"A bela menina do cachorrinho", por Ana Karina de Montreuil e Carla Mülhaus

sábado, novembro 23, 2013 Sidney Puterman

Começa hardcore. A vida louca de uma família maluca, podre de rica, fissurada e corrompida pela cocaína e pelo álcool. Legal. Parece divertido. Mas, menos. Livros de drogados vão na veia até umas 50 páginas. Alguns chegam a 100 páginas com alguma onda. Depois disso é overdose de mesmice, monotonia e enrolação – até porque vida de drogado é isso mesmo. As porra-louquices se repetem. Você vai ficando enjoado e percebendo como é jogar a vida pelo ralo. O trágico, o ridículo e o deprimente se misturam: a protagonista cheira toneladas de cocaína atrás de um barato legal e aí se enfia dentro de uma gaveta de geladeira, o que não é um barato legal. O livro enfileira as 158 internações em clínicas de drogados, as 83 porradarias de namorados em sua defesa, as 257 perdas de sentido por excesso de álcool e drogas, os 160 quilos de cocaína aspirados e os 45 amantes que ela consegue lembrar o nome. É quase um dossiê contábil. Com 20% disso o saco enche. De toda forma, o livro é a versão de Ana Karina, registrada – e bem, ressalte-se – por Carla Mülhaus. A ghost writer é de primeira linha, e dá fluência literária à conturbada existência da menina do cachorrinho, menos bela do que ela presume; mas isso não vem ao caso. Auto-estima é sempre bom. Sobre suas crises e abandonos, talvez os personagens que ela cita – o pai, por exemplo – tenham uma versão bastante diferente. Mas é inegável que o exemplo de desperdício que é a sua vida tem seu valor. Gostamos de ler sobre o mundo cão – até por uma satisfação de nos encontrarmos a salvo no nosso mundinho e podermos ter nossas reflexões burguesas sobre como foram acertadas as decisões comportadas que tomamos – e é sempre bom poder mostrar para nós e para os nossos filhos a merda pastosa e fedorenta que é a droga. Depois das boas páginas iniciais e do razoável percurso até o miolo, o texto emburaca para um relato banal e enviesado de auto-ajuda, com carradas de pieguice e bom-mocismo. Jogando o nome de Ana Karina no YouTube, aparece uma entrevista dela com o indescritível Amaury Jr, que, sem ter lido o livro, faz perguntas obviamente idiotas, o que mostra a idiotice que é a vida de drogado. Terminar dando entrevista pro Amaury Jr é realmente o fim da picada.

Ediouro, 311 páginas

Sidney Puterman

Some say he’s half man half fish, others say he’s more of a seventy/thirty split. Either way he’s a fishy bastard.

5 comentários:

  1. Gostei da crítica . Inclusive concordo com a falta de criatividade que é a vida de um drogado. Sempre repetições do mesmo tema .
    Eu falaria ainda sobre o título , que além de cafona só faz algum sentido para leitores mais atentos . Já que o título se refere a uma matéria de jornal .
    Sempre brinco que deveria ser A bela cachorra do menininho , mas infelizmente não tive autonomia quanto à escolha do título .
    Uma coisa me chamou atenção na sua crítica, além claro de ser a única crítica "negativa" se é que se pode dizer assim . Você faz parecer ser rica um defeito . Algumas pessoas têm problemas com a burguesia e com dinheiro . Talvez por nunca ter tido ou por alguma convicção não sei .
    Ser rica não é defeito nem crime .
    Talvez um olhar mais delicado e generoso teria visto além de repetições . Teria visto sentimentos que dão em ricos ou pobres deixados.
    Enfim a vida seguiu o livro foi apenas um livro .
    Eu segui !
    E sem nenhuma modéstia , mais bela e poderosa do que nunca .
    Causando inveja , desejos e polêmicas .
    Mas certamente sem repetições cansativas .

    ResponderExcluir
  2. Ana Karina, obrigado! Fico feliz que tenha gostado de uma crítica “negativa”. É uma crítica aguda e, certamente, sincera - creio, entretanto, que mais incisiva do que negativa. Quanto ao "A bela cachorra do menininho", achei boa e irreverente sua sugestão, mas creio que o editor apostou no mais seguro, em termos de resultado comercial. Não discordo. Livro tem que vender. Por outro lado, concordo que me faltou delicadeza e generosidade. É um defeito que, não raro, me domina. Na verdade, tento não dar muitas voltas pra dizer se gostei ou não de um livro, se aprovei ou não - e muitas vezes peso a mão. Por você, me desculpe. O fato é que leio e falo dos livros pelo prazer que me trazem ambas as coisas, e, quando estou entre os textos, esqueço do resto. Peço sua compreensão e, pela segunda vez, me desculpo. Fico feliz por você ter superado uma tonelada de adversidades e ter seguido em frente. Parabéns, triplamente: pela coragem, pelo registro e pela recuperação. Grande abraço.

    ResponderExcluir