"Submissão", por Michel Houellebecq

segunda-feira, outubro 31, 2016 Sidney Puterman

Ler ficção não é muito minha praia - se bem que, recentemente, li algumas boas obras, velhas e novas, que me deram enorme prazer. Também não sou chegado a esta onda de romantização histórica. Fico sempre com a impressão de que reúnem o pior de dois mundos: os personagens são presumidos e a história é aproximada. Isto posto, me caiu nas mãos uma crítica sobre um autor tido por polêmico, de nome com um quê medieval, que fazia uma projeção da França para daqui a dez anos. O tema do cara é a bola da vez: os recentes conflitos étnicos que vêm marcando a trajetória da França no século XXI, em meio a uma Europa assolada por um incontido e indesejável fluxo migratório. Na sua sátira profética, Michel Houellebcq faz uma viagem curta a um futuro próximo e testemunha a islamização da França.  A narrativa açambarca de 2017 a 2022 e tem início na morna (para os nossos parâmetros recentes) eleição de um premier islâmico, de discurso moderno, beneficiado pela polarização entre os antiquados partidos socialista e de extrema-direita (fuçava a grafia na internet e descobri que este primeiro-ministro maometano, criação de Houellebcq em meio a outros personagens reais, ganhou vida e tem hoje página própria e ativa no Facebook, intitulada Mohamed Ben Abbes - président de la Fraternité Musulmane). Ben Abbes, portanto, um político estrategista e conciliador - com uma substancial retaguarda das petromonarquias árabes -, suavemente conduz a política francesa a uma posição de domínio no cenário mundial, ao negociar a adesão dos países muçulmanos, francófonos, à Comunidade Europeia (se nesta fantasia os africanos se tornam europeus, aqui, no mundo real, um país amazônico, a Venezuela, foi inscrito no Mercosul, uma aliança dos países do Sul). Ainda que representativo, este fato não é, entretanto, o ponto fulcral do romance, que, na verdade, se apóia sobre dois alicerces: o sentimento hedônico-depressivo do narrador, um professor universitário misantropo, e a ascensão, lenta, mas apreensivamente hegemônica, da França muçulmana. A despeito do que isto inspira de conflito, nem de longe é um livro iracundo, de confrontos, sejam físicos ou verbais. É um livro de convergências, onde cidadãos aquiescem. Não há raiva, nem violência. Um contexto plano, circundando um personagem apático e erudito. Descrente de si mesmo, despossuído de emoções, o professor valoriza as estudantes - e vez por outra as prostitutas -, os vinhos e uma gastronomia ecumênica, enquanto acompanha as gradativas mudanças na sociedade francesa impostas pelo novo regime. Alterações sutis que resultam em drásticas transformações, quase como o sapo cozinhado vivo na água fervente. Uma palhinha do texto de Houellebcq: "Eu me beneficiava de uma espécie de aura, quando na verdade eu agora aspirava apenas a ler um pouco, a me deitar às quatro da tarde com um maço de cigarros e uma garrafa de bebida forte, mas também devia reconhecer que nessa toada eu ia morrer, morrer depressa, infeliz e só, e será que eu tinha vontade de morrer depressa, infeliz e só? Em última análise, mais ou menos." Um especialista na obra de Huysmans, hermético autor francês do século XIX, o narrador vive entre templos e prostíbulos, por posições sexuais sugadas pelo redemoinho do tempo, como "sabonete imperial russo" e "viagem à terra amarela". Nem eu, nem ele, sabemos do que se trata, talvez seja somente um canguru perneta dos velhos tempos. Apolítico, desinteressado, o personagem se vê docemente engolido pela nova ordem. A obra traz na capa, encimando o nome do escritor, a chamada "o livro mais polêmico do ano". Não sei se foi para tanto. Mas é decerto um escândalo delicado. Livraço.

Editora Alfaguara, 251 páginas

Sidney Puterman

Some say he’s half man half fish, others say he’s more of a seventy/thirty split. Either way he’s a fishy bastard.

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