regime fraco, afastar a ameaça comunista, tarará pão duro". Ao fim do convescote, o futuro ministro da Economia dá a convocação: "E agora, senhores, ao caixa!"

Café pequeno. Alguns bilhões de marcos para azeitar a máquina do III Reich. Como ressalta Vuillard, este compromisso extraordinário das grandes empresas com os nazistas "não passa de um episódio muito comum na vida dos negócios, uma banal angariação de fundos. Todos sobreviverão ao regime e financiarão no futuro muitos partidos de acordo com a performance."

O capítulo seguinte especula sobre o encontro de chanceleres entre Hitler e Schuschnigg no Berghof, uma pantomima em dois atos. Procurando um início inspirado para o lero-lero protocolar (o belo visual, a brisa), o chanceler da Áustria toma logo um passa-fora do chanceler da Alemanha: "Não estamos aqui para falar da vista nem do tempo que está fazendo!"

Schuschnigg enfiou a viola no saco. Não é nem da nossa conta, um austríaco esculhambando o outro. Um mês depois a Alemanha vai invadir a Àustria, no Anschluss. Os panzers alemães enguiçam no caminho e atrasam a invasão. A Áustria aguarda com paciência para ser invadida - e, polidamente, não dispara nem um tiro. Sua única reação são gritos esganiçados. "Heil, Hitler!"

Mais à frente o autor faz troça do vendedor de champanhe, Joachim von Ribbentrop, embaixador do Reich, marotamente esticando o jantar diplomático em Downing Street, 10. O alemão era tão safo que conseguiu alugar um apartamento cujo proprietário era... Neville Chamberlain, o primeiro-ministro inglês. Contando, ninguém acredita. Quase um Warbnb, com o perdão do trocadilho, imperdoável.

O jantar de entrega de chaves era também o bota-fora do diplomata, que retornava à Berlim para assumir um cargo maior. Hitler o tinha em alta conta, embora, por trás, debochasse do sujeito. Mas, no dizer de Vuillard, o Führer o notara "graças à sua naturalidade, à sua elegância old fashion e à sua cortesia, em meio ao que era o partido nazista: um monte de bandidos e criminosos."

Já Ribbentrop achava os ingleses uns incapazes. Nesta noite, em que a alta cúpula britânica estava à mesa, encompridou a conversa fiada o quanto pôde. Principalmente depois que Chamberlain recebeu um envelope oficial, que leu, pálido. O alemão matraqueava com gosto. Sabedor do teor da missiva secreta, falou de tênis, vinhos e outras mundanidades, até que o anfitrião conseguiu se livrar dele, altas horas. 

Só então o primeiro-ministro inglês pode revelar aos seus ministros, com desconcertado atraso, que a Alemanha invadira a Áustria. Leite derramado já há algumas horas.

Pequenos causos, de grandes consequências. A leveza cínica com que Éric Vuillard desliza pelos salões da Europa às vésperas da guerra não esmaece nem ao descrever o suicídio dos judeus de Viena ou, a posteriori, o escárnio dos figurões nazistas no Tribunal de Nuremberg.

Ou quando alinha os números do trabalho escravo, dos judeus, poloneses, russos, tchecos, eslavos de todo canto, que sustentaram a produção das indústrias dos magnatas que abrem o livro e também este post. Milhões de horas de trabalho em troca de um reles prato de sopa e dezenas de milhares de covas esperando pela troca de turno. 

Os mais curiosos podem visitar neste exato instante as homepages de estilo clean de cada uma destas "instituições" centenárias. As empresas que financiaram o nazismo ainda lideram o mercado. Inimputáveis, estão agora mesmo a um palmo de distância do seu pescoço, na tela do seu notebook.

Tusquets Editores, 141 páginas

Sidney Puterman

Some say he’s half man half fish, others say he’s more of a seventy/thirty split. Either way he’s a fishy bastard.

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