"Diário de Berlim ocupada - 1945 - 1948", por Ruth Andreas-Friedrich

terça-feira, novembro 07, 2023 Sidney Puterman


Uma barragem ininterrupta de bombas deixou a cidade em ruínas. Não há água, comida, transporte ou energia. Pior: as mulheres foram estupradas e os homens estão mortos.

Não, não estou falando de Gaza, nem de um kibbutz israelense. Falo de Berlim, 78 anos atrás.

Era novembro de 1945. Poucos meses antes, a Segunda Guerra Mundial vivia seus últimos dias. A Alemanha tinha sido invadida por russos (a leste) e por americanos (a oeste). Em meio às ruínas da Berlim desmoronada, o grupo Onkel Emil, formado por jovens alemães de esquerda, ferreamente antinazistas, comemorava o fim da guerra e a chegada do Exército Vermelho.

Não eram meros alemães oportunistas - e sim jovens que, na clandestinidade, desde o início da guerra, fizeram ativa oposição a Hitler. Mas as coisas não se deram como eles esperavam.

Já sem encontrar resistência, os soviéticos chegaram saqueando, roubando e estuprando. Alguns do grupo de jovens comunistas alemães falam o idioma russo, se identificam como resistentes e, na terra arrasada, conquistam alguns privilégios. Recebem também algumas tarefas de organização e o direito de realizar um espetáculo musical nos escombros da cidade. Os russos amam a música.

O idealismo logo sucumbe diante da realidade. As duras condições de vida se impõem. Faltam acomodações, comida, segurança, energia, higiene, aquecimento e transportes. Os russos são algozes e ladrões, jamais parceiros; nunca exemplos de conduta, como esperavam os jovens. Os aliados, vitoriosos, não se entendem, nem se suportam. Os alemães lutam pelas migalhas.

Esta é a narrativa de Ruth e seus amigos ao longo dos primeiros três anos de ocupação de Berlim. O grupo logo se desintegra e a cidade é repartida entre as quatro forças aliadas: ingleses, americanos, franceses e russos. Os alemães se dividem entre os que apoiaram o nazismo (e agora tentam esconder seu passado) e aqueles poucos que desde o início da guerra eram contra o governo; mas mesmos estes já acham a dominação estrangeira pior do que a opressão do governo nazista.

Trechos dos diários podem ser um termômetro do sentimento dos berlinenses. 

"Afinal, os americanos vêm ou não? Berlim será dividida ou ficará com os russos?", se questionava a autora, testemunhando a fértil oposição fascista após o fim do regime. "Grupos anti-fascistas espocam como cogumelos. A cada duas esquinas, formou-se algum grupo político".

"Campanha Alemanha Livre"... "Grupo Seidlitz"... "Antifa"... "Aliança de Oponentes de Hitler"... Ruth é mordaz: "Nem todos esses grupos anti-Hitler podem se orgulhar de uma longa luta anterior".

Fora de dúvida que grupos de oposição ao nazismo antes eram raridade, principalmente no ocaso do regime. À medida em que a derrota se impunha inevitável, recrudescia o patrulhamento da SS e dos gauleiter sobre a população. O justiçamento dos opositores era violento e imediato. Ruth correra grande risco com suas convicções políticas e imaginava que a chegada dos soviéticos, com seu revolucionário comunismo, iria trazer benefícios palpáveis ao povo.

As coisas não se deram assim, como constatamos em seu relato. Os diários se estendem por três anos e formam um raro mosaico da vida em Berlim durante o início da ocupação soviética. O texto traz muitas curiosidades, entre elas o súbito novo valor de uma estrela de Davi amarela.

"Vez por outra, uma estrela de Davi adornando a camisa de quem a usa como se fosse uma condecoração. Um álibi", diz Friedrich, que acrescenta que "corre o boato de que estrelas de Davi valem hoje no mercado quinhentos marcos cada uma".

É difícil não sorrir para esta súbita inversão de valores. Mas ela relata que o álibi não funcionou como esperado. "As mulheres judias também foram estupradas".

Os primeiros meses da Berlim sob ocupação estrangeira cabem dentro do estereótipo: roubos, saques, estupros. Como mostra a própria ilustração da capa, você estava com sorte se saísse com sua bicicleta e voltasse com ela. Os soldados soviéticos não perdoavam bikes, relógios e xoxotas.

Após o primeiro ano, os alemães do lado soviético da administração de Berlim tentavam normalizar a rotina da cidade. Houve eleições, com 90% de comparecimento. Oitocentos e cinquenta e um mil homens e um milhão e meio de mulheres foram às urnas. Nada mal.

Ganhou o Partido Social Democrata, com 48,9%. O Partido da Unidade Socialista, o partido do invasor poderoso, teve que se contentar com pífios 20,4%. Um membro do partido derrotado ironizou: "As mulheres de Berlim votaram contra seus amantes russos".

A União Soviética continuava deportando trabalhadores alemães qualificados (cientistas, especialistas em indústrias-chave etc) para sabe-se lá onde. "Os democratas chamam isso de assassinato. Os ditadores descrevem o assunto como 'satisfação de obrigações prévias".

Os invernos são o pior momento. Falta energia de oito a dez horas por dia. Não há aquecimento. As pessoas viajam de trem para a floresta de Grunewald e gastam horas recolhendo lenha que será queimada em um dia. Ruth registra:

"A natureza também, a seu modo, tenta resolver o problema da superpopulação alemã. Como o antigo Egito, todo o país parece afetado por sete pragas. Tão logo a praga da guerra terminou, veio a do estupro, seguido da praga dos refugiados. E, enquanto grassa essa última, uma nova - o frio - se instala em em enregelantes nevascas. As mortes continuam", prossegue Friedrich, chamando o estouro dos esgotos de quinta praga, a sexta seria a enchente do Oder e a sétima a tuberculose e as doenças venéreas.

Além das pragas naturais, a população sofre com a partição da cidade entre quatro países diferentes. Um artigo do Neue Zeitung, intitulado "A situação por zona", analisa a gestão de cada um:

"Os franceses acreditam que os alemães não têm o direito de participar da política. Nem da política interna", afirmando que, para eles, "uma administração pobre é melhor do que a boa política". Já os russos "pensam diferentemente. A política é necessária. A política deles: a do Partido da Unidade Socialista. Acreditam que a má política é ainda melhor do que uma boa administração. Mas a mentalidade da zona deles é de medo".

"Os ingleses", continua o jornal, "creem que aquilo que se mostrou bem-sucedido com eles também deve dar certo na Alemanha: um sistema de voto majoritário, democracia social, economia planejada, total liberdade de crítica". Mas o texto ressalta que "na verdade, apenas a crítica vem funcionando".

"Os americanos acreditam que uma atitude democrática é preferível a qualquer dogma político. Em consequência, sua atitude para com a política interna alemã é a menos determinada. Paradoxalmente, a mentalidade da zona americana de expectativa calculada é a mais europeia."

Friedrich e seus amigos criticam o fato da Áustria receber reparações de guerra: "Tratada como uma nação que foi oprimida por Hitler e agora está libertada", transcreve a autora, diretamente dos jornais. "Áustria, primeiro país vítima da agressão de Hitler a ser isenta do pagamento das reparações como nação não hostil".

O grupo se indigna com a perspectiva da Alemanha indenizar a Áustria. "Quanta besteira", balbucia, incrédula, Ruth. "De todos os povos, nossa nação-irmã no Eixo. O mais ansioso, servil e entusiasta homem de 1938".

"O nazismo começou na Áustria", acredita a autora, "encontrou clima e apoio na Baviera e terminou na Prússia", para concluir que a Prússia foi dissolvida, que "os bávaros afirmam que não foi coisa deles e a Áustria pede reparações. Será que o mundo ficou completamente maluco?"

As teorias da conspiração tão comuns hoje na internet, e com milhões de adeptos entusiasmados nas redes sociais, espocavam entre a população. Segundo a autora, muitos acreditavam que os americanos roubaram a bomba atômica inventada pelos alemães. Para o populacho, a lógica era a seguinte: se os americanos entraram na Alemanha em abril e explodiram Hiroshima em agosto, é lógico que ela foi roubada dos alemães.

Quem não entendeu, que peça para a Dilma e o Bolsonaro explicarem. Devem ter suas teorias.

O grupo de amigos que era o entorno da autora dos diários se dissolve com a passagem dos anos. Um morreu, assassinado por um russo, e os demais deixaram o lado soviético de Berlim. Ruth, idealista, gostaria de ficar. Mas é uma editora em um "país" onde não há papel. 

Se orgulha das eleições de dezembro de 1948, quando mais de 80% do um milhão e meio de alemães votaram contra as políticas do Partido da Unidade Socialista, e celebra a vitória de Pirro: "Um resultado admirável, levando-se em conta que ele provavelmente será pago com uma intensificação do bloqueio, com um inverno sem carvão, com noites sem eletricidade e com uma dieta de batatas desidratadas".

Na véspera do ano novo de 1948, Ruth Andreas-Friedrich embarca para Frankfurt e se prepara para deixar Berlim para trás. Enquanto ajusta o cinto de segurança da aeronave, o passageiro ao lado afirma: "A caminho da liberdade".

O registro de Friedrich tem o mérito de reportar a cidade e a ocupação soviética sem o desserviço da demagogia. Compõe um documento valioso para entendermos o fechamento de Berlim Oriental ao ocidente.

Cai o pano da cortina de ferro. Demorará quase meio século para levantar.

O avião decola. Enquanto ganha altura, a autora dos diários chora e se despede. As nuvens lhe roubam a visão. "Em algum lugar lá embaixo está Berlim, Berlim ocupada".

Editora Globo, 297 páginas | 1a edição 2012 |  Tradução Joubert de Oliveira Brízida | Copyright 1985

Título original: "Battleground Berlin: diaries 1945 - 1948"



Sidney Puterman

Some say he’s half man half fish, others say he’s more of a seventy/thirty split. Either way he’s a fishy bastard.

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