"Era um garoto", por Tarcisio Badaró

quinta-feira, novembro 30, 2023 Sidney Puterman


"O soldado brasileiro de Hitler", nos diz o subtítulo. Epa lá. Discordo. O moleque não deu um tiro sequer. Mal saiu do treinamento e foi logo aprisionado. Na verdade, ele foi muito mais "o prisioneiro brasileiro de Stalin" do que um "soldado" de quem quer que seja. Prisioneiro é o que ele foi.

E olhe que ser um prisioneiro na União Soviética não é uma narrativa comum por estas bandas. Lemos pouco sobre o cativeiro russo. Já o mercado editorial alemão tem em catálogo centenas de memórias de soldados do Reich que penaram nos campos soviéticos de prisioneiros.

Este prisma por aqui é raro. Ponto pra Badaró.

Apesar do título de um ser idêntico ao subtítulo do outro, não há termo de comparação entre este e "Os soldados brasileiros de Hitler", de Dennison de Oliveira (que comentei aqui há duas semanas), um esforçado cata-cata de histórias desiguais, com chicos alemães e depoentes senis.

Já o texto de Badaró faz muito com pouco. Partindo de um minúsculo diário estropiado, já velho de guerra, ele refaz os passos de um adolescente curitibano que, morando em Berlim, foi na padaria na hora errada e acabou subitamente "convocado" para o serviço militar.

O garoto se chamava Horst Brenke e era filho de Richard e Margarete Brenke, um jovem casal alemão cujos familiares, enfrentando o caos econômico na Alemanha dos anos 20, resolveram tentar a sorte no Brasil, comprando um grande terreno no Paraná para reiniciarem a vida.

Pagaram pela terra à vista, em Berlim; mas chegaram aqui não havia nada. Conto do vigário alemão.

O jeito era trabalhar para sobreviver. Depois de um período improdutivo em Curitiba, onde nasceu Horst, em 1926, Richard conseguiu emprego em Belo Horizonte, como mecânico na casa Arthur Haas, um conjunto de posto e oficina para carros de um comerciante judeu. Em 1934 veio ao mundo a irmãzinha, Maria do Carmo Brenke.

As coisas no Brasil, porém, não estavam nada fáceis. E enquanto isso, paradoxalmente, a Alemanha ia de vento em popa. O entusiasmado partido nazista assumira o poder, os empregos grassavam, o dinheiro era farto e os Brenke, ora, eram alemães. Voltaram à pátria.

Não se sabia à época, mas os planos de Adolf Hitler para quitar as faturas se baseavam na espoliação futura dos países vizinhos. Assim, a partir de 1938 os países ao redor da Alemanha foram sumariamente anexados ou invadidos. Os resultados iniciais se mostraram promissores. Até a presumidamente potente França (e sua inexpugnável Linha Maginot) capitulou em semanas. 

A parada começou a dar ruim quando os boches cravaram os dentes no lombo do urso soviético. O que era para ser uma conquista rápida e lucrativa se transformou num atoleiro. Os alemães ficaram dois anos saqueando e matando na União Soviética, ganhando aqui, perdendo acolá. Mas uma hora o barco começou a fazer água de vez. No terceiro ano os nazis tiveram que fugir.

Em 1944 os ingleses e norte-americanos desembarcaram na Europa. A partir daí, foi tudo uma questão de tempo. Com Stalin de um lado e Churchill de outro, com Mussolini fazendo lambança, Hitler sentiu a pressão e tentou uma última estratégia. Sua ideia básica era "morramos todos". 

Com os próprios exércitos aniquilados, cada vez mais os velhos e os jovens integravam as unidades de combate. Numa dessas companhias de calouros estava Horst Brenke, o "convocado" na fila da padaria. Zanzou com seu pelotão por florestas congeladas, sem achar ninguém para combater, até que se viram ultrapassados pelo Exército Vermelho e, enfim, cercados.

O comandante designou Horst e mais dois sujeitos para protegerem uma área de cerca de cem metros ao sul e nas costas de um vilarejo chamado Halbe. Pouco depois um bombardeio fez com que os "protetores" se escondessem num celeiro. Os escombros da explosão vedaram as portas. Em pouco escutaram um vozerio lá fora. E as palavras não eram em alemão.

"São os Ivans", disse um dos sujeitos. E gritou: "Nie strelatsch!". Sábias palavras. Significavam "Não atirem!" em polonês. Dava para os russos entenderem. Os guris saíram por um buraco. Os russos confiscaram os relógios dos três. Foram feitos prisioneiros.

Isso ia durar muito tempo. Quase todo o livro.

A primeira prisão dos alemães foi na própria Alemanha. Afinal, o que não faltava era campo de prisioneiros por lá. Era mais uma questão de troca de inquilinos. Coube a Horst o Stalag VIIIC, em Sagan, uma cidadezinha duzentos quilômetros a sudeste de Berlim.

Halbe era até mais perto, o ruim era o meio de transporte. A pé. Marchando. Quem fraquejava e caía perdia a vaga no campo. Tomava uns pipocos na ideia e era deixado morto no meio do caminho. Não Horst. Ele era bom no negócio de andar. Dormia em pé e andava dormindo.

Chegou no campo e ganhou uma gamela de sopa aguada, com umas batatas mal lavadas e um naco de pão. O bom foi que conseguiu papel e lápis. Sentou no seu beliche e escreveu, em alemão: "Preso! Quem poderia imaginar isso!" Era o começo do diário. Que, décadas depois, acabou nas mãos de Badaró. Diário cuja história eu resumo mal e porcamente aqui. Em homenagem a Horst.

O campo era para um mero pernoite. No dia seguinte voltaram  para a estrada, e Horst anotou no seu papel: 8 de maio de 1945. Em Berlim, o marechal Wilhelm Keitel - homem de confiança de Hitler, o do "morramos todos", que se suicidara duas semanas antes - assinava a rendição alemã. Festa na cidade.

Não para Horst, que marchou mais 240 quilômetros até Opole, seguindo o curso do rio Öder. "Alojados em um campo provisório. Daqui deve-se continuar a caminhar! Para onde, não se sabe."

Era para bem longe. Naquela mesma tarde, embarcaram em um trem com vagões para animais. Caberiam vinte, mas eram amontoados quarenta prisioneiros alemães em cada vagão.

Em vagões de carga como aqueles os alemães transportaram judeus para os campos da morte. Enfiavam 130 pessoas em cada vagão, sem espaço sequer para porem os pés, que iam uns em cima dos outros. Às vezes, por uma abertura superior, jogavam cal e água sobre os judeus. A combinação química desintegrava a carne do povo encarcerado e comprimido. Morriam todos. 

Mas russos não são alemães. O tratamento VIP se restringia à comida pouca e ruim. Nada de cal, ao menos. O trem avançou lentamente por semanas. O medo coletivo é que o destino final fosse a Sibéria. Mas ainda estavam na Polônia. Cruzaram o Vístula e trocaram de trem. A lotação apertou. Agora em cada vagão eram noventa sujeitos.

O cardápio não variava e, pior, as rações eram cada vez menores. A Polônia ficara para trás. Quando passavam pelos vilarejos russos, vinha a barulheira: crianças jogando pedras nos trens dos prisioneiros. Chato. O brasileiro anotou a data do seu desembarque em Moscou. Era 13 de junho.

Mal o dia raiou e os prisioneiros tomaram outro trem. Vinte e quatro horas depois, sem pão nem água, chegaram ao seu destino: Vladimir, uma cidade com nome de lateral do Corinthians. Escreveu: "Será que alguém um dia iria encontrar esse caderninho? Será que iam sobreviver, os dois?" 

No alojamento travou conversa com prisioneiros antigos, chamados de "stalingrados" - é que a maioria dos detentos fôra presa lá. Logo soube que Vladimir tinha diversos campos como aquele. E que a maioria dos prisioneiros havia desfilado acorrentada por Moscou, como troféus de guerra. Não ele. A guerra já acabara.

A cidadezinha em que estavam se encontrava em ruínas. E cabia aos prisioneiros tirar entulho, abrir e pavimentar ruas. Foi o primeiro trabalho de Horst, até surgir a oportunidade na sua própria área: desenho técnico. Como havia informado no interrogatório de chegada que era brasileiro e desenhista, após dois meses ralando sob o sol, carregando pedras, conseguiu uma ocupação mais amena - projetando as ruas que ele antes pavimentava.

Sonhava com a possibilidade da liberação, na condição de estrangeiro. Franceses e poloneses que estavam no campo, na sua chegada, foram mandados de volta para casa.

A comida continuava ruim. Às vezes era apenas sopa de urtiga e fatias finas de pão. Ou uma tal de kasha, uma espécie de mingau russo. Embora o almoço no escritório fosse um pouco melhor, de manhã e de noite se resumia a água com farelo dissolvido.

Com o tempo, passou a ser mais bem-quisto no trabalho. Os projetistas eram todos alemães, sob a chefia de um capitão russo boa praça. Que logo descobriu que Horst era o único ali que sabia jogar xadrez. Como parceiro de jogo do capitão, a rotina deu uma aliviada. Um pouquinho que fosse.

No alojamento, porém, nada melhorava. Dormiam em beliches de três andares, sem colchão. As botas estavam cheias de buracos. Brenke utilizava o mesmo uniforme de quando fora preso, mais de quatro meses antes. Cheio de piolhos. Chovia. O tempo esfriava.

"Já irão nos deixar loucos. Para mim, em breve, é como se eu deitasse na cova. O principal é que eu deite quente. Já está tão frio que o lápis escorrega dos dedos duros! Daqui a pouco não vou poder mais escrever! Tomara que essa miséria tenha logo um fim. De um jeito ou de outro."

Em outubro os prisioneiros romenos partiram. Horst pensava quando chegaria sua vez. Era brasileiro, afinal. Adoeceu. Passou uma semana na enfermaria, um mero galpão vazio, sem ninguém que o atendesse, quando foi chamado. Perguntaram: "É brasileiro, não é? Parte hoje." Se encheu de alegria. Não se despediu de ninguém e foi levado para a estação.

O trem que o levaria já havia partido. Devolveram-no ao alojamento. Faltou sorte.

Novembro sequer chegara e tudo ao redor era neve. Dezessete graus abaixo de zero. Sopa de cascas de batata. Prisioneiros morriam como moscas. Outros estrangeiros partiram. Mas desta vez ele não foi selecionado. Naquela noite a marmita veio com areia. Ele comeu. Houve uma quarentena. Tifo.

Sobreviveu. No fim do mês foi finalmente convocado para libertação. Na estação um oficial confirmou com ele: "Brasileiro?" Horst fez que sim. "De Curitiba". O oficial perguntou onde estava sua família. Horst disse que em Berlim. "Como?" O oficial se exasperou e riscou o nome dele da lista. Voltou para a prisão. Mas não para o seu campo, nem para o seu trabalho. Começaria tudo de novo.

Estava novamente preso. E tinha pela frente o inverno russo.

E novamente o duro trabalho braçal. Desta vez, foi alojado no campo principal. Passou o Natal sob 25 graus negativos. Com fome, piolhento e esfarrapado. Irritado com os alemães que trabalhavam no campo como chefes de companhia, dando ordens a outros alemães e comendo melhor que eles.

Os russos tratavam os prisioneiros alemães até que com alguma dignidade. Em fevereiro, Horst recebeu um salário. 75 rublos. Um quilo de pão custava 25 rublos. No meio do inverno adoeceu. Se recuperou. Em 28 de abril completou um ano como prisioneiro. Ansiava pelo 1o de maio, feriado do Dia do Trabalho. Não carregaria carvão. Fez sol, a ração teve bolo e vinte gramas de gordura.

Duas semanas depois ele foi novamente interrogado. Era o procedimento padrão para selecionar quem sairia do campo e voltaria para casa. Mas ele não acreditava mais que sairia de lá um dia. O comissário russo fez as perguntas de praxe, em alemão. Na hora da nacionalidade, Horst confirmou que era brasileiro. 

- Quantos anos você tem? perguntou o russo, em português, para espanto de Horst.

- Eu completo vinte anos dentro de um mês e seis dias! respondeu.

No mesmo dia foi colocado em um transporte internacional. O trem deixou Vladimir naquela noite e demorou longos quatro dias para chegar a Moscou. E demorou mais vinte para deixar a Rússia, cruzando o rio Tisza e chegando à Romênia. Desembarcaram na pequena cidade de Sighetu Marmatiei. Os guardas russos não os seguiram. Não haveria mais guardas.

Em um campo provisório, cercado por arame farpado, ganhou roupas novas. As primeiras depois de um ano vestindo os mesmos trapos do uniforme alemão. Ganhou uma calça escura, uma camisa branca de botão e um paletó surrado. Comiam bem e não precisavam trabalhar. Era junho de 1946.

Uma semana depois embarcou novamente. O trem agora era de passageiros, e não de carga, como os demais em que viajara no último ano. Comemorou o aniversário na cidade húngara de Debrecen. Era agora um garoto de vinte anos. O trem passou por Budapeste e chegou à Viena. O desembarque foi em St. Valentin, também Áustria. Era um campo de refugiados - como descrevi detalhadamente aqui em "A longa volta para casa", alguns meses atrás. 

A diferença é que eu então falava da perspectiva de quem comandava os campos com milhões de refugiados. Agora estamos vendo a história de um único "refugiado". Um guri de pais alemães que nasceu e foi alfabetizado no Brasil. O displaced ficou um mês na Áustria.

Um novo trem o levou para Bolonha, onde gramou por quinze dias, acomodado em instalações da UNRRA, esta tal entidade que zelava pelos deslocados de guerra - seu novo status. Já não era mais um prisioneiro; mas não tinha para onde ir. Não tinha documentos. Não tinha como provar quem era.

Foram levados para Aversa, perto de Nápoles. Lá ele procurou o cônsul brasileiro, que não acreditou na sua história, a princípio; mas, um mês depois, por razões que Badaró não nos esclarece (certamente porque não tinha essa informação no diário), o cônsul o chamou.

Disse que ele deixaria Nápoles no dia seguinte, um 25 de setembro. O navio era o Almirante Jaceguay, que aportaria no Rio de Janeiro em 17 de outubro de 1946. O cônsul mandou que ele tirasse uma foto para o passaporte. O retrato de 5cm x 7cm foi para a capa do livro.

Acabou aí a aventura do garoto Horst Brenke, o "soldado brasileiro de Hitler". Teve uma vida convencional no Brasil, voltando para Belo Horizonte. Manteve seu diário guardado, sem compartilhar com ninguém sua história. Morreu jovem, aos 57 anos, em 25 de maio de 1984.

O diário de 76 páginas, em papel ensebado e cheio de manchas, com letrinhas miúdas e todo escrito em alemão, permaneceu indecifrado. Até que a jovem enteada de um dos filhos de Horst, que nunca conheceu o "avô", comentou com o novo namorado, jornalista, que tinha um diário misterioso em casa.

Falou com a pessoa certa. Um escritor.

Editora Vestígio, 190 páginas  |  Copyright 2016  |  1a reimpressão

P.S.: Gostou, né? Pois então sugiro que compre o livro e leia a história completa. Tem muito mais, incluindo a viagem do escritor à Rússia. Isso aqui foi só um resuminho apressado.

Sidney Puterman

Some say he’s half man half fish, others say he’s more of a seventy/thirty split. Either way he’s a fishy bastard.

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