"Tempo para viver, tempo para morrer", por Erich Maria Remarque

quinta-feira, dezembro 07, 2023 Sidney Puterman


Escrita como um roteiro para um film noir, o segundo livro de Remarque é uma parábola sobre a inevitabilidade da morte em um planeta em guerra. Diferentemente do seu primeiro livro - talvez o maior best-seller da literatura alemã -, genuinamente autoral, este é um romance pacifista, narrado com as tintas fortes de quem esteve no front na guerra anterior.

Aliás, "Nada de novo no front", seu primeiro texto, fez tanto sucesso que seu título se tornou expressão corrente (a obra era a narrativa de um jovem soldado alemão, que, ao longo da Primeira Guerra Mundial, vê todos os seus companheiros morrerem em combate, um a um; a falta de "novidades" era a morte corriqueira).

Falei desse livro aqui, no ano passado. Dentro da cronologia que me propus para uma sequência de posts sobre a WWII, ele, que falava da WWI, fazia parte da abertura. Já este faz parte do fechamento.

Com a enorme repercussão do seu livro (não do meu post, quem me dera), que contava das agruras da Wehrmatch no teatro de operações, Remarque foi execrado depois da guerra. Para os nazistas - defensores da balela de que a Alemanha não fora derrotada no campo de batalha -, o texto era tudo o que não queriam ver divulgado: um soldado alemão denunciando as más condições da linha de frente, a falta de armamento, a fome, as tropas exauridas, as falhas no apoio logístico.

Para evitar a disseminação de um relato que não mitificava a natureza crua e nada heroica da guerra, os nazistas queimaram todas as edições. A simples posse do texto se tornou proibida. 

O autor foi caluniado, vetado e banido. Sua irmã foi presa e assassinada pelo regime. Com requintes de crueldade: ela, que antes de Hitler assumir o poder teria dito preferir perder a cabeça do que apoiar o austríaco, recebeu o troco literal. Foi decapitada pela SS.

Mas, seja como for, a Alemanha, depois da de 1914-18, perdeu mais esta guerra, a de 1939-45. Erich, agora na França, se tornou uma celebridade mundial. Era não só um alemão que havia sido inimigo do regime (agora definitivamente derrotado), como se tornara também um ícone da paz. 

Pois com esse "Tempo para viver...", escrito quase dez anos após o fim da Segunda Guerra, um quarto de século mais maduro do que quando escreveu seu primeiro livro, é nítido que o ex-soldado sofisticou seu texto. Sua dinâmica, antes reflexiva, agora é cinematográfica.

Buscando já de cara lançar o leitor no inferno da guerra, ele abre o primeiro capítulo com seu protagonista, Ernst Graeber, na linha de frente alemã, em solo russo. Este já era um momento em que a queda se aproximava. O exército alemão recuava.

Após alguns tiroteios e execuções sumárias de judeus, camponeses russos e partisans, Graeber obteve uma licença e foi à Alemanha por duas semanas. Foi para sua cidade natal, Essen, à procura dos pais, mas metade da cidade estava reduzida a escombros. Seu bairro, Werden, estava semi-destruído. Encontrou uma antiga colega de colégio, Elisabeth, cujo pai havia sido preso pela Gestapo. A relação do casal durante seu período na Alemanha irá tomar dois terços do livro.

O romance dos dois freia demasiadamente a ação. A narrativa se torna arrastada.

E não só. Uma das deficiências do texto é a constante impressão de estarmos lendo uma denúncia panfletária sobre os erros e atrocidades do governo nazista. Por mais que o contexto seja convincente, é nítida a intenção do autor em pontuar, através dos personagens e situações do enredo, o caos administrativo que grassava em meio à obsessão dos alemães pela ordem (sem contar a cegueira dos idólatras de Hitler e a quantidade de criminosos de farda).

Por sua inequívoca experiência no teatro de guerra, o livro encorpa quando o protagonista retorna para o front. Vou dar uma palhinha. A violência ostensiva, à guisa de recurso estilístico, provavelmente causava mais impacto do que causa hoje.

"Atrás de um tanque atingido, encontrou Sauer e dois recrutas. O nariz de Sauer sangrava. Uma granada tinha explodido muito próximo dele. Um dos recrutas estava com o ventre aberto. Os intestinos estavam expostos. Chovia para dentro dele. Não havia nada para medicá-lo. Também, seria inútil. Quanto mais rápido morresse, melhor. O segundo recruta tinha a perna fraturada. Caíra dentro de uma cratera. Não dava para entender como ele poderia ter fraturado a perna na lama macia. Dentro do tanque incendiado, que tinha se partido ao meio, viam-se os esqueletos negros de seus ocupantes. Um pendia para fora. Seu rosto só estava meio carbonizado; a outra metade estava inchada, vermelha e violeta, com a pele estourada. Os dentes eram muito brancos, como cal."

O fim do livro, ainda que contundente, era previsível. Mas difícil criticá-lo por essa previsibilidade: escrito há quase setenta anos, o que poderia ser original, à época, hoje é banal. Não obstante, a obra pacifista de Erich Maria Remarque cumpre seu papel. Nos faz refletir. E lamentar.

Editora Globo, 356 páginas (1a edição) 1990 | Tradução Marion Luiza Pfeffer | Copyright 1954

Título original: "Zeit zu leben und zeit zu sterben"

Obs.: Pena, mas a edição não está mais à venda. De toda maneira, hoje em dia o que não falta é sebo online. Recomendo o www.estantevirtual.com.br. Sou freguês.

Sidney Puterman

Some say he’s half man half fish, others say he’s more of a seventy/thirty split. Either way he’s a fishy bastard.

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