"Resenha esportiva", por Nelson Motta
Nelson Motta lançou este seu bem-humorado almanaque em 2014. A capa chamava para as setes Copas do Mundo que assistiu in loco. Mas foram mais. E ainda rolaram umas duas olimpíadas.
O lançamento foi momentoso, véspera da Copa no Brasil. Eu só vim a lê-lo agora, na véspera de uma outra Copa, a do Qatar. De lá para cá, muito camelo atravessou o deserto. Seu texto, porém, é tão atual quanto o jornal que entregaram aqui em casa hoje de manhã.
Grande Nelsinho. Foi a todas, escutou de tudo e escreve muito.
Eu não fui a nenhuma e, pior, estou no estaleiro. Mas não reclamo. Desfruto da companhia (metafórica) de grandes craques lesionados, como Pogba, Lo Celso, Benzema e agora o Neymar.
Assim, de molho, me restam (oba!), ler e assistir (todos) os jogos da Copa. Que chato, ehm?
Como o prazer do ócio não se resume à telinha, pincei - entre outros livros para ler com a mão esquerda - este "Resenha". Boa escolha. Acompanhando as aventuras do jornalista desde 1966, na Copa da Inglaterra, ampliei minhas memórias músico-boêmio-esportivas e matei a saudade de jogos que vi, jogados em estádios em que não fui.
Já o Nelsinho estava lá, bebeu todas e comeu bem, ainda que quanto ao próprio cardápio ele se mantenha reservado. Mas deixa escapar estrepulias doutrém.
"Após a final consagradora", segreda Nelsinho sobre o tri, "numa festa de celebração da vitória na suíte presidencial de um dos hotéis mais chiques da Ciudad del Mexico, vi várias grã-finas cariocas disputando para ver quem dava para Jairzinho e Paulo Cézar Caju".
Dá-lhe Furacão. O tricolor, órfão de craques antológicos, se rendeu ao poder de fogo do ataque botafoguense. Mas parou por aí. "Não se sabe quem comeu quem", escanteia. Não tinha VAR.
Dezesseis anos depois, mais uma vez no México, Nelsinho testemunhou outra grande sacanagem à brasileira. No jogo Brasil x Espanha, o árbitro anulou um gol legítimo dos espanhóis e validou um gol ilegal do Brasil. O latrocínio foi para a primeira página dos jornais de Madri.
"Árbitro derrotou a Espanha - Havelange, o jogador número 12". Jean-Marie Faustin Goedefroid Havelange, o único sujeito que eu conheço que é ex-nome de estádio.
Os brazucas foram celebrar a vitória injusta bebendo. Para você fazer ideia de quanto os bares mexicanos demoravam para atender a clientela, o escritor João Ubaldo subiu na mesa e propôs a importação de garçons baianos.
Segundo o Nelsinho, lá, quando o garçom respondia "ahorita", era coisa de 45 minutos.
A putaria tupiniquim na Copa era federada. "A cartolagem brasileira, presente com suas acompanhantes", revelava o jornalista, "é tida como a nata do lixo nacional".
Sexo e futebol foram pauta também na Copa seguinte, na Itália. Motta registrou o texto da escritora Mariella Alberni, no La Notte:
"Se o blecaute de Nova York fez explodir o número de bebês nascidos nove meses depois, a Copa do Mundo seguramente incrementa de modo notável a quantidade de cornuti entre os esportivíssimos maridos e namorados italianos".
Eu, ehm. Que autora desabrida.
Nelson admite que o jornalista na Copa é um torcedor disfarçado de bóia fria. "A verdade é que viemos aqui para torcer e nossos textos são pretextos, apenas um preço que se paga pelo privilégio do testemunho".
Um trabalho sofrido. "Na manhã da partida decisiva, depois de uma noite mal dormida, enfrento o suplício dos suplícios, compartilhado por tantos colegas desesperados de ânsia e desinteressados de tudo que não seja o jogo: escrever minha crônica dos ansiados acontecimentos". Nelsinho gemia e balbuciava: "Pobres leitores."
Nesta Copa de 90, o pesadelo finalizou com o passe de Maradona para o arremate de Caniggia.
O jornalista criou um alter ego, um colega italiano comuna, pela boca de quem fez uma releitura da nossa epopéia recente.
"O velho comuna acha, com razão e sem gozação, que pelo menos tudo foi muito coerente em nossa derrocada. E fez a crônica da derrota anunciada: a moratória, o cruzado, o fisiologismo desvairado da era sarneysiana, a desmoralização das instituições, o desvario collorido."
Reproduzi o trecho para a gente constatar, no presente, que, no passado, o Brasil já era isso que se vê agora. A diferença é que as novas gerações aprimoraram o que já era muito ruim. Aí ficou pior.
Melhor é que ganhamos a Copa seguinte, nos Estados Unidos, em 1994. Aos trancos e barrancos, segundo o jornalista, e brilhantemente, segundo a mídia mundial. Após a magra vitória de 1x0 sobre os norte-americanos, Motta se queixa.
"Ganhamos o jogo, tá tudo muito bom, tá tudo muito bem, mas venhamos e convenhamos, tem alguma coisa esquisita, muito esquisita nessas duas seleções brasileiras: a que a gente vê jogar e a que o resto do mundo diz que está jogando."
Nestas horas todo brasileiro é botafoguense. Geral mergulha na nostalgia dos craques do passado, das conquistas das copas de 1958, 1962 e 1970. Mas quem vive de passado é museu.
"A que a gente vê não empolga, não emociona, é defensiva, amarrada, medíocre e, não fosse pelos gols de vitoriosos e alguns brilhos individuais de Romário e Bebeto, quase nunca desperta orgulho e paixão". Nelson contrapõe que "essa outra seleção que os estrangeiros vêem jogar é considerada a melhor da Copa".
Motta deu os números. "Entre 50 jornalistas estrangeiros de primeiro time, nada menos que 46 acham o Brasil o melhor time". Segundo o jornalista, os gringos chamavam aquela seleção do Parreira de "dream team".
Bem, vendo pelo lado positivo, em 2022 não difere tanto assim. Somos os favoritos da mídia. Vamos ver se vai dar bom.
Sem dúvida, deu bom na épica trajetória do Nelsinho Motta copas afora. Se em Sevilha, na Copa da Espanha, ele e Fagner rodaram madrugada afora atrás de Paco de Lucia e Camarón de la Isla (em vão), em Londres botou os pulmões pra fora do peito, e cantou com a brasileirada dentro do tube, o metrô londrino.
"Tristeza, por favor vá embora, minha alma que chora..."
Sem contar que fez coro com a torcida canarinho em Mendoza, na Copa da Argentina, entoando "hei, hei, hei, Jorge Mendonça é o nosso rei". O que, convenhamos, não dá pra orgulhar ninguém.
Escapou desta copa de agora, dos sheiks e petrodólares, sem mulheres nem bebidas, mas ainda assim trouxe à tona uma viagem do passado à região desértica.
"Durante uma excursão da seleção brasileira pela Europa, depois de 10 dias áridos na Arábia Saudita, o time e mais de 100 jornalistas desembarcaram felizes em Hamburgo", se assanhou o escritor. "Álcool, mulheres e música - exatamente tudo que não havia em Jidá".
O relato não parou por aí. "Porno shops, cinemas, mulheres na vitrine, o pessoal foi endoidando. Sauna mista. Todo mundo nu". Atente que estávamos na década de 70. "Na sauna, entre belas louras e alguns companheiros, o intrépido radialista Beltrão Júnior procurava aparentar naturalidade".
"Era uma sauna família", explica o Nelson, "com casais, pais, liberais, nus e naturais". Certo momento, "uma simpática avozinha pede a Beltrão que lhe passe um creme hidratante nas costas". O gentil radialista "percorre com a mão durante alguns segundos aquela superfície alva e roliça e de repente ejacula incontrolavelmente nas costas da frau".
Eu não consigo nem imaginar este momento assaz viril do nosso jornalismo. Diz Nelsinho que Beltrão ganhou a alcunha de "O Monstro de Hamburgo". Se non é vero, e ben trovato.
Em todo lugar jornalista, Nelsinho escreveu. Nem sempre é fácil como parece.
"Sozinho de novo no quarto, retomo a escrita", diz, confessando que "leio e releio varias vezes, à procura de passagens que possam me comprometer e envergonhar depois". Agonia solitária de quem escreve, seja para um milhão, seja para si mesmo.
Via de regra, o euzinho mesmo é mais crítico do que os outros 999.999.
Não obstante, graças ao que pôs no papel, pôde fazer esse copia-e-cola d'antanho pra faturar um qualquer no mercado editorial do terceiro milênio. Justo e meritório. Um bom registro.
Bem, "bom registro" é pouco. Porque, de boa, que vida teve esse Nelsinho Motta. Coadjuvante do auge de talentos siderais de um dos países mais musicais do mundo, o cara se divertiu em quase uma dúzia de Copas do Mundo e foi escriba de todas elas. Que dizer? Mermão, tirou onda.
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