"Os soldados brasileiros de Hitler", por Dennison de Oliveira

terça-feira, novembro 14, 2023 Sidney Puterman


O autor é um professor radicado no Paraná, estudioso da história da guerra. Finaliza sua publicação com um texto conciso e bem fundamentado sobre as raízes do conflito e da reorganização europeia pós-45. Dá foco também à formação do Estado de Israel, investindo no paralelo entre o genocídio judeu perpetrado pelos nazistas e o tratamento dado aos palestinos pelos judeus.

Embora o faça com certa timidez, seu flerte com o negacionismo do Holocausto não passa despercebido. Afirma a política de extermínio praticada por alguns representantes do regime nazista e minimiza o assassinato organizado de 6 milhões de civis entre homens, mulheres e crianças que possuíam religião ou antecedentes judaicos - nivelando-o com o assassinato de outros grupos estigmatizados pelo governo alemão, como os homossexuais, os ciganos etc.

Mas esta não é a motivação do seu texto. A lenga-lenga típica dos negacionistas só surge ao fim do livro. E também não é o foco do meu comentário, embora não pudesse deixar passar despercebidas as assertivas do autor - situadas entre o historicamente descabidas e o relesmente criminosas. 

Por uma razão simples: não se atenua um crime contra a humanidade.

Nem um atentado terrorista, a propósito. Mas isso são outros mil e quatrocentos.

Assim, rumemos para o leitmotiv da obra: a "importante" participação de soldados brasileiros na Wehrmatch, as forças armadas da Alemanha. Os soldados "brasileiros" de que trata o livro são todos filhos de alemães (e austríacos) que haviam migrado para o Brasil após a Primeira Guerra Mundial. A economia alemã estava esfacelada, seu mercado de trabalho idem e, lá, o ambiente político era de balbúrdia. Fugir da Alemanha era um bom negócio para os alemães.

Os que escolheram o Brasil por destino e, no Brasil, São Paulo, matricularam seus filhos na Deustche Schule. Com a chegada de Hitler ao poder e o cenário promissor da economia alemã na segunda metade dos anos 30, muitos alemães voltaram com suas famílias para a Alemanha.

Seus filhos brasileiros, nascidos na década de 20, entraram todos para a Jungvolk (uma espécie de escotismo nazista) e, depois, para a Hitlerjugend, a juventude nazista. Chegaram à idade de convocação militar já no último terço da Segunda Guerra, entre 1943 e 1945.

Os jovens que não morreram e conseguiram retornar ao Brasil foram a matéria-prima exclusiva de Dennison de Oliveira. Foram entrevistados já em idade avançada, no início dos anos 2000, passados mais de meio século dos eventos que se esforçam em reconstituir.

Um deles, "Gustav" (tratado no livro como G.S.), foi o ponto de partida e também de contato com os demais soldados. Estudaram todos no mesmo colégio paulistano, lutaram na mesma guerra, voltaram para o mesmo país.

O autor narra seu contato com um filho de alemães nascido em São Paulo na década de 20, e que nos anos 30 retornara com a família para a Alemanha. O depoente optou pelo anonimato, temeroso (ainda) de ser vítima de preconceito pelo passado nazista. Oliveira refere-se a ele apenas como G.S. 

O uso das iniciais desumaniza e descontextualiza a ideia de uma versão pessoal. Vamos então dar um nome verossímil a ele, já que mais da metade do pequeno livro é dedicado a este soldado específico. "G" poderia ser Günter, Gerd, Gustav etc. Vamos ficar com o último, cuja versão portuguesa, Gustavo, é mais apropriada a quem nasceu no Brasil. Optemos por um sobrenome - vou de Schröeber, mas poderia ser qualquer outro, como Schön, Schumacher, Sïeber etc.

Na Alemanha, nosso recém-rebatizado Gustav Schröeber se inscreveu na Jungvolk e depois na Hitlerjugend, a Juventude Hitlerista. Como qualquer criança, foi alvo de curiosidade dos amigos pela sua origem sul-americana e apelidado de Der Amerikaner ou simplesmente Güingo. Tentou fugir à prestação do serviço militar, convenientemente alegando sua condição de estrangeiro, mas não colou. Pelo seu nível de escolaridade, foi aceito em um curso de aspirantes a oficiais em Praga, na Tchecoslováquia ocupada, em 1943, de onde saiu como canhoneiro.

Quando da designação para o front, tentou escapar da ida para combate na frente italiana, alegando não querer guerrear seus compatriotas brasileiros - uma desculpa esfarrapada, pois coube ao Brasil uma parcela ínfima, tardia e desimportante da linha de frente, em um teatro secundário da guerra. A chance de vir a trocar tiros com os brasileiros era desprezível. A FEB só aportou na Itália um ano depois, no fim de 1944, e nossos batalhões estavam mais preocupados em não congelar do que em atirar em alguém.

Vale abrir um parêntese: as tropas brasileiras não tinham uniformes adequados, equipamento adequado, treinamento adequado, não falavam inglês, nem italiano, nem alemão; receberam por missão atacar um monte irrelevante, defendido pelo rebotalho do exército nazista, e fracassaram. O Brasil insistiu em ter tropas na Europa pela conveniência para a ditadura getulista e por capricho para o alto-comando militar brasileiro. Foi uma ação de marketing político, não uma ação bélica.

Seria como mandar à Groenlândia um mestre-de-obras cearense para construir iglu para esquimó.

Voltando à desculpa cara-de-pau de Schröeber, os brasileiros só colocaram o pé na Europa em setembro do ano seguinte, e somente em novembro uma divisão inteiramente brasileira se consolidou. A alegação estapafúrdia de que um reles soldado alemão teria "se recusado" a ir para um determinado front porque em algum momento do futuro poderia vir a combater sul-americanos oriundos do país em que havia ocasionalmente nascido é para rir. Seria motivo de pilhéria, espancamento ou fuzilamento. Certamente disse isso para edulcorar a sua passagem medíocre pela Wehrmacht e para posar de cidadão de princípios e brasileiro patriota.

Não foi a primeira nem a última das mentiras de Schröeber em seu longo depoimento.

O segundo brasileiro descrito por Oliveira como tendo prestado serviço militar na Wehrmacht o fez por breves semanas e não disparou nenhum tiro. Fritz Müller (pseudônimo posto pelo autor, sobrenome por mim mesmo) nasceu também em São Paulo, em 1928, e aos dez anos voltou para a Alemanha, com os pais e irmãos. A família foi residir em Berlim, onde Fritz se alistou, como todos os da sua idade, na Jungvolk e depois na Hitlerjugend.

Com os irmãos mais velhos já no Exército, em 1944 ele foi chamado para compor uma bateria anti-aérea, onde ele e mais dois jovens pilotavam holofotes, sob orientação de um militar. Em 1945 foi efetivamente recrutado e mandado para a Polônia (que, à época, já não existia, era o Governo Geral), de onde fugiu dos russos. Na volta à Alemanha, foi preso pelos americanos. Libertado, acabou sendo mandado para trabalhar na zona de ocupação russa.

Para escapar à miséria que grassava na Alemanha, conseguiu na embaixada brasileira o repatriamento, em 1947. Fritz voltou ao Brasil sem saber falar português. Morreu em São Paulo, em 2006, na completa ignorância sobre a guerra da qual "participou", mais de meio século antes. Acreditava nas boas intenções do regime nazista, que, inocente, havia sido levado à guerra pela Inglaterra e que a Alemanha sofrera grandes atrocidades por parte dos Aliados.

Via em Berlim os judeus com a estrela amarela costurada, mas "eram poucos" e não os considerava "perseguidos". Se morreram em campos de concentração, era porque as condições de guerra foram severas de forma geral. Fritz não acreditava no extermínio deliberado (hoje denominado "negacionismo") e tinha uma lembrança afetuosa da sua infância nazista.

Seu irmão Jürgen Müller (rebatizado por mim, já que o pseudônimo atribuído a ele foi Martin, um nome inglês), mais velho, integrou uma tropa nazista que caçava civis na Lituânia. Depois foi deslocado para a Rússia, onde recebeu a "Ordem da carne congelada", como debochavam os soldados - uma medalha para quem esteve servindo no Leste.

O que Jürgen mais fez foi zanzar de um canto ao outro, quase sempre sem ação: interior francês, Côte d'Azur e Ucrânia, até que recebeu a função de liderar um grupo de pastores (soldados inexperientes) na Romênia. Especializado em retiradas (as tropas alemãs tinham fugido na Rússia e na Ucrânia), fugiu também na Romênia, onde levou um tiro na perna e acabou preso, nu, pelos soviéticos. Depois de cinco anos como prisioneiro na União Soviética, foi mandado de volta à Alemanha, de onde conseguiu repatriamento para o Brasil, em 1950.

Hans, filho de austríacos que emigraram para o Brasil em 1924, nasceu em 1926, em São Paulo. Sua história é semelhante a de todos os demais garotos mencionados no livro: estudou na paulistana Deutsche Schule e rumou para a Alemanha em 1938.

Seus pais foram para Hamburgo, onde ele integrou as escolinhas nazistas - de educação física, simulacro militar e cursinho rápido de ódio aos judeus - e, na guerra, estreou como apontador de holofotes, como outros guris. Em 1944, enfim militar, foi mandado para o front tcheco.

Acossado pelos russos, passou a maior parte do tempo enfiado em um buraco. Era inverno e isso lhe custou a amputação dos dedos dos pés. Não tinham armamento ou munição suficientes. Além de ter tido o pé congelado, teve a sua Maüser roubada. Não consta ter disparado nenhum tiro. Sua maior diversão era beber cachaça (sua equivalente local, a schnaps).

Com a ajuda do consulado brasileiro, conseguiu um repatriamento para o Brasil em 1948. Os pais voltaram no ano seguinte.

O caso de Max ainda é mais desprovido de relevância. Capixaba, nascido em 1928 de imigrantes alemães que voltaram à pátria em 1935, cumpriu o mesmo cronograma dos demais: Jungvolk - o tal primário de adestramento infantil - e escola militar. No caso de Max, na Prússia.

Como soldado, em 1945 cavou buracos na Tchecoslováquia ocupada e depois foi mandado para Viena. Não deu um único tiro. Fugiu aqui ou acolá, durante a guerra, e fugiu depois da guerra para a França. Voltou depois para Hamburgo e conseguiu o repatriamento para o Brasil em 1947.

Na sua ignorância, repete, como se fosse verossímil, uma piada de português - a de que os soldados russos que invadiram a Alemanha roubavam torneiras para ter água em qualquer lugar -, e o autor, na sua ingenuidade, reproduz o deboche como se verdade fosse, sem aspas reticentes ou um comentário cético.

A propósito, cabe observar que os soldados alemães invasores roubaram tudo o que encontravam e eram estimulados a dar um tiro na cabeça do cidadão roubado, fosse homem, mulher ou criança. Há vasta e reputada literatura sobre o assunto. Nela, constatamos que expropriar e assassinar eram o comportamento militar padrão nos tempos em que a Wehrmatch era a invasora. Depois, invadida, se tornou hábito culpar o inimigo de fazer o mesmo que ela própria havia feito.

O caso de "Chicco", um filho de austríacos que nasceu em 1927, em São Paulo, e que foi enviado, com o irmão mais velho, ao Österreich, em 1939, inicia como os demais, mas com um fim bem diferente. Franz - não vou chamá-lo de Chicco, é bizarro - também estudou na Deustch Schule paulistana e, no império germânico, também integrou a Jungvolk.

Em 1943 já integrava as baterias anti-aéreas, como os outros adolescentes entrevistados por Oliveira, e em 1944 foi convocado para o serviço militar, primeiro em Viena e depois em Berlim. Foi mandado para a Dinamarca e depois para a Holanda. Em ambos os países sua tropa se limitou a fugir dos Aliados e a se proteger dos bombardeios.

Em Nijmegen, na Holanda, no barata-voa que eram as fugas, Franz de repente se viu sozinho e tentou retornar para a retaguarda. Percebendo a movimentação inimiga ao redor, jogou fora sua arma, levantou os braços e se rendeu. Eram ingleses, que não tinham o hábito germano-soviético de matar soldados rendidos e burocraticamente conferiam seus documentos. 

"Um brasileiro! Pegamos um brasileiro!"

Na época, Pelé ainda não existia e o Brasil se resumia a Carmen Miranda, que era portuguesa. Mas o brasileiro Franz foi bem mais útil: bem educado, falava inglês fluentemente e se tornou intérprete e tradutor. O único perrengue foi ter passado os primeiros dias preso num chiqueiro, entre os porcos. Fora isso, tudo transcorreu bem.

Franz trabalhou com a 53a Divisão de Infantaria, do País de Gales, na Holanda, e, com o fim da guerra, foi para Neuburg, como tradutor da administração britânica na Alemanha ocupada. Liberado, foi para a Bélgica, de onde embarcou de volta para o Brasil.

Ao contrário do que parece pretender o autor e do que nos leva a crer o título, o tema não é nada militar, muito menos glorioso. É uma narrativa sobre pobres-coitados que, crianças, estavam à mercê das ambições de ascensão econômica dos pais - e coube a eles pagar um preço alto. Oliveira só teve como entrevistar os sobreviventes. Das crianças mortas ninguém tem o paradeiro.

Suas famílias vieram da Alemanha e da Áustria fugindo do desemprego e da ruína do pós-guerra; desistiram da aventura no Brasil e retornaram ao eldorado alemão da segunda metade dos anos 30, quando Hitler, à custa de empréstimos que não seriam pagos, turbinava a economia; e fugiram de volta para o Brasil, como repatriados protegidos pela nacionalidade postiça, quando a Alemanha passou de invasora a invadida, e seus crimes de guerra foram cobrados.

Pelos comentários pretensamente patrióticos, por meio dos quais glorificam sua presença no front, os "soldados brasileiros de Hitler" até hoje não entendem no que tomaram parte. Figurantes incapazes em um morticínio covarde, permanecem imersos na mais absoluta ignorância sobre a tragédia criminosa em que bateram ponto.

Foram bucha de canhão nas mãos de um psicopata covarde. Hoje se orgulham de terem sido vítimas.

Juruá Editora, 122 páginas  |  1a edição  |  Copyright 2008

Sidney Puterman

Some say he’s half man half fish, others say he’s more of a seventy/thirty split. Either way he’s a fishy bastard.

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