"O plano Flordelis", por Vera Araújo

sábado, novembro 12, 2022 Sidney Puterman


O livro é o relato organizado, cronológico e, pena, monocórdio de registros, notícias e depoimentos relativos ao crime aparentemente concatenado por Flordelis e cometido por seus filhos. Adianto que a narrativa da jornalista Vera Araújo se limita ao conteúdo disponível na mídia sobre Flordelis, além da investigação e dos procedimentos processuais.

Ainda que escrito com correção e sobriedade, o texto decepciona o leitor interessado em um aprofundamento dos personagens envolvidos. Verdade que segue o indigente padrão editorial do país. Como é comum nos livros-reportagem brasileiros, o trabalho do autor é pobre em material exclusivo. Oferece pouco, algumas vezes nada, além do já publicado.

Não é uma crítica à autora, e sim ao mercado, do editorial ao leitor, que se satisfaz com o oferecido. É um cata-cata, um copia-e-cola, feito aqui com monótona competência. É o que temos.

O crime veio a júri popular nesta segunda-feira, 7 de novembro, e a previsão é de que o julgamento se encerre amanhã, domingo, ou, no mais tardar, na próxima segunda, 14. A pastora, cantora gospel e ex-deputada Flordelis dos Santos de Souza, 61, é acusada de ser a mandante do assassinato do seu marido, Anderson da Silva, 41.

A ré ficou famosa no fim dos anos 90, quando os programas de TV descobriram a estória de uma religiosa que se afirmava mãe adotiva de 55 filhos. Não obstante, o amor e a generosidade que aparentavam ser sua motivação exclusiva não resistiam a uma espiadela mais meticulosa.

Financiada por filantropos (após a divulgação da sua caridade), o que se constata é uma rigorosa estrutura hierárquica, onde os três filhos biológicos estão no topo da cadeia alimentar e disciplinam - com prepotência e algumas vezes com violência - os níveis inferiores da "filiação" adotiva.

Um primeiro nível ainda goza de privilégios parciais, mas aos "filhos adotivos" (na verdade não o eram, eram apenas jovens admitidos na casa, alguns permanentemente, outros temporariamente) cabiam os trabalhos domésticos e uma alimentação básica, sem acesso à geladeira vip.

Logo no início da formação desta família peculiar, a mãe, Flordelis, então com 35 anos, se casa com um dos adolescentes, Anderson, então com 17 anos, que namorava a sua filha biológica, Simone.

O envolvimento dos dois tem uma versão diferente para cada um que você escuta entre os 57 moradores da casa. E, no caso da ré, a verdade de qualquer circunstância é muito difícil de apurar, pois a narrativa de Flordelis é todo o tempo enviezada, com contradições contrapostas por clichês e reações emotivas teatralizadas.

Dependendo do tamanho da divergência entre fato e versão, via de regra Flordelis escapa do assunto com alguma platitude relativa a algum outro tema e começa a chorar. Geralmente funciona. Talvez não com a lei.

Ressalto o mérito da autora, Vera Araújo, em entregar substância suficiente para que o leitor possa compor o seu próprio panorama da família (muito ajudado pelo ótimo diagrama das páginas iniciais, que traz o nome dos filhos mais próximos e as respectivas camadas familiares).

No acompanhamento da investigação, espanta a ingenuidade e o amadorismo com que Flordelis arquitetava as tentativas de assassinato. Passa a impressão de que ela tinha absoluta confiança de que o nível de credulidade da sociedade como um todo seria idêntico àquele que ela desfrutava em casa e àquele que ela usufruía na comunidade evangélica frequentadora dos seus cultos.

O assassinato é tosco. O compartilhamento de informações incriminatórias por intermédio da rede de celulares da família é risível. Filhos interagiam entre si, via aplicativo de mensagem, combinando emboscadas ou procurando matadores de aluguel. Pesquisavam venenos na internet.

E o pior: tudo isso foi tentado. Um pistoleiro foi contratado e pago. A vítima, porém, ainda com sorte, mudou a rotina no dia. Então envenenaram a comida de Anderson, que foi parar no hospital, mas não morreu. Os filhos reclamaram entre si, por mensagens, que o sujeito "não morria de ruim".

Dezenas destas mensagens incriminadoras partiram do próprio celular de Flordelis, orientando os filhos ou discutindo detalhes do crime com eles. Na polícia e no tribunal, ela achou que era suficiente alegar, para limpar a própria barra, que o celular dela não possuía senha (!) e todo mundo usava. 

Lógico que não colou.

Incontáveis versões se sobrepuseram, cada uma tentando consertar os buracos da anterior, confrontada com novas descobertas. Tão inverossímeis que começaram com uma tentativa de roubo seguida de morte e terminou em uma vingança passional da filha por assédio sexual.

Agora escolheram uma outra. Neste início de novembro de 2022, a nova alegação da banca de advogados de defesa é que Anderson estuprava a esposa, transformando a vítima em culpado e a culpada em vítima. Embora estapafúrdia, certamente esta é a versão que os causídicos contratados consideraram aquela que ofereceria mais chances para reduzir a pena da mandante do crime.

Faltou combinar com o júri popular, que talvez não engula mais uma nova estória.

Voltando aos fatos, o plano com que finalmente conseguiram matar Anderson foi simplório. Flordelis arrastou o marido para Botafogo (alguns depoimentos afirmam que eles foram a um clube de swing, hábito antigo deste casal-celebridade de pastores evangélicos) por algumas horas, enquanto os filhos mancomunados com a pastora ficaram em casa, preparando a emboscada.

O casal chegou depois das três da manhã e entraram na residência. Após já ter tirado a roupa, Anderson foi de cueca até a garagem (deduzo eu que a esposa deva ter pedido que ele voltasse para buscar alguma coisa "esquecida" por ela no carro), quando foi surpreendido pelos filhos biológicos de Flordelis, Flávio e Simone, que deram mais de 30 tiros no padrasto, boa parte deles na genitália.

Não posso nem dizer que matar foi "fácil", haja visto tantas tentativas frustradas, mas, realmente, matar foi a parte mais fácil do crime, diante das dificuldades óbvias de de camuflá-lo depois. A alegação de de Flordelis de terem sido seguidos por motoqueiros, que entraram na garagem atrás de Anderson e o executaram, para roubá-lo, não parou em pé nem por 24 horas.

Não só porque nenhuma das afirmações dela pôde ser comprovada (na verdade, diversos detalhes foram logo desmentidos), como toda a sua versão do idílico passeio a dois que fizeram naquela noite, em comemoração do aniversário de casamento, não batia com os sinais de celular captados.

A tecnologia atual não dá mole. Sinalzinho de celular é o maior dedo-duro do século 21.

A partir daí foi uma sucessão de versões-tampão derrubadas a cada nova tentativa de confundir os investigadores. Crime mal planejado - a bem da verdade, pelo relato de Vera Araújo, aparenta ter sido mesmo um crime desnecessário, um capricho da pastora -, com muito a perder e pouco a ganhar. Deu ruim e a cantora-gospel deputada e líder evangélica está na cadeia desde agosto de 2021, quando foi destituída do seu mandato popular. 

Me vem à mente o que não quer calar - será que nenhum daquelas dezenas de agregados que ela chamava de filhos momento algum fez a pergunta certa a se fazer - "E se descobrirem?"

Eu, curioso para tentar entender melhor este núcleo tão brasileiro, encomendei o "Flordelis, pastora do diabo", do Ulisses Campbell. Se eu tiver tempo e estômago para ler, comento aqui em breve.

Editora Intrínseca, 296 páginas  | 1a edição | Copyright 2022

Sidney Puterman

Some say he’s half man half fish, others say he’s more of a seventy/thirty split. Either way he’s a fishy bastard.

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