"Berlim, 1919-1933", por Lionel Richard e Henry Dougier

sexta-feira, janeiro 21, 2022 Sidney Puterman


O volume integra a série "Memória das cidades", organizada por um comitê internacional de historiadores no início da década de 90. A coleção se debruça sobre períodos-chave de cidades emblemáticas da história mundial. Entre elas estão a Londres da segunda metade do século XIX, a Lisboa ultramarina dos séculos XV e XVI, a Toledo dos séculos XII e XIII e a Berlim da República de Weimar - objeto deste livro.

A abordagem é caleidoscópica. Os estudiosos que assinam o livro trouxeram dezenas de autores - boa parte deles com textos originais da época - para compor o painel que exibe a urbe prussiana entre as duas guerras. A caminho de se tornar a maior capital da Europa, Berlim transformou-se em uma cidade esfuziante, libertina, embriagada, consequência da derrocada na Primeira Guerra, e que, a despeito da intensa produção artística e cultural liberada no esteio dos anos 20, sucumbiu a um destino trágico, fruto de crises sucessivas e um atavismo belicoso.

Esta Berlim perdida no tempo, mas até hoje lendária, é, antes de mais nada, traduzida em números. Fundada em 1237, castigada pelas guerras e pela peste, a cidade esperou quatrocentos anos para ser bem tratada. Quando Frederico Guilherme, duque da Prússia, assumiu o trono, em 1640, ele empreendeu o que hoje denominaríamos um "choque de gestão". Pavimentou as ruas, instalou iluminação pública, abriu praças e atraiu pintores. 

No século seguinte, o antigo vilarejo de 20 mil habitantes se tornou a mais pródiga das capitais da Europa, conquistando protagonismo na era industrial. O resultado é que, às portas do século XX, sua população alcançava 1 milhão de almas - das quais um quarto era eslava. A Berlim de então era economicamente pujante, limpa, rica, com uma ampla malha ferroviária e o metrô já em operação, ônibus que circulavam à noite, telefonia disseminada; não obstante, carecia de representatividade política e cultural. 

Para a nação alemã, a Berlim pré-guerra era a capital da Prússia, mas não sobrepujava metrópoles do porte de Hamburgo, Colônia, Leipzig e Munique, ainda que todas estas fossem menores. Somente a guerra foi capaz de alterar seu status. O país deixou de ser uma colcha de retalhos e centralizou a administração do Exército imperial. O Reichstag passou a concentrar o debate político. A derrota militar levou à queda do regime e a República de Weimar foi instalada. A partir daí, a Alemanha passou a ser dirigida de Berlim e todos os grandes serviços nacionais foram unificados e centralizados na cidade, dos correios à força armada de cem mil homens. O Estado era agora Berlim.

Em 1920, Berlim é a cidade mais vasta do mundo, com 87.000 hectares. Seus quatro milhões de habitantes só são superados por Londres e Nova York. São um milhão de operários, 500.000 empregados do comércio, distribuídos entre 17.000 firmas atacadistas e 56.000 varejistas. Seu trânsito tem 70.000 veículos. O aeroporto de Tempelhof, aberto em 1924, ocupa o posto de centro da navegação aérea europeia.

São números que impressionam. Mais ainda por sabermos que, por trás deles, há um Estado em convulsão. Diz-se da República de Weimar que ela é "uma república sem republicanos". Liderada por social-democratas associados à antiga elite monarquista, e contestada por socialistas e comunistas, o arranjo "nasce de uma volta à ordem fundada, na sua realidade, sobre uma aliança contra a natureza: a que se estabelece entre as camadas sociais influentes sob Guilherme II, um conjunto de forças anti-democráticas, e os dirigentes social-democratas", na análise de Richard, que vê na república um "paradoxo de um Estado republicano altamente influenciado por um espírito anti-republicano".

Tem-se aí todos os ingredientes que farão dessa Berlim um caldeirão único na história da civilização. Os meros quatorze anos que separam os limites do estudo - de 1919 a 1933 - estão sintetizados pela presença folclórica e deletéria do marechal Hindenburg. Pouco responsabilizado pela catástrofe alemã e europeia, ele está no cerne da cizânia que envenenou o país.

Em 1919, no Reichstag, o militar que propôs a rendição alemã mudou seu discurso público. Passou a afirmar, para consumo externo, que o exército imperial não foi vencido militarmente, e sim traído por "forças hostis" ao Imperador. A nova versão deu origem ao popular e amplamente repetido mito da "punhaladas nas costas" como razão da derrota. A falácia jogou água quente na fervura.

A ex-poderosa Alemanha, humilhada pelos vencedores da guerra, efervescia. Confrontos de rua pipocavam nas grandes cidades. Comunistas e nacionalistas se matavam nos bares e nas ruas. Em 1920 o partido nacional-socialista dos operários alemães (NSDAP) foi fundado em Munique. Após algumas reuniões com uma pequena plateia, um austríaco de bigode esquisito se filiou ao pequeno partido. O tal, que foi voluntário na grande guerra como mensageiro, viria em breve a assumir o controle do partido e a tentar um golpe de Estado, sempre brandindo a tal versão da punhalada.

Que era a cada vez mais aceita e repercutida. Hindenburg foi eleito presidente da Alemanha em 1925 e em 1933 ele nomearia o antigo mensageiro austríaco - agora um expressivo líder político - como chanceler alemão. Era 30 de janeiro de 1933. O novo responsável por conduzir a nação diretamente de Berlim, um orador inflamado que antes da guerra pintava gravuras medíocres para serem vendidas aos turistas nas ruas de Viena, se chamava Adolf Hitler. Em poucos meses, os exércitos paralelos montados pelo partido do chanceler - as SA, que viriam a ser substituídas, e engolidas, pelas SS, mas isso é outra história - iriam implantar o terror no país. Um regime de terror que, em poucos anos, iria se espraiar pelo continente e pelo mundo.

Tudo isso seria um futuro que não foi o tema deste livro - que trata, se muito, do ovo da serpente.

O simbolismo da data é o tema do último capítulo, concluindo assim a narrativa da turbulência política, social e cultural que fervilhou em Berlim por uma década e meia - o assunto-mor desta edição rara, jamais reeditada, cuja única edição em português, lançada em 1993, está disponível apenas nos sebos.

Lê-la é prazeroso e instrutivo. E, em certa medida, angustiante.

Jorge Zahar Editor, 211 páginas (1a edição) 1993 | Tradução Lucy Magalhães | Copyright 1991

Título original: "Berlin, 1919-1933: Gigantisme, crise sociale et avant-garde"

Sidney Puterman

Some say he’s half man half fish, others say he’s more of a seventy/thirty split. Either way he’s a fishy bastard.

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