"Jussara Calmon, muito prazer", por Fábio Fabretti

domingo, março 07, 2021 Sidney Puterman

Muitas vezes requisitada para estrelar as capas irreverentes do Pasquim (um abusado tablóide de humor político que marcou as décadas de 70 e 80), Jussara Calmon publicou há alguns anos a sua biografia. Pena que a parte mais historicamente representativa do seu trabalho - o convívio com uma redação que marcou época no jornalismo de esquerda - ocupe pouco mais do que duas páginas da sua narrativa. É provável também que ela não tenha preservado o miolo das edições onde foi capa. Se ela pudesse traçar um paralelo entre o conteúdo da edição semanal, os bastidores da produção das capas e o andamento da própria carreira enriqueceria bastante a publicação. Mas isto não foi feito (nem deve ter passado pela sua cabeça). Porque o livro, em si, é basicamente um canal para a jovem que saiu da pobreza extrema levar aos seus conterrâneos e contemporâneos a mensagem que lhe importa: ela "venceu". Ter dinheiro, viajar, ser desejada, aparecer na mídia, ficar "famosa", casar com um europeu rico - ou seja, ela pode ver a si mesma como uma "celebridade". A maior parte do livro diz respeito às suas participações em filmes, em peças de teatro, em shows e em novelas. A experiência nos palcos deixou pouco registro. Já nos filmes os papéis eram ligados à nudez e ao sexo, enquanto nas novelas suas aparições se restringiram à figuração - ou, se muito, a papéis de apoio, de pouca ou nenhuma fala. Se a descrição da sua carreira, porém, não tem maior relevância além do seu círculo próximo, as páginas iniciais despertam interesse. O valioso relato que ela faz da sua infância, das restritas opções de vida e moradia da família, do alcoolismo e da violência do pai, da experiência como doméstica e prostituta iniciante, são o ponto mais consistente do texto. Trazem uma narrativa verossímil das alternativas da mulher pobre e ignorante, mas fisicamente desejável, na sociedade brasileira do século 20. Circunstâncias que ela enfrentava desde bem cedo, pois, como ela frisa, "ser uma criança num corpo de mulher só me trouxe problemas". Entre suas desventuras está presente também o quase imperativo abuso doméstico: ela narra o sexo oral que, menina, foi convidada a fazer no tio. Como é praxe, não contou nada à mãe sobre o boquete no tio safado (que depois virou pai-de-santo). Isto se deu pouco antes de fugir de casa, quando atendeu a um anúncio de faxina e acabou indo limpar um bordel, onde, diante dos seus atributos, foi remanejada para o carro-chefe da casa - sina da qual logo escapou. A partir do instante em que ela, adolescente, sai da prostituição no Espírito Santo e vem, com o novo amante carioca, para o Rio de Janeiro, o falseamento da narrativa ocupa um espaço crescente, visto que, como disse acima, o livro é um veículo para afirmação da sua vitória social. Daí em diante o relato é bem menos confiável. A descrição do amante trambiqueiro, que vira jogador de cartas e traficante, é pouco convincente. Segundo o texto, ela e ele são presos pela ditadura militar e torturados em um batalhão na Ilha do Governador, que ela chama de "Ilha da Morte" e "campo de concentração". Encarcerada, ela revela ter se tornado amiga do coronel torturador, com quem saía para dar umas voltas e transar no carro (quando não na própria cela). Enquanto isso, o ex-amante, Álvaro, seguia sendo espancado no pau-de-arara. Com o sujeito mantido atrás das grades, ela se instala novamente no apartamento em que vivia com o traficante, agora com o coronel dormindo na cama do ex. Trama novelesca (daria até para ter um plano-sequência, com o coronel dando um pau no prisioneiro, deixando o serviço por conta dos comparsas, enquanto a câmera troca de janela e enquadra o coronel entrando na outra cela para dar um pau na namorada do torturado). Provável que o ghost-writer, Fábio Fabretti, tenha se empolgado em demasia. Além de assaz fantasiosa em alguns pontos, a narrativa tem vários erros de contextualização histórica. O texto final fica a dever, abusando dos erros gramaticais e exibindo uma revisão (houve?) amadoristicamente negligente. Só para dar uma ideia ao leitor, no capítulo "Inesquecível Nik Nicola" - que, peço perdão ao inesquecível ator, não me vem à memória -, o dito cujo aparece grafado "Nik" no título e também em um dos parágrafos, mas em outras três citações vêm como "Nick". Antecipando as constantes contradições do texto, três páginas à frente o mesmo Nick vem de novo como "Nik": "Muitos galãs e atores são hoje pouco lembrados, como Nik, Ankito, Chocolate, Colé, Manula e o anão Caçula". O "inesquecível" foi rebaixado a "pouco lembrado" em apenas três páginas. Que fase. Já o "Nik vs Nick" acabou empatado em 3 x 3. Mas fato é que a edição entrega tudo o que tem de valioso nas primeiras trinta páginas. Ainda que sua trajetória como atriz da Boca do Lixo dos anos 80 seja um testemunho da época, sua preocupação em se apresentar como atriz esvazia uma remota representatividade do depoimento. É inegável que, como "estória de vida", Jussara Calmon merece o aplauso por ter se valido do aprendizado da pobreza e do assédio para uma reversão das expectativas. Ao invés da miséria, da prostituição e da invisibilidade, virou capa da própria biografia. A capa, diga-se de passagem, parece enfeite de bufê de casamento, e seu mau-gosto conta muito da edição. Ao fim, a experiente Jussara, casada com um norueguês, se dobra à genuína qualidade do amante brasileiro ("o sexo com estrangeiros faltava algo que demorei a assimilar: a sacanagem dos brasileiros, aquele jeitinho que só os brasileiros têm").  Pela deferência, agradeço, penhorado, em nome dos meus conterrâneos. Depois da falência do nosso futebol e da nossa desastrosa performance no enfrentamento da pandemia, pelo menos em alguma coisa o brasileiro tinha que estar à frente dos europeus. Valeu aí, Zé. Sacanagem é com a gente mesmo.

Giostri Editora, 260 páginas

Sidney Puterman

Some say he’s half man half fish, others say he’s more of a seventy/thirty split. Either way he’s a fishy bastard.

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