"Minha bola, minha vida", por Nilton Santos
Para quem chegou cedo ao Niltão nesta noite de quinta-feira, para evitar o trânsito e escolher um bom lugar com calma, a leitura da biografia do cara que deu nome ao estádio era uma boa maneira de passar o tempo até a partida contra o Santos começar.
Hoje nome de estádio de futebol - equipamento público em posse do Botafogo de Futebol e Regatas, único clube em que Nilton Santos atuou profissionalmente, defendendo-o em 718 partidas -, e bicampeão mundial pela Seleção Brasileira, pela qual disputou quatro Copas do Mundo, o atleta foi eleito pela FIFA o "maior lateral-esquerdo de todos os tempos".
A descrição que faz dos fatos da sua vida, desde a infância pobre e as peladas na Ilha do Governador à atividade profissional vitoriosa e ao seu pós-carreira acanhado (ainda que ele, ao contrário, em sua modéstia considerasse que era regiamente homenageado), impressiona pela candura quase infantil com que relata passagens muito aquém da sua dimensão para o jogo.
Pena que o livro, curto e episódico - com um volume ralo de informações sobre a sua extensa carreira -, traga como maior destaque causos folclóricos do futebol, em que ele narra os eventos muito mais como espectador do que como personagem; além de outros trechos que parecem mais anedotas do que conteúdo relevante para uma obra dedicada a revelar a trajetória de um dos maiores jogadores da história do futebol.
São muitos os exemplos, e posso buscar alguns deles, divertidos, ou curiosos, mas que cairiam bem melhor em um almanaque de fatos aleatórios do esporte do que neste texto, narrado em primeira pessoa, e que oficialmente se declara a biografia do craque.
Como quando ele desautoriza o o senso geral de que Leônidas da Silva tenha sido o inventor da bicicleta. Na verdade, segundo ele, tinha sido outro Leo, o Leonídio.
"Quando eu via as pessoas comentando sobre o Leônidas da Silva, dizendo que ele era o inventor da bicicleta, eu ria sozinho. Sem querer desmerecê-lo, é claro, foi um excelente jogador, mas bicicleta eu me lembrava que já tinha visto o Leonídio - que por sinal era pai do Brito, o tricampeão - fazer desde que eu era criança."
Ou quando uma confusão generalizada em um Botafogo x São Cristóvão resultou na saída de Nilton de campo com "quatro pontos nos lábios e o rosto deformado por vários dias". Ele foi chutado no chão e, segundo alguns, até mesmo mordido pelo beque central adversário, o Torbis.
Para você ver como o futebol dos anos 40 era provinciano, no dia seguinte o Nilton foi à casa da namorada do Torbis atrás do sujeito, para tirar satisfações, se queixando que tinha sido chutado e mordido pelo tal - que, escafedido e para se livrar da calúnia, no dia seguinte deu entrevista aos jornais com a dentadura na mão, dizendo "nem chutei, nem mordi, porque uso dentadura".
Engraçado, mas não era só isso que eu esperava da biografia do maior ídolo da história do Botafogo, posto que ocupa ao lado do anjo das pernas tortas, Garrincha - de quem ele tem muitas histórias, como amigo e protetor. Até na própria bio Nilton se faz de coadjuvante.
Ele conta que, quando Garrincha chegou para um teste no Botafogo, "o treinador, o Gentil Cardoso, quando viu o Mané entrar em campo disse: 'No Botafogo dá de tudo, até aleijado".
Ao falar do companheiro, Nilton dá um depoimento que confirma a grandeza da sua simplicidade.
"Mané era uma pessoa como eu fui. Simples, ingênua, sem experiência, veio de um lugarejo tão pequeno e tão pobre como o meu. O Rio de Janeiro era uma cidade grande e éramos carentes. Então, toda pessoa que se aproximasse da gente era bem-vinda. O que queríamos era ajuda."
Conta Nilton que, com seu humor infantil, Garrincha infernizava o cotidiano na concentração. Tirava do garçon o posto de servir a comida e, da ponta da mesa, perguntava:
"Cara de Jaca - era como ele chamava o Manga - você quer bife aéreo ou de trem?" Manga, todo bronco, respondia: "Bife, porra!" "Então toma, via aérea" (que era quando ele jogava a comida pelo alto até o jogador que havia pedido - de trem era quando ele colocava a comida em cima da mesa e a fazia deslizar). Haja paciência. Ainda mais com fome.
Sem contar a mania de passar a mão na bunda do Didi e outras brincadeiras indizíveis. Nilton Santos tentava sossegar o Garrincha lendo as notícias para ele - o ponta era analfabeto -, mas não adiantava muito.
Outra história bem conhecida, que Nilton também dá sua versão, é o do jogo do Botafogo, no México, em que o Garrincha driblou e zombou tantas vezes do Vairo, lateral do River Plate e da seleção argentina, que parte da torcida mexicana, fã das touradas, passou a gritar "olé" a cada drible. O grito pegou e a partir daí foi incorporado ao futebol.
A narrativa da morte do craque é dolorosa. Nilton conta que foi acordado com a notícia. Cidinha Campos estava transmitindo ao vivo do IML e queria o depoimento dele. Agnaldo Timóteo dava entrevistas na rádio chamando por Nilton, por conta de um impasse sobre onde o corpo seria enterrado - se no Rio ou em Pau Grande.
"Estático, em casa, eu só chorava. Não conseguia atender os telefonemas, não queria ir, ao mesmo tempo sabia que teria de ir."
Nilton se recuperou do choque, vetou o velório na Câmara Legislativa do Rio e disse que o lugar para velar o Mané era o Maracanã. "Dentro em pouco, o estádio estava cheio, parecia dia de clássico, só que em silêncio. Não se ouvia nada além de choro e passos na fila indiana para passar perto do Garrincha".
Era dia de São Sebastião, feriado de 20 de janeiro de 1983. Foi então que aconteceu nova confusão com a família do jogador.
"Um diretor do Botafogo chegou com a bandeira alvinegra", conta Nilton. "A família proibiu que ele cobrisse Garrincha com ela, argumentando que o clube o tinha destruído". O jogador reconhece que a família "podia até ter um pouco de razão, mas também foi o clube que o projetou para o mundo. Além do mais", contemporiza, "estávamos todos sofrendo muito, não era hora disso".
Para o torcedor alvinegro, cuja idolatria pelo clube é fundida com o mito de Garrincha, é duro saber que foi desta forma abjeta a despedida do craque. Nilton contornou a recusa dos familiares: "Fui ouvido e a bandeira do clube, da estrela solitária, cobriu sua maior expressão".
Mas isso não foi suficiente para o clube respeitar na morte o ídolo maior que desrespeitou em vida. Garrincha foi sepultado em Pau Grande, mas ainda teve quiprocó no cemitério, por falta do pagamento de uma taxa. Agnaldo Timóteo pagou.
Nilton foi visitar o túmulo do amigo uma semana depois. Deixo que ele conte.
"O caixão estava aparecendo do lado de fora da terra. Ele tinha sido enterrado numa cova rasa. Voltei e fui ao Botafogo, aquilo não podia acontecer, o clube tinha de mandar fazer um túmulo decente para ele."
Em vão. "Os tempos haviam mudado", reconhece Nilton. "Não tinha o seu Carlito, o dr. Nei Cidade Palmeira e tantos outros. Os que estavam lá nada fizeram."
Por mais difícil que seja para a torcida - que venera Garrincha e transfere para o clube a grandeza do jogador -, é importante saber que a postura dos homens que estavam à frente da instituição foi esta. O que fere e envergonha o admirador e apequena o clube.
Nilton Santos recorreu à CBF, sem sucesso. Coube então a ele continuar a cuidar do amigo, mesmo depois de morto. Mandou fazer o túmulo e sobre ele pôs a inscrição, numa pedra de mármore: "Aqui descansa aquele que foi a Alegria do Povo".
(Seria legítimo se a SAF fizesse por ele na morte o que o BFR não fez em vida.)
São páginas e páginas falando de Garrincha - e já passamos de dois terços do livro. Você pode reclamar que eu, qual o livro, estou também dedicando o texto sobre Nilton a falar de Garrincha. Mas temos que convir que isso deixa transparecer a humildade do maior lateral de todos os tempos. Ele não se achava importante o suficiente para ser assunto da própria biografia.
Nilton prossegue sua narrativa, falando dos outros. Falava do Vicente Feola dorminhoco. Sem papas na língua, do Gentil Cardoso mau caráter. Do João Saldanha, o João Sem Medo, a quem chamava de esperto, com suas preleções que terminavam sempre iguais: "Vão lá, façam o que vocês sabem fazer, ganhem o jogo e depois vão comemorar".
Do Armando Marques, contou que num jogo Botafogo e Corinthians, no Pacaembu, o árbitro marcou um pênalti inexistente, do qual Nilton reclamou: "Ele, todo nervosinho, veio falar comigo e botou o dedo na minha cara. Aí, não deu. Escureceu e dei-lhe uma porrada". Lógico que o lateral alvinegro foi expulso.
De outra feita, Nilton nem mais jogador era. Era diretor do Botafogo, que enfrentava o São Paulo no triangular final do Brasileiro de 1971, a primeira edição do campeonato nacional do país (no ano anterior foi jogada a Taça de Prata). Eu vi esse jogo na TV, um dos primeiros que assisti do time.
Nilton, que chefiava a delegação, conta que, já na concentração do clube em São Paulo, foi procurado por um jornalista local, Bibas, que alertou: "Nilton, vocês não vão ganhar esse jogo". O craque questionou, e Bibas segredou que Armando Marques procuraria expulsar alguém, antecipando que "no banco de reservas do São Paulo vão estar sentados o governador Laudo Natel e o comandante do Primeiro Exército, ambos são-paulinos. O Armando vai apitar olhando pro banco".
Para evitar as expulsões anunciadas, Nilton se reuniu na preleção do vestiário com o Paraguaio, técnico do time, e orientou para os jogadores evitarem provocações e as faltas mais duras. As expulsões temidas foram evitadas, ou seja, deu certo, mas só em parte.
"Só o time do São Paulo tinha o direito de fazer faltas. A favor do Botafogo, ele não marcava nada. Forlan, lateral direito deles, deu porrada em todo mundo e o juiz não mostrou nem amarelo."
O Botafogo perdeu de 4x1 para os paulistas e foi para o jogo final do triangular precisando vencer o Atlético Mineiro por quatro gols de diferença. Mas perdeu no Maracanã pelo placar mínimo, gol do Dario. Vi esse jogo também (dá para notar que meu início como torcedor foi bem pouco promissor).
O Armando Marques apitou este jogo. Nilton foi esperá-lo na entrada do túnel e deu-lhe um empurrão, acelerando a descida do juiz escada abaixo. A repercussão foi positiva: "Nunca recebi tantos cumprimentos na rua. Até autoridades foram à minha loja para dizer que eu fiz o que eles gostariam de ter feito". Outros tempos.
Eu contando este monte de estorinhas e você pode me perguntar: ok, mas e a vida do Nilton jogador? Rapaz, ele mal fala nela.
Seu relato pós-aposentadoria é tão simplório que constrange. E esse sujeito humilde foi o maior jogador da sua posição em todos os tempos. Esse sujeito de caráter jogou mais de 700 partidas profissionais de futebol por um mesmo e único clube.
Vou pegar aqui para definir uma palavra que o mister gosta muito de usar: digno. Pois, genialidade à parte, Nilton Santos foi sinônimo de dignidade.
Ave, Enciclopédia. Você tinha mesmo que virar nome de estádio.
Editora Gryphus, 268 páginas | 1a edição | Copyright 2014
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