"Vermelho Brasil", por Jean-Christophe Rufin

terça-feira, abril 11, 2023 Sidney Puterman


O livro é uma narrativa romanceada sobre a pretensão - fracassada - do navegante francês Nicolas Durand de Villegagnon de fundar a França Antártica no Rio de Janeiro, nos idos do século XVI.

Villegagnon é quase um desconhecido na França. Sua tentativa colonizatória deu em nada. Se lá, porém, não sabem quem ele é (em Provins, sua cidade natal, há uma plaquinha homenageando o cidadão "ilustre"), aqui não caiu no esquecimento. Virou referência geográfica. A pequena Seregipe, uma ilhota na Baía de Guanabara, se tornou desde então a Ilha de Villegagnon.

Sem o charme de uma ilha, porém. Na descaracterização sofrida pela baía com seus sucessivos aterros, visualmente a antiga ilha se tornou no século XX um apêndice do Aeroporto Santos Dumont.

Na ilhota funciona a Escola Naval, que mantém em seu interior uma área chamada Forte Coligny - em homenagem a Gaspar de Coligny, financiador da expedição francesa seiscentista (nome dado por Villegagnon ao forte que construiu, e que foi arrasado pelos portugueses três anos depois).

Já o livro dá asas à imaginação. Afora algumas linhas gerais, muito pouco da verdadeira História é respeitada pelo autor. Deu certo. Sua fantasia foi condecorada em 2001 com o disputado Prix Goncourt, a mais importante premiação literária da França.

Não tenho como contestar as habilidades literárias do dr. Rufin. Polivalente, faz bem muitas coisas, entre elas escrever - mas prezando por um estilo conservador. Seu texto tem a estrutura dos livros de um século atrás (o que não é demérito, escrevia-se muito e bem, há cem anos). É consistente, os personagens são bem construídos e os capítulos terminam em suspense.

A estória começa com a cooptação de um casal de irmãos pré-adolescentes, Just e Colombe, por um dos homens de confiança de Villegagnon. A ideia é que as crianças se tornassem úteis como trugimães, ou seja, tradutores da linguagem indígena local (desde aquela época já se sabia que crianças aprendem línguas estrangeiras muito mais rapidamente do que os adultos). 

Assim foi feito. Com a descoberta posterior de que as crianças eram filhas de um nobre morto, antigo companheiro de armas de Villegagnon, logo ganharam um lugar privilegiado junto ao chefe da expedição. Este é o núcleo da narrativa romanceada.

O roteiro segue mal e porcamente os fatos históricos, produzindo uma versão que não é nem uma coisa, nem outra. O ambiente criado tem os pés bem plantados na irrealidade, como a existência de um soberano alternativo, um tal "Pay-Lo", um europeu que se transforma em um sábio venerado pelos indígenas, e que vive encarapitado em uma mansão ecológica na Tijuca.

Rufin entendeu que o melhor tempero para a sua novela seria o confronto entre Villegagnon e Du Pont - um papista ardoroso contra um enviado de Calvino. A rixa, que começou conceitual, acabou chegando às vias de fato, com os protestantes franceses enxotados da ilha.

Aí o autor nos oferece uma muqueca ao suíngue do tupinambá doido, com anabatistas assassinos, católicos defensores da hóstia como o corpo vivo do Cristo, calvinistas casamenteiros e um solitário riponga renascentista, pregador do amor livre, comendo e catequisando as índias (ou catequisando e comendo, a ordem dos fatores não alterava a conversão).

Por trás disso tudo rola um autêntico roteiro de capa-e-espada, com lances à la Dumas, onde um dos trombadinhas que veio a bordo como candidato a trugimão, Martin, foge, se torna líder dos franceses expatriados e de diversas facções indígenas e vive nababescamente em uma paliçada-gourmet aos pés do Pão de Açúcar.

Não ficou só nisso. A ex-criança de rua dos portos franceses se torna o cacique dos caciques e negocia com os emissários portugueses de Mem de Sá a sabotagem e o ataque ao Forte Coligny. Chega, né? Essas e outras mais você encontra na novela (bem) escrita por Rufin.

Não entendo muito dos critérios do Goncourt. Nem é o primeiro vencedor do prêmio que eu leio (já li outros de qualidade aquém da esperada, como "Vou embora", do ótimo Jean Echenoz, e outros despudoramente brilhantes, como "As benevolentes", do Jonathan Littell). Mas parece que nem sempre o pessoal acha fácil pra quem dar o prêmio. Tem que dar uma procurada.

Me entreti e passei bons momentos com o romance de Jean-Christophe Rufin. Na minha condição de carioca de nascença, apaixonado pela história do Rio de Janeiro, ler uma estória ambientada nos primórdios da cidade, antes dela própria existir, me fascina e seduz. 

Mas, apesar da ação transcorrida boa parte do tempo na Baía de Guanabara e no que viria ser a praia do Flamengo, o estilo do autor decididamente não é minha praia.

Vai que é a sua. Se for, vai se divertir. O texto é bem costurado.

Uma professora de história me abordou na rua, há duas semanas, ao me ver com o exemplar de "Vermelho Brasil". Perguntou-me a desinibida senhora se o livro na minha mão tinha alguma coisa a ver com o comunismo. Contei a ela que não, e expliquei que a trama se passava alguns séculos antes da Revolução Russa. Ela me cobrou, encafifada: "Então por que se chama Vermelho Brasil?"

"Não sei", eu disse, e ela me olhou com certo desdém, como se eu fosse analfabeto.

Fica a pergunta aí pro Rufin, para, ao menos, limpar a barra deste leitor ignorante.

Suma de Letras (Objetiva), 406 páginas | 2a edição (2015) | Copyright Editions Gallimard 2001

Tradução Adalgisa Campos da Silva  |  Título original: "Rouge Brésil"

Sidney Puterman

Some say he’s half man half fish, others say he’s more of a seventy/thirty split. Either way he’s a fishy bastard.

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