"A informação", por Martin Amis

quinta-feira, dezembro 21, 2023 Sidney Puterman


Eu de cara devo admitir que tenho um ponto em comum com Richard Tull, o protagonista. Escrevo resenhas de livros que ninguém lê. Mas talvez as semelhanças parem por aí. Tull escreve resenhas favoráveis e recebe por isso. Eu desço a lenha (quando o autor merece) e ninguém me paga.

Também...

Dito isto, eu, que já babei Amis por um romance que não me lembro o nome agora (era um cínico triângulo de amor em um campo de concentração nazista, onde um tenente comia a mulher do chefe do campo), não vou poder fazer o mesmo neste "A informação".

Tem coisa boa? tem. E é bom? Não. É chato, pedante, alongado, narcisista, presepeiro. O domínio que o autor tem da prosa se presta a um espetáculo monótono, digno de uma foca amestrada. 

Admito que precisa ser bom para equilibrar uma bola no focinho. Mas vá assistir isso dias a fio...

É um texto pretencioso que te cansa. Até a viagem de Tull e Barry para os Estados Unidos, a leitura do livro é tipo subir uma montanha íngreme levando pela cara uma tempestade de areia. Chegando ao topo, porém, parece que uma benção miraculosa subitamente contaminou a narrativa, e ela fica... boa!

Pena só que foram necessárias quase trezentas páginas para chegar nesse ambiente minimamente razoável para o leitor diletante. E - mais pena ainda - depois de umas três dúzias de páginas a dupla volta para o modorrento cenário londrino caricaturado pelo autor.

Por que Martin, ou seus editores, não perceberam que era um texto pernóstico, masturbatório, de uma auto-deploração soturna? Sei lá. Devia ter mercado cativo nos pubs. Amis morreu em maio deste ano, na véspera do aniversário do meu cunhado botafoguense. O que isso tem a ver com a história?

Nada! mas foi justamente com um monte de nada a ver que o célebre escritor preencheu quase quinhentas páginas. Com uma carrada de irrelevâncias para o leitor não-inglês contemporâneo (não que meu simpático cunhado seja irrelevante, mas sua presença nesta resenha certamente o é).

E olha que o argumento cerne da narrativa era excelente.

"Ele é o meu amigo mais antigo. Eu adoro aquele filho da puta", comentou Richard Tull no momento em que, pela última vez, tentava fuder inapelavelmente com a carreira do tal grande amigo.

E o escritor incumbido desse tema escroto aí de cima era ótimo. Martin Amis. Seus personagens idem. Dois velhos amigos. Ambos escritores. Um hermético. O outro inócuo. Um não vendia nada. O outro vendia horrores. Despeito versus desprezo. Salamaleques versus indiferença. Plot: um amigo-autor fracassado que passa a vida tentando cavar a cova do amigo-autor best-seller.

Alguém pensou (o próprio Amis?): essa sacada pode dar samba.

Então juntou-se uma baita ideia para um livro e um baita autor para escrevê-la. Mas deu chabu. Talvez ele estivesse de ovo virado. Ou sem saco. Ou de salto alto. Mas o que resta é que não deu liga. E olha que, escolhendo a dedo alguns trechos, até parece que o livro é bom.

Eu deveria ser suspeito, resenhando um livro sobre um resenhista. Mas Richard Tull era pior que eu. Eu gosto de resenhar. Tull queria ser romancista. Seu primeiro livro, "Premeditação", foi seu ápice. "O veredito sobre Premeditação foi o seguinte: ninguém entendeu o livro ou chegou a lê-lo até o fim, mas ninguém também tinha certeza de que fosse uma merda".

A partir daí, tudo só piorou. Já Gwyn Barry, o galês, escrevera o título mais vendido da década, "Amelior". Tull não era ninguém na fila do pão. Os jornalistas faziam fila para entrevistar Barry.

"Amelior é uma espécie de terra prometida? É por causa desse mito que faz tanto sucesso? Seus dois livros são utopias formais? O senhor acha que a reinvenção da sociedade é uma das responsabilidades do escritor?"

Enquanto isso, Tull "reservava-se o direito de deixar claro que as coisas que Gwyn escrevia eram uma merda, Amelior era uma merda imperdoável e que o sucesso de Gwyn era acidental. Transitório". Segundo o amigo, "o entusiasmo pela obra de Gwyn esfriaria mais depressa que seu corpo".

Ainda que sem dinheiro, sem leitores e sem editora, Richard Tull aspirava grandes coisas. "Ele não tentava escrever romances de talento", contava Amis do seu protagonista. "Tentava escrever romances de gênio, como Joyce. O próprio Joyce era um chato mais ou menos na metade do tempo. Richard era chato o tempo todo. Sua obra era ilegível".

Não é necessário dizer que um escritor que escreve sobre escritores e suas picuinhas está zombando dos seus próprios pares. Um ás do mundo literário que escarnece de editores, jornalistas, autores e da mediocridade coletiva. Talvez, mais que tudo, escrevesse para eles e o livro fosse uma grande piada interna. OK. Pode ser. 

Mas o leitor brasileiro comum é uma vítima inocente do livro de Amis. O livro é chato como o "Sem título" de Richard Tull e como é James Joyce em metade do tempo (segundo o autor, né, porque eu nunca li Joyce; como vou me propor a ler um cara que não usa ponto?)

Diz a contracapa que o romance é "um exemplo do virtuosismo e da irreverência linguística que se tornaram a marca de Martin Amis". É como eu disse antes. A tal foca amestrada. "Amis evolui com desenvoltura na fogueira de vaidades do mundo literário". Aham. Pois é.

Óbvio que sobra sarcasmo para as premiações do meio. Amis comenta que seu insípido co-protagonista, Gwyn, o galês, estava sendo preterido para o primeiro prêmio pela "poetisa bósnia que também dirigia um hospital infantil com mil leitos em Gorazde". Amis é bom. Este livro não.

São centenas de páginas absolutamente confusas, com frases deliberadamente pela metade, personagens bisonhamente semi-definidos, como se a descrição completa das cenas não nos fosse apresentada porque integram alguma espécie de charada - ou porque um escritor brilhante que escreve para outros escritores quase brilhantes deve deixar metade do texto subentendido.

Geralmente eu não subentendia. Eu só não entendia.

Há uma passagem em que Richard está concluindo o que Amis define como "um nobre exemplo do antigo gênero literário conhecido como libelo difamatório - que se situam no extremo oposto do panegírico, ou seja, consistem basicamente em injúrias e acusações pessoais".

Bem, eu não injuriei nem acusei ninguém. Estou a salvo da pecha. Só não aliviei.

Você pode me perguntar, como certa vez fez uma dona, por que o livro tem esse nome (no caso, era um outro livro). Não vou dizer, para não dar spoiler. Mas é uma razão babaca. A informação é essa.

Na foto, eu leio o livro nos jardins de Fontainebleau. Decerto você não está ligando o cu às calças, mas este era o jardim de Napoleão. Provavelmente eu nunca mais vou ler um livro no jardim de Napoleão. Ou seja: eu poderia ter escolhido um livro melhor para ler no jardim do cara.

Cia das Letras, 490 páginas  |  2a edição  |  2004  |  Copyright 1995  |  Tradução Sergio Flaksman

Título original: "The information"

Obs.: Entrando no site da editora, há seis livros de Amis, entre eles o "Zona de interesse", que citei lá em cima e cujo nome tinha esquecido. Há também "Lionel Asbo", "Casa de encontros", "Trem noturno" e "Água pesada e outros contos". O mais caro é justo "A informação", R$ 87,90. Que sacanagem.

Sidney Puterman

Some say he’s half man half fish, others say he’s more of a seventy/thirty split. Either way he’s a fishy bastard.

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