"Tornando-se Hitler", por Thomas Weber

sexta-feira, janeiro 28, 2022 Sidney Puterman

 


A obra de Thomas Weber se concentra em exíguos (e até então incolores) anos da biografia daquele que viria a ser o todo poderoso ditador nazista. O führer. Em 1918, Adolf Hitler era um zé-ninguém, um pé-rapado, um zé-povinho. Um milico lambe-botas de baixa patente que irá evoluir para candidato a político. São cinco anos de um período sintomático que Weber irá escarafunchar.

"A história da metamorfose de Hitler é igualmente a história de como os demagogos são construídos", antecipa a contracapa. Acrescento: é também a biografia do surgimento do partido nacional-socialista, o NSDAP.

Em um trabalho pioneiro, acompanhamos o neto de Anne Schickelgruber, o filho de Alois Hidler, do momento da desmobilização do exército alemão à sua entrada no partido nacional-socialista. O hiato em que o apagado e subserviente Adolf se torna naquele que passou à História como Hitler.

São dois personagens diferentes, cuja construção o autor narra e circunstacia.

Houve um Hitler real e um Hitler elaborado. O real se esvaiu no tempo; o elaborado foi rascunhado nos comícios, aperfeiçoado em Mein Kampf e finalizado na narrativa do poder. O líder escondeu o velho Adolf porque não lhe convinha o passado babão e inexpressivo. O Adolf dos primeiros anos haveria de espelhar o alemão idealizado e nacionalista. Portanto, era preciso reescrevê-lo.

Assim, uma das principais teses abraçadas pelo livro é a de que a inspiração em que Adolf Hitler baseia suas memórias é post-facto. Ou seja, elas não foram forjadas no tempo em que ocorreram, e sim foram desenvolvidas posteriormente, uma verdade conveniente. Uma mera versão, ou, como se diz hoje, uma pós-verdade.

Mas quem era de fato este personagem?

O primeiro grande campo abordado por Weber diz respeito ao período da desmobilização militar. Em quais circunstâncias Adolf Hitler escolheu permanecer no Exército e porque não optou - ou foi forçado a - pela baixa militar.  Para entender melhor a questão, vale lembrar a grande barafunda política vivida na Baviera.

Pouco depois do fim da Primeira Grande Guerra, foi instaurada a República Soviética da Baviera. Respondendo diretamente a Moscou, transformou os antigos prisioneiros de guerra russos, pasme, em agentes do contingente de defesa da nova república alemã. Nesta situação paradoxal, Hitler se manteve empregado como funcionário regular do Exército bávaro, ou seja, Adolf Hitler deliberadamente se tornou um soldado comunista de um estado chefiado por um judeu, Kurt Eisner.

Você não vai encontrar isso em Mein Kampf. Embora discorra páginas e páginas sobre seu período de formação política, inventando um chamamento quase teatral para o combate ao comunismo, Hitler omite sua real participação como servidor da república soviética bávara.

Mais do que optar por não sair das forças armadas, Hitler por duas vezes se candidatou - e foi eleito - como representante dos soldados para questões internas, reiterando sua conformidade com o regime. E sua atuação nas ruas era funcionalmente clara: defender o governo socialista das agressões e dos atentados provocados pela direita armada, as freikorps.

Atente que Hitler não integrava as freikorps, que no futuro seriam citadas como berço do nazismo. Ele as combatia. Ainda que o fizesse profissionalmente, e não por ideologia, essa sua passagem foi convenientemente omitida da sua biografia.

"A Munique de 1919 era uma cidade em que as pessoas ainda tentavam encontrar um novo equilíbrio político em um mundo pós-guerra e pós-revolucionário", esclarece Weber.

Sua posição de monitor de quartel chamou a atenção dos oficiais, que inscreveram Hitler nos cursos de formação política ministrados pelo exército, criados no intuito de minimizar a influência comunista, largamente dominante então.

Recorrente nota de pé de página quando se fala da formação de Hitler, os tais cursos de oratória promovidos pelo Exército são dissecados por Weber. Não mais uma referência difusa. O autor apresenta cada um dos professores, suas tendências políticas pessoais, sua especialização, o teor dos cursos e até mesmo o destino de cada um dos teóricos que alimentaram a cultura política de Hitler para o advento do III Reich. 

Dois dos seus professores vieram (indiretamente? o autor não explica) a ser vítimas do aluno e morreram em campos de concentração: Fritz Gerlich e Karl Mayr, o principal organizador do curso.

Assinala Weber que "Hitler escolheu e destacou grandes pedaços do conjunto de ideias expressas pelos oradores, quando sentia que isso ajudava a encontrar suas próprias respostas para a derrota da Alemanha" e, não só, como também "para configurar um Estado não receptivo a choques externos e internos"

Gottfried Feder foi provavelmente, entre os instrutores do curso, quem mais o influenciou, com suas teses sobre o "capitalismo judeu". É curioso que o antissemitismo de Hitler não tenha nascido dentro da sociedade antissemita de Munique, mas sim como fruto das observações de um professor. Havia um forte antissemitismo antibolchevique na Baviera, mas não foi este que contaminou o futuro exterminador da comunidade judaica europeia.

Uma carta, escrita por Hitler a um dos alunos do curso, Adolf Gemlich, a pedido de Mayr, é mais expressiva quanto à característica dos sentimentos antijudaicos de Hitler do que toda a cantilena exposta em Mein Kampf. O que Hitler mais argumentou em seu texto é que os alemães eram antissemitas pelas razões erradas. "Tal antissemitismo", disse ele, "era o resultado de encontros pessoais desfavoráveis que tinham com os judeus". 

Ele prossegue afirmando que "aquele tipo de antissemitismo ignorava algo muito mais significativo, ou seja, o pernicioso efeito que os judeus como um todo têm sobre nossa nação". Argumentava ele que os judeus são uma raça, não uma religião, e uma raça não-alemã, pois "os judeus adotavam o idioma dos países em que escolhiam para residir, mas de seus anfitriões nunca adotavam nada além disso".

"O judeu é um sanguessuga de suas nações hospedeiras", enfatizou. "Fazem isso através do poder do dinheiro, cujos juros fazem com que se multiplique sem esforço e infinitamente nas mãos dele". Hitler indica o remédio que deveria ser ministrado: "Em vez de realizar pogroms inúteis contra os judeus, os governos deveriam limitar os direitos dos judeus e, em última instância, removê-los por completo das nações que os abrigavam".

Veja que Weber foi buscar talvez o primeiro documento antissemita de Hitler. Que, aliás, zelou para não deixar suas digitais no tema, depois de ter chegado ao poder. Mas o autor do livro fez bem mais que isso. Conseguiu reconstituir a primeira reunião em que Hitler compareceu no partido nazista, e o que ele disse na tal reunião.

A bem da verdade, se outra importante influência de Hitler veio a ser o fundador do partido nazista, Anton Drexler, vale destacar que o DAP (Deustche Arbeiterpartei, ou Partido dos Trabalhadores Alemães) não era, de fato, um partido. Não tinha atividade partidária e não se constituía como um. 

Um pormenor de valor é que Weber joga luz sobre a fundação do partido. Sua origem tem a ver com um personagem de nome esdrúxulo, Rudolf von Sebottendorff, cidadão otomano filho de um motorista de trem da Baixa Silésia. Ele fundaria a Sociedade Thule, entidade volkish e antissemita, que adotou por símbolo a suástica.

A sociedade era adepta do ocultismo e cria em místicas raízes nórdicas dos germanos, que teriam vindo da Islândia ou da Atlântida. Era um grupo voltado para as classes média e alta, e do qual já participavam diversos nomes que viriam a se tornar expoentes do partido nazista, como Anton Drexler, Rudolf Hess, Dietrich Eckart, Hans Frank e Alfred Rosenberg.

O DAP foi um braço da Sociedade Thule criado especificamente para atingir as classes trabalhadoras. Karl Harrer, um dos diretores, foi contrário à entrada de Hitler, pois o achava um arruaceiro, que falava rápido demais, inflamado demais, agitado demais. Mas, apesar da má vontade de Harrer, Hitler foi convidado por Drexler para fazer alguns testes.

Sebottendorff viria a dizer, em 1933, que Hitler "não fora mais que uma ferramenta talentosa na Sociedade Thule". "Reconhecemos", ele frisa, "o mérito, a força e a grandeza de Adolf Hitler", a esta altura o chanceler alemão. "Mas", continua, "o trabalho da Sociedade Thule foi quem forjou as armas que Hitler pôde usar".

Afirmação questionável. Harrer foi escanteado e a Sociedade Thule virou apenas um traço na gênese do NSDAP. O primeiro grande comício do partido, para duas mil pessoas, foi - apesar de totalmente diferente de como foi descrito por Hitler em Mein kampf - determinante para o sucesso do grupo de idealistas liderado por Anton Drexler e, a partir daí, por Adolf Hitler.

Se no texto que escreveria anos depois Hitler teria afirmado que a plateia lotou o salão do Hofbrahuhaus no Platzl em Munique por interesse nas ideias do partido, na verdade o partido sequer foi citado nos cartazes de divulgação do evento, que chamava o povo para assistir uma palestra de Johannes Dingfelder, um popular ativista volkish, sem nenhuma ligação com o DAP.

Ao fim da palestra do orador principal, Adolf Hitler expôs os 25 pontos do partido, que iniciavam com platitudes como meritocracia, direitos iguais para todos os cidadãos, auxílio para a velhice e proibição do trabalho infantil. Só mais à frente a verdadeira plataforma era exposta: demanda pelo fim da escravidão dos juros; abolição dos rendimentos não ganhos pelo trabalho; perseguição e confisco dos bens dos financistas de guerra; proibição de especulação imobiliária; pena de morte por usura e especulação.

Ao contrário da ovação descrita em Mein kampf, houve uma forte oposição por parte dos social-democratas e comunistas presentes, que saíram do evento gritando palavras de ordem. Um comunista ameaçou matar Hitler (que meses antes já havia sido espancado por soldados que não gostaram do seu estilo, sendo salvo por um triz).

Curioso que os judeus mal foram mencionados nesta primeira divulgação do programa do partido, à exceção de uma citação contrária, dizendo que nenhum judeu "poderia receber a cidadania alemã" (ponto 4) e uma menção periférica, pedindo que fosse combatido "o espírito judaico-materialista dentro e fora de nós" (ponto 24). A falta de foco nos judeus é uma pista da pouca influência de Hitler na elaboração do programa.

Mas o que se deu de fato foi que Hitler saiu deste primeiro grande evento como uma estrela em ascensão. E foi logo após que seus vínculos com a Sociedade Thule foram totalmente cortados. Em 24 de fevereiro o DAP mudou seu nome para Nationalsozialistische Deutsche Arbeiterpartei (Partido Nacional-Socialista dos Trabalhadores Alemães, ou NSDAP).

Abreviadamente, os nazis.

Já externando aquela que seria sua principal obsessão, ainda em 1919 Hitler faria seu primeiro grande discurso antissemita. Era 13 de agosto, uma quarta-feira à noite, e havia mais de duas mil pessoas na Hofbräuhaus. A grande questão era: "Por que somos antissemitas?" Do início ao fim, Hitler fez questão de afirmar que o NSDAP não era um partido antissemita qualquer - e sim que estaria à frente do movimento antissemita na Alemanha.

Sua peroração inflamada combinava, no dizer de Weber, "o antissemitismo anticapitalista com a judeofobia racial". Segundo o autor, "seu tema central era a advertência que o capitalismo judaico internacional estava no processo de destruir a Alemanha e o resto do mundo". Hitler disse também que "os judeus eram incapazes de formar um Estado próprio". Definiu a Grã Bretanha como "aquela outra judiaria".

Veja que estávamos ainda a mais de vinte anos da Solução Final que Hitler viria a implementar quando no poder. Mas nesse seu discurso de 1919 ele já bradava que "os judeus estavam enfraquecendo a Alemanha na medida em que provocavam um 'rebaixamento do nível racial". Já os comunistas eram "judeus oportunistas nas mãos de uma plutocracia judaica internacional composta por investidores e altos financistas".

Hitler se valia muito da terminologia médica, investindo em uma forma biologizada do antissemitismo: "Não pense que é possível combater uma doença sem matar a causa, sem exterminar o bacilo. E não pense que é possível combater a tuberculose racial sem cuidar para que a nação esteja livre da causa de sua tuberculose racial". Desde então, já pregava que não haveriam meias-medidas: "O efeito dos judeus não passará e o envenenamento da nação não terminará até que a causa, o judeu, seja removida de nosso meio".

Se alguém aí ainda cogitava defender um certo grau de ignorância de Hitler no que tange ao Holocausto pode exterminar suas dúvidas por aqui mesmo.

Weber vai além do discurso de Hitler para buscar as raízes do seu antissemitismo e como ele era percebido pela sua contemporaneidade - e também questiona o quanto deste antissemitismo era metafórico ou literal. Já havia neste Hitler de 1919/20 a convicção pelo genocídio? O exercício hipotético é inevitável, mas o pesquisador sabe que há um limite para as suas possibilidades de exploração.

"Ninguém pode fazer uma investigação dentro da cabeça de Hitler", admite. "Nenhum grau de engenho pode superar completamente este obstáculo", contemporiza, lembrando que "mesmo que viessem à tona novos documentos, produzidos pelo próprio Hitler ou com suas palavras registradas" se saberia a verdade. A razão era uma só: Adolf Hitler era um mentiroso contumaz, "que dizia o que acreditava que as pessoas queriam ouvir".

Nas páginas finais o autor irá compartilhar com os leitores suas conclusões, mas, seja qual for a convicção íntima, é incontroverso que Hitler investiu na elaboração de um antissemitismo mais radical para se tornar um produto diferenciado no mercado da extrema-direita alemã.

Nada assim de tão diferente na cultura europeia - atribuir aos judeus a culpa pelos males da sociedade é uma prática milenar, considera Weber, que chama o processo de uma "ferramenta de 2.500 anos". 

Um trecho que - tenho que reconhecer - me surpreendeu foi o capítulo sobre o "gênio". Advoga Weber que a nação alemã sempre teve um pendor pelo gênio auto-formado, que eles chamariam de Bildung. Se nos séculos XVIII e XIX esta ânsia se dirigia mais ao contexto da música e da literatura, no conturbado início do século XX encontrou campo fértil na política.

Os alemães queriam um gênio que soubesse por instinto as decisões a tomar. No entender do autor, Hitler teve faro para esta carência latente e soube ocupar este espaço. O conceito é provocante e convida a um olhar mais atento. Ainda que aqui no Brasil, numa versão (sempre) mais escrachada, clamemos sempre por um salvador da pátria, há na argumentação de Weber algumas nuances bastante significativas.

Um trecho interessante reproduz as impressões de um certo Reck, filho de um político conservador prussiano. Estavam ambos - Hitler e Reck - em uma recepção do barão Frankenstein, que os recebeu para um jantar, em meio a outros diversos convidados da elite de Munique. Hitler, à esta época, visava ampliar o círculo de relacionamento do NSDAP, no afã de angariar recursos que sustentassem o jornal do partido.

Reck conta que entrou no salão repleto de tapeçarias e encontrou Hitler "usando polainas, um chapéu de abas largas e carregando um chicote de montaria - havia um collie também". O rapaz escreveu em seu diário que o austríaco lembrava "um caubói" e que "se sentou ali, o estereótipo de um serviçal", ressalta, "não exatamente ousando sentar-se totalmente em sua cadeira, mas empoleirado na metade, mais ou menos, de seus quadris estreitos".

Não sobra nenhuma palavra mais amena para o futuro führer, que não se importava com a ironia fina que o anfitrião lhe dirigia, mas "reagia avidamente às palavras, como um cão sobre pedaços de carne crua", enquanto açoitava as próprias botas com seu chicote. 

Que cena. Parece que piorou quando Hitler abriu a boca. Ele "se lançou em um discurso. Falou e falou, sem parar. Ele pregava. Atirou-se sobre nós como um capelão de divisão do Exército. Não os contradissemos em nada, nem nos aventuramos a divergir de forma alguma, mas ele começou a gritar para nós. Os servos achavam que estávamos sendo atacados e correram para nos defender".

"Quando ele foi embora", finaliza, "nós nos sentamos em silêncio, confusos e em nada divertidos. Havia um sentimento de tristeza, como quando você descobre que está partilhando uma cabine de trem com um psicótico. Ficamos sentados por um longo tempo e ninguém falou. Finalmente, Frankenstein ficou de pé, abriu uma das enormes janelas e deixou entrar na sala o ar da primavera".

A passagem em si tem importância histórica relativa; mas tem um grande poder imagético. Nos possibilita fazer melhor ideia do personagem.

Um personagem que teve uma evolução muito mais complexa do que somos tentados a conceder, buscando respostas fáceis para problemas intrincados. A lenta construção da persona Adolf Hitler e sua progressiva conquista de espaço em um contexto político belicoso e competitivo é pacientemente destrinchada por Weber.

A ameaça que Hitler representava já no início dos anos 20 fica comprovada pela sua tentativa de expulsão do país, defendida pelo ministro do Interior, Franz Xaver Schweyer, que queria expatriar o austríaco. Curiosamente, um adversário político, o socialista Erhard Auer, defendeu-o e garantiu sua permanência em solo alemão. Deve ter se arrependido.

A ameaça era também percebida no sentido oposto: no início Hitler proibia que o fotografassem, por medo de sofrer um ataque. Weber traz inclusive a reprodução de uma página jocosa da revista satírica alemã Simplicissimus, que especulava sobre qual seria a aparência de Hitler.

Porém, à medida que seus planos de se tornar o líder de uma Alemanha nacionalista cresciam, Adolf percebeu que precisava se tornar mais conhecido. Por isso, em 1923 inverteu sua estratégia: ao contrário de proibir que o fotografassem, contratou um fotógrafo profissional e fez circular milhares de cartões postais com a sua cara estampada.

Estava em campanha.

Por esta época também surgiu uma nova influência, que traria conteúdo novo à sua peroração antissemita e sua revolta com o Tratado de Versalhes. O ex-militar Hans Tröbst publicou um extenso artigo louvando a insurgência turca contra o Tratado de Sévres e o oportunismo do genocídio armênio. Hitler a partir daí trouxe ambos os exemplos para a sua retórica costumeira.

Foram ideias que jamais o abandonaram, e repetidas no célebre discurso feito aos 50 generais alemães em 22 de agosto de 1939, às vésperas da blitzkrieg alemã contra a Polônia. Neste dia Hitler pregou a ocupação do território polonês e o assassinato da população. Como ele argumentou, "hoje em dia ninguém fala mais no genocídio armênio".

O referido genocídio foi o assassinato por parte do governo turco de meio milhão de cidadãos de origem armênia - uma atrocidade anterior ao Holocausto e cuja admissão, mais de cem anos depois, é cobrada pela comunidade armênia; mas que a Turquia se mantém obstinada em não reconhecer.

Outro fato bem pouco sabido - ou nada sabido - é que, antes de Mein kampf, Hitler publicou uma outra autobiografia. Com uma tiragem de 70.000 exemplares, a edição fazia parte do plano de Hitler em tornar-se nacionalmente popular e assim ampliar seu horizonte político.

A publicação, intitulada Adolf Hitler: seine Leben, seine Reden (Adolf Hitler: sua vida e seus discursos), trazia uma curta biografia e a transcrição de seus discursos, expurgados os ataques aos Estados Unidos. O texto era falsamente atribuído ao escritor Victor von Koerber, visando camuflar a autoria dos elogios. No texto, Hitler não só se apresentava como herói de guerra, mas, no instante em que contava sua súbita politização, se comparava a Jesus:

"Este homem, destinado à noite eterna, que durante essa hora suporta a crucificação no impiedoso Calvário, que sofreu em corpo e alma: um dos mais castigados em meio a essa multidão de heróis destruídos: os olhos desse homem serão abertos!"

Pois é.

Koerber, ao aceitar passar-se pelo autor do livro, comungava com o ideário nazista e antissemita. Mas, poucos anos depois, o biógrafo passou a ver com maus olhos a performance de Hitler, terminando por tornar-se não só seu crítico, como inclusive colaborador dos britânicos durante o governo do ex-biografado, tendo até mesmo escondido e ajudado um judeu a fugir dos nazistas. Preso e enviado a um campo de concentração após o atentado de Claus von Staffenberg, em julho de 1944, Victor acabou tendo uma carreira brilhante no pós-guerra.

Se a biografia forjada não conseguiu dar a Hitler a reputação nacional que pretendia, os desdobramentos do putsch de Ludendorff - depois renomeado putsch de Hitler - fizeram isso por ele. Weber, a propósito, traz uma das melhores narrativas da fuga de Hitler após o golpe fracassado.

Primeiramente, vale considerar a inepta forçação de barra que foi o tal putsch. Em 8 de novembro de 1923, o comissário-geral do estado da Baviera, Gustav von Kahr, um dos líderes da direita alemã, falava para a elite política bávara em um evento lotado na cervejaria Bürgerbräukeller. Hitler resolveu invadir o local com sua gangue. Deu um tiro para o alto e proclamou que "a revolução nacional havia começado".

Surpresos, a princípio Kahr e os demais figurões da mesa apoiaram o golpe de mão. Mas, à medida que o tempo passava, de forma dissimulada instruíram os assessores para que contra-atacassem. Logo a força policial de Munique invadiu o evento e desbaratou a tosca tentativa de golpe.

Erro crasso de julgamento por parte de Hitler, que supusera que teria apoio entre os maiorais da Baviera para segui-lo em um movimento revolucionário. O austríaco se superestimara: os grandes o tinham apenas como um agitador talentoso de um pequeno partido inexpressivo. Um instrumento a ser utilizado, não um líder a ser seguido. Sua tentativa de golpe, precipitada, foi abortada.

Hitler, porém, não se deu por vencido. Na manhã seguinte, 9 de novembro, ele, Ludendorff e uma malta de nacionalistas resolveram marchar pelo centro de Munique até o antigo Ministério da Guerra. A ideia era cooptar a liderança do Reichswehr da Baviera para participar do golpe. Se a ideia era boa, ou não, nunca se saberá: a polícia local, novamente ela, surgiu no meio do caminho, determinada a interromper a marcha revolucionária.

E o fez à moda alemã, ou seja, a tiros. Em questão de minutos, dezenove mortos (quinze golpistas e quatro policiais). Hitler não foi atingido, mas o sujeito a seu lado, Erwin von Scheubner-Richter, sim. Morreu no local. O guarda-costas de Hitler, Ulrich Graf, entrou na frente do patrão e recebeu as balas que eram para o chefe. Milagrosamente não morreu, mas os projéteis que entraram na sua cabeça nunca mais saíram.

O saldo da segunda tentativa de golpe em 24 horas foi o barata-voa dos seus líderes. Hitler se picou do local, sabendo que o tempo fechara para ele. Seu putsch fora um fiasco. Visto de hoje, é tratado como um monumental golpe de estado - mas, à época, não passou de uma arruaça. A cidade mal percebeu o que se passara e a manhã seguia normalmente a dois quarteirões do núcleo do evento.

Hitler fugiu e foi alcançado apenas 48 horas depois, tentando chegar à Áustria. Escondido em uma casa de simpatizantes, e sabedor que a polícia conseguira sua pista, pegou o revólver, encostou na cabeça e declarou que iria se matar. A mulher do dono da casa, Helene Hanfstaengl, tirou a arma da mão de Adolf, que, pálido, não opôs resistência.

(Não era a primeira vez que ameaçaria se suicidar; mas só logrou êxito vinte e dois anos depois, com a Alemanha invadida pelos russos, e com sessenta milhões de europeus mortos - resultado da sua liderança genocida.)

Chegamos aí ao turning point da carreira de Adolf Hitler. Quando tudo parecia perdido, quando o orador exaltado e já alvo de deboche entre os próprios alemães - diziam que ele era só palavras, o que pode ter precipitado sua ação -, ele encontrou o caminho para a projeção nacional que tanto buscava. E a maneira como ela veio foi até certo ponto irônica.

No julgamento do putsch, os comparsas buscaram tirar o corpo fora e jogar a responsabilidade em Hitler, isentando o icônico Ludendorff de ser seu líder. Hitler, inteligentemente, não só vestiu a carapuça como fez do tribunal do júri um palco para o seu comício. Causou furor e repercussão. Mesmo condenado a cinco anos de prisão, o zé-ninguém austríaco era enfim alguém na Alemanha. 

Nas palavras de Weber, "a história de golpe de Hitler é uma história de imprudência, megalomania e fracasso espetacular. Sua estratégia para impulsionar seu perfil nacional foi astuta; logo, porém, as coisas saíram dos trilhos. Sua tentativa de liderar uma revolução bávara que seria levada para Berlim fracassou do início ao fim. Ele pensou em se matar, mas não chegou às vias de fato. No entanto, na derrota, Hitler conseguiu realizar o que falhara em fazer quando acreditava estar em ascensão".

Lembra do que eu falei lá em cima, no início do post? O tal negócio de reescrever a própria história? Pois foi a partir daí, preso, julgado e condenado, que Hitler desenvolveu um passado diferente para si mesmo, um retrospecto pessoal compatível com o figurino de Messias com que ele pretendia se apresentar.

Caracterizou-se como o protótipo do soldado desconhecido, aquele que na linha de frente arriscava a vida pela pátria, enquanto nos salões os políticos tramavam a entrega do país no acordo de Versalhes. Logicamente não revela que, longe de ser um recruta intrépido de arma em punho, era chamado de etappenschwein ("um porco da retaguarda") pelos seus companheiros de farda.

Neste novo figurino que talhou para si, sua percepção da Alemanha não havia sido um produto dos seus principais orientadores nos seus cursos militares de política alemã, e sim uma visão celestial da qual tinha sido acometido em Pasewalk, quando, internado, tinha tido uma epifania e recebido as orientações para a construção da grande Alemanha.

Esta é a versão de si mesmo que apresenta em Mein kampf, o livro cujo primeiro tomo foi escrito na prisão de Landsberg, o retiro compulsório que lhe proporcionou a vantajosa imagem de mártir e que Hitler soube capitalizar com maestria. Havia um novo produto no mercado.

"Com a conclusão de Mein kampf estava completa a metamorfose de Hitler - de um ninguém com ideias políticas ainda indeterminadas e flutuantes a um líder nacional-socialista", afirma o escritor.

A despeito da personalidade forjada com que descreve a si mesmo em seu livro, Hitler se enquadrou em algumas linhas de pensamento e soube entregar aos alemães aquilo pelo qual muitos ansiavam. Com isto em mente, Weber não economiza nos méritos com que discerne a trajetória do austríaco.

"A partir do momento de sua politização e radicalização no verão de 1919, Hitler realmente se esforçou por entender o mundo e chegar a um plano abrangente de como a Alemanha e o mundo podiam ser curados de seus males", acredita. Vai além: "Seu uso repetido do termo Weltanschauung - denotando uma concepção filosófica abrangente daquilo que mantém a estrutura do mundo - é um sinal claro de que ele buscava elaborar um sistema político amplo, coeso e sistemático".

Mas a percepção quase elogiosa não significa que Weber atenue o impacto maligno que significou sua ascensão. Acima de tudo, o biógrafo acredita que a Munique do período ofereceu o ambiente perfeito para que Hitler se desenvolvesse; e que a Alemanha estava ávida por alguém como ele.

Nas palavras do estudioso, "a tragédia da Alemanha e do mundo é que Hitler foi parar em Munique no rastro da Primeira Guerra Mundial e da revolução de 1918/1919. Se não fosse pela situação  política da Baviera pós-revolucionária, bem como pela resolução política semiautoritária de março de 1920", imagina, "não teria havido qualquer terreno onde Hitler e o NSDAP pudessem florescer".

O autor conclui com a observação de um paradoxo, destacando as diferenças da Baviera onde o nazismo germinou e o país que o abraçou. E também como sua obstinação com seus dois principais objetivos políticos - o extermínio dos judeus e a conquista de espaço vital - moldaram seu governo, que levaria a Alemanha a iniciar uma outra guerra mundial.

E não deixa dúvida também quanto à polêmica histórica a respeito da postura de Hitler no que diz respeito aos judeus - se desde o início ele já trazia a ideia do genocídio em mente. Weber resgata uma entrevista de Hitler a um jornalista catalão, ainda antes do próprio putsch de 1923. Diante da afirmação categórica de Hitler de que os judeus precisavam ser extirpados da sociedade e da economia alemã, o jornalista ousou:

"O que você pretende fazer? Matar todo mundo da noite para o dia?"

A resposta traz o lamento do jovem Hitler diante da impossibilidade prática de fazer isso, pois acreditava que "o mundo nos atacaria de todos os lados". Mas não deixa margem para nenhum questionamento quanto aos seus verdadeiros desejos:

"Isso seria, evidentemente, a melhor solução, e, se alguém pudesse realizá-la, a Alemanha estaria salva." 

Bingo. Ainda que se trate de um cenário que viria a se materializar apenas uma década e meia depois, não se pode falar sobre a formação política do fundador e gestor do III Reich sem atrelá-lo às ignomínias que ele viria a praticar. A isenção na análise não pode implicar em autismo histórico.

Assim, convém salientar que Thomas Weber, apesar da generosidade com que disserta sobre a persona histórica Adolf Hitler, não ficou em cima do muro no que tange à malignidade com que o líder alemão conduziu suas ações.

"Hitler embarcou em uma guerra que buscava usurpar territórios e a simultânea remoção dos judeus, em um contexto no qual sua solução preferida, sem dúvida, sempre foi genocida."

Apesar do início amarrado, Tornando-se Hitler é obra de um estofo abissal. E que aprofunda e altera a compreensão do monstruoso fenômeno Adolf Hitler. 

Editora Record, 474 páginas (1a edição) 2019 | Tradução Heloísa Cardoso Mourão | Copyright 2017

Título original: "Becoming Hitler"




Sidney Puterman

Some say he’s half man half fish, others say he’s more of a seventy/thirty split. Either way he’s a fishy bastard.

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