"1943", por Roberto Muylaert
28 de janeiro de 1943. A bordo de um hidroavião transatlântico, o presidente americano Franklin Roosevelt pousa no rio Potengi, em Natal, Rio Grande do Norte. Seu último destino havia sido Casablanca, no Marrocos. O mundo estava em guerra há três anos e a cúpula aliada se reunira na cidade africana para deliberar sobre a intrincada estratégia da aliança.
Stalin não foi. O georgiano não se arriscava fora da União Soviética. Se muito, ia até as regiões fronteiriças. Com isso, Churchill e Roosevelt, além dos franceses e De Gaulle, sempre mal-humorado, lideraram a reunião. O inimigo agressor, a Alemanha, vinha em viés de baixa. Mas ainda havia muita guerra pela frente (faltavam dois anos, três meses e onze dias para a rendição incondicional). Muitos milhões ainda estavam por morrer, embora o resultado final já fosse óbvio.
Neste momento delicado da história, Roosevelt chega à capital potiguar. O ditador brasileiro, Getúlio Vargas, já estava à sua espera desde a véspera. Os dois almoçaram a bordo do USS Humboldt - onde, curiosamente, apesar de em águas e território brasileiros, o anfitrião, de fato, era o norte-americano. Avançaram na negociação diplomática da "locação" do terreno para funcionar como uma base aérea dos Estados Unidos para o envio de recursos para as divisões aliadas na África.
À saída do almoço, os dois fizeram um percurso de jipe pelas ruas de Natal. Eram dezessete quilômetros da Rampa Alemã até a base de Parnamirim. A foto dos dois presidentes e de um séquito de militares, às gargalhadas, amontoados em um Jeep Willys 1942, correu o mundo, intrigou o autor e é a capa do livro.
Pena é que, com este material promissor, Muylaert não tenha ido além do seu ponto de partida.
Promissor, sim, da nossa perspectiva tupiniquim, mas irrelevante aos olhos de quem historia a participação dos EUA na guerra. Robert E. Sherwood, autor do alentado "Roosevelt & Hopkins", registra em uma única de suas 1.034 páginas o encontro de Roosevelt com o presidente do Brasil.
Foram duas linhas:
"O presidente decolou para Natal, no Brasil, cruzando o Atlântico Sul e encontrando-se no dia seguinte com o presidente Getúlio Vargas. Uma semana mais tarde o Brasil entrava na guerra."
Só isso. Nem uma vírgula a mais. A frase "uma semana mais tarde o Brasil entrava na guerra" induz a crer que houve uma consequência da reunião: Vargas teria sido persuadido por Roosevelt a decidir-se pelos Aliados. Sherwood se restringe a isso. Só que o Brasil não "entrou na guerra" uma semana depois, pois já havia declarado guerra ao Eixo em agosto de 1942, cinco meses antes, e só chegou, de fato, à guerra em setembro de 1943, oito meses após.
Isto posto, deixemos o livro do Robert e voltemos ao livro do Roberto.
O autor oferece uma coleção de observações pontuais e anedóticas sobre as circunstâncias que envolveram a Segunda Guerra Mundial e a implantação de uma base norte-americana em Natal. Muylaert relata passagens pitorescas dos personagens que conduziram o grande conflito.
Embora o mote do livro seja a fugaz presença militar dos Estados Unidos em território brasileiro, durante boa parte do texto este tema é deixado de lado. Detalhes circunscritos à evolução da guerra, ou pormenores sobre uma ou outra minúcia interessante, dominam o conteúdo.
Sintetizando, é leitura fácil e rasa, de valor ralo. "1943" entretém quem pretenda um apanhado superficial dos acontecimentos.
Mas não há compromisso com nenhum aspecto da narrativa - seja sobre o tema, a região, os personagens ou a guerra. É um bate-papo datilografado, relacionando circunstâncias prosaicas (da grande bunda branca de Churchill aos charutos de Roosevelt) sobre os protagonistas da época.
Se presta, entretanto, a distrair a plateia. As notas colhidas por Muylaert são tão diversas (incluindo um acidente de carro sofrido por Getúlio na serra de Petrópolis, onde ele teve a tíbia fraturada e teve que terminar o percurso levando o cadáver do oficial que o acompanhava ao necrotério), que difícil não haja um detalhe ou outro do interesse do leitor, seja eventual ou aficcionado.
Em resumo, "1943, Roosevelt e Vargas em Natal", fala pouco de Roosevelt, bastante da família de Getúlio e alguma coisa de Natal. É menos um livro de história e mais um bazar de referências variadas. Das suas poucas mais de duzentas páginas, trinta são tomadas por fotos e trinta e uma dedicadas a Ingeborg.
Aí você me pergunta: "Quem diabos foi Ingeborg?" Ou mais, "que importância teve essa tal Ingeborg para o tema do livro"? Nenhuma, antecipo. O autor nos anos 90 entrevistou Ingeborg em Nova Iorque e deu a ela 20% do espaço da publicação. Ela foi, por um curto período, esposa do filho de Vargas, Lutero. Era alemã e supõe-se que, após o casamento, tenha corneado o zero um da época.
Nas páginas finais, há inclusive o registro fotográfico do casamento de Ingeborg com Lutero. O texto de Mulayert havia destacado a paixão surgida entre os dois, em Berlim, e o espanto dela em torno do poder detido pela família Vargas quando chegou ao Brasil - como se ela não soubesse que casava com o filho do ditador do maior país da América do Sul.
A foto da alta e espadaúda Inge ao lado do baixinho gorducho Lutero conta muito mais sobre a "paixão" dos dois do que as trinta e uma páginas oferecidas pelo autor.
Reitero que o livro não é de leitura desagradável - Mulayert entende do riscado -, mas decepciona quem se deixou levar pelo título. É como uma reportagem mais extensa da falecida Manchete. Boas fotos, textos curtos e legendas burocráticas. Na Manchete, até o bombardeio de Hiroshima ganhava um ar pueril de consultório de dentista.
Esta é a parte cheia do copo. Já a vazia é que o tema proposto jamais é aprofundado, a pesquisa é frágil e a narrativa não tem continuidade. Os mesmos tópicos são repetidos aqui e acolá, como se os capítulos tivessem sido escritos isoladamente e depois não tivessem sido sequer cotejados. Ou foram, e o autor não teve o capricho de suprimir as redundâncias.
Se o leitor, entretanto, se deixar levar pelas reminiscências de Mulayert ao redor de uma velha e curiosa foto do encontro de dois presidentes, Roosevelt e Vargas, em solo brasileiro, no calor da Segunda Guerra, e ver esta mesma foto reencenada de forma mambembe, mais de meio século depois, por pascácios locais que não faziam ideia do que estavam reproduzindo ("eu não era nascido", justificou um dos figurantes), vai ter em mãos um bom passatempo.
Eu há muito tempo não folheava uma Manchete.
Editora Bússola, 205 páginas
0 comentários: