"Memórias de um partizan", por Shmerke Kaczerginsky
Eis mais uma relíquia resgatada das profundezas do meu sebo particular: o depoimento de um judeu lituano que escapa do Gueto de Vilnius e se torna um guerrilheiro. Um partisan.
Esta minha edição da Biblos, de 1963, é composta de vários textos, e dois deles foram inicialmente publicados em 1947. Encontrei também edições em hebraico datadas de 1948.
Meu exemplar tem capa dura e folhas enceradas - foi impresso em papel couché, um luxo da época. É pequeno e pesado. Um tijolinho. Uma fita isolante, adesivada pelo dono original do livro há muitos anos, envolve toda a lombada. O procedimento evitou que as folhas, costuradas nos vãos centrais com linha branca, se rasgassem sob o próprio peso.
Ou seja, tive que lê-lo com muito cuidado. Mas não só por estas razões.
O espécime remendado pertenceu a Felipe Mayer, meu tio. Feito soldado, lutou pelo Brasil na Segunda Guerra Mundial. Uma participação dolorosa, que lhe legou sequelas físicas e emocionais. Suas memórias pessoais da Itália foram para sempre um pesadelo, do qual evitava falar.
Assim, o pouco que sei dele na guerra foi minha mãe quem me contou.
Para minha sorte, tio Felipe escolheu vir passar seus últimos anos em Petrópolis, em uma casa simples na rua Barão do Rio Branco, na curva do rio, com sua esposa Gunnar e cercado por milhares de livros (mais três cães estropiados e dezenas de gatos).
Guri, herdei dele uma pequena parte da sua biblioteca, talvez uns cem livros (o Exército veio antes e levou todos que quis, entre os quais muitas obras de tática militar). Quanto aos que pude pegar, tenho TODOS até hoje. Herdei dele também o gosto por suco de tomate, ainda que não seu apreço pelo chimarrão e nem - ainda bem - sua paixão pelos fedorentos cigarros de palha.
As anotações elegantes na caligrafia de meu tio se distribuem pela borda das páginas e também na página final. Outra mania que herdei dele. Guardei também deste velho combatente gaúcho (chimango? maragato?) duas caricaturas, uma entalhada em madeira (que fica no meu escritório) e outra emoldurada (que fica no meu estúdio, nome charmoso pro quartos dos fundos).
Foi bom ter feito este inventário, pois nem eu lembrava que tinha ainda tanta coisa dele - que partiu há tanto tempo, em meados da década de 70. Passo sempre pela casinha que ele fez cercar de estantes de metal. Eram prateleiras sem nenhum requinte, estas triviais de montar, típicas das repartições antigas. Requintados eram seus livros.
A casa ficou por muito tempo abandonada, com portas e janelas se deteriorando e tomada pelo mato. Há coisa de uns dois anos, foi restaurada, pintada de cinza com detalhes brancos, e posta à venda. Ficou decente, mas não parece casa. Cercada por câmeras, chuto que pertence à alguma empresa.
Não tenho nem como mensurar o quanto aprendi com ele e com os livros que ele me deixou.
Ops, reminiscências fora, vamos à resenha? Voltando um pouco no tempo da estória, relembro que este livro oferece a narrativa de um escritor e ativista judeu lituano, integrante de grupos comunistas fora-da-lei, cujos poemas revolucionários fizeram bastante sucesso na Polônia dos anos 30. Como repórter, contribuía também para um diário comunista de Nova York, o Morgn-frayhayt.
Com a ocupação soviética da Lituânia, Kaczerginsky pôde temporariamente se dedicar à cultura judaica, sua paixão. A invasão alemã de 1941, contudo, confinou todos os judeus em um gueto. Corajoso, arriscou-se a viver livre. Na clandestinidade, por um ano e meio se fez passar por surdo-mudo, para enganar os nazistas. Depois, porém, cansado de viver disfarçado no lado ariano, preferiu assumir sua identidade judia e ir viver no gueto, onde aderiu aos grupos de resistência.
"Dentro do gueto cercado, nós nos sentíamos como feras enjauladas", conta. "A cidade era estranha para nós. Pior ainda. Salvo pequeno número de poloneses, lituanos e russos, grande parte da população não-judia ajudava os nazis e até praticava assassínios e saques".
"Fugi das matanças no gueto. Tentei refugiar-me em casa de poloneses e lituanos conhecidos", explica. "Dormia ao relento, na geada, na neve, debaixo de escadas. Aborrecendo-me desta vida de cachorro, resolvi retornar ao gueto", reconhecendo que "só ali me sentia em liberdade".
Percalços semelhantes enfrentou quando, após a posterior fuga do gueto, antes da sua destruição, rumou para a floresta, para se unir à guerrilha.
"A ideia que fazíamos de nossa vida no bosque era diferente", revela. "A lenda verde começou a dissipar-se desde a hora em que nos tornamos seus heróis". Após semanas de trilhas, se escondendo durante o dia e se movimentando somente à noite, encontraram os focos da guerrilha, que os ameaçava. Conclui, assim, que "tal como gueto, estávamos sozinhos - sozinhos em plena selva".
É esta estória que Shmerke nos traz. Estruturado de forma linear, mas episódica, conta de suas atividades no gueto e sua fuga para integrar as tropas guerrilheiras, escondidas nos bosques lituanos. Pena que sua narrativa é picotada, no ritmo da própria emoção e dos movimentos que observa em torno, e não nos permite uma visão mais completa
Ainda assim, é um depoimento vibrante e uma leitura dolorosa, repleta de sofrimento e morte, que nos revela as tentativas de engajamento judeu no combate às forças nazistas de ocupação.
O fato é que os judeus que lograram fugir do gueto e foram viver um heroico ideal guerrilheiro junto aos grupos locais de resistência não eram bem recebidos. Os russos, maliciosamente, recebiam os judeus que se candidatavam ao alistamento com o fito de roubar seus pertences e eventuais armas, para em seguida mandá-los embora.
Os lituanos eram piores. Roubavam para depois matar.
Então era difícil para um judeu conseguir ser aceito em um destacamento para lutar contra os nazistas, como revela Kaczerginsky.
"A metade dos judeus que alcançaram os bosques foram exterminados no primeiro ano. Todos os perseguiam: os alemães, a polícia e, não raro, os camponeses desmoralizados das aldeias vizinhas, que enriqueceram às custas das casas judaicas abandonadas" (meu tio Felipe escreveu, à lápis, em 1965, em letra de forma: "Canalhas", e eu agora, em 2022, aduzi, "sim, tio! canalhas!")
Alguns judeus conseguiram, entretanto, ser aceitos em um destacamento, e o autor foi um deles. Melhor ainda que, após um período atuando na linha de frente das operações, foi requisitado por um comandante para, com seus dotes de escritor, registrar a história guerrilheira.
Nasciam aí os primeiros textos do livro. Kaczerginsky teve por missão ir de destacamento em destacamento para historiar as ações presentes e passadas, conhecer personagens e descrevê-los. Anotar em seu diário as batalhas e confrontos que faziam parte do cotidiano da guerrilha. Comentar euforicamente - nem um pouco politicamente correto para os dias de hoje - a morte de alemães, lituanos associados a eles e camponeses que denunciavam guerrilheiros.
Os lituanos formam um capítulo à parte. A princípio, toda a Lituânia aderiu ao nazismo e trabalhou como força auxiliar da Wehrmacht, contra os judeus, letões, estonianos e russos. Para o autor eram todos inimigos, pois mesmo os raros bolsões de resistência lituana ao invasor eram devotadamente antissemitas. Mas, à medida em que a maré da guerra ia virando, mais e mais lituanos se tornavam simpáticos aos russos.
Os destacamentos guerrilheiros denominados lituanos, porém, eram formados basicamente por judeus lituanos, como o autor - porque, como frisei, os lituanos eram mais dados a se subordinarem aos nazistas do que a combatê-los.
"Guerrilheiros lituanos não apareciam nos bosques", diz o partisan. "Os lituanos preferiam servir o alemão e lutar contra os guerrilheiros". Pior, "enriqueceram-se nas carnificinas de judeus".
Se o conterrâneo podia ser hostil, o clima podia ser camarada. O inverno era um aliado dos guerrilheiros, ainda que um aliado cruel. "Com as fortes geadas, é mais seguro desempenhar um encargo", pois "o inimigo jaz então escondido nas trincheiras ou nos postos de guarda, aquecendo-se". Só que os guerrilheiros "gelam os membros (nariz, ouvidos, pés) e a pele das mãos rompe-se, segurando os trilhos para por o dinamite, a fim de fazer voar pelos ares um comboio inimigo".
Se as pegadas deixadas na neve revelam o percurso dos guerrilheiros, por outro lado a neve fofa permite que as carroças deslizem silenciosamente em trenós e os caminhos sejam encurtados cruzando rios e lagos congelados.
Curioso (e revelador) é o trecho em que Shmerke, comunista convicto, estranha que um colega de ação, Kostetchko, criado em um kolkhoz soviético (uma granja coletiva comunista), comumente passasse fome, antes da guerra. Lembremo-nos que o texto é de 1944, e o idealismo comunista é parte da identidade judaica. Ainda assim, ele registra com honestidade o relato do amigo russo (ou ucraniano, nem o próprio sabia, nascera no tal kolkhoz e de lá nunca saíra).
"A terra pertence aos lavradores, mas a produção pertence ao governo", explica. "Cada granja coletiva deve entregar ao poder não apenas certa percentagem senão a produção toda". Continua dizendo que "é previamente planejado a espécie de semente que o kolkhoz deve semear. O mesmo plano prevê a quantidade de centeio, beterrabas e batatas que o solo é capaz de produzir".
Kaczerginsky reconhece que não sabia nada da vida dos moradores de uma granja coletiva comunista. Gentilmente ele a descreve para nós.
"A remuneração percebe-se de acordo com as horas de trabalho coletivo durante o mês. Acontece que nem todos são capazes de fazer tantas horas de trabalho, quanto é necessário para obter farinha e batatas suficientes para si e para pessoas da família que não trabalham (crianças e velhos). Além disso, há ainda o fato de dificuldades climatéricas, a safra não atingir o previsto no plano (muitos kolkhozes não possuem tratores e continuam com o sistema primitivo de trabalho, como antigamente). Embora a colheita seja muito menor que o previsto, deve-se fornecer ao governo a mesma quantidade que foi previamente determinada".
Transcrevi este longo trecho porque não é comum encontrarmos um texto quase contemporâneo da grande fome ucraniana, quando o regime soviético provocou a morte de mais de 5 milhões de ucranianos, por inanição ou assassinato. Os camponeses e fazendeiros eram obrigados a entregar toda a sua produção ao governo, não podendo guardar nada para alimentarem a si mesmos, já que o mínimo estipulado jamais era atingido.
E o total nunca era atingido porque não havia meios para isso. "Aonde arranjá-lo?", se pergunta o autor. Como o instinto de sobrevivência é natural do ser humano, os camponeses tentavam esconder uma mínima parte da produção para consumo próprio e eram mortos quando descobertos - o que era frequente.
Um outro ponto de pertinência histórica que o texto de Kaczerginsky arranha é o conflito existente entre duas forças que combatiam o nazismo, mas que, contraditoriamente (ao nosso olhar contemporâneo), combatiam também entre si: as forças russas - às quais pertenciam os guerrilheiros russos e lituanos - e os guerrilheiros poloneses do Armja Krajowa.
Disse "arranha" porque é um único parágrafo, perdido dentro da narrativa do autor. Mas valioso, porque dá a visão interna de como as heroicas forças polonesas eram vistas - absurdamente, considerando a guerra em andamento - como inimigas pelos combatentes soviéticos.
"Verifico, por exemplo, que nada contei a respeito da campanha que movem contra nós os guerrilheiros poloneses, sob as ordens do governo londrino, chefiado pelo general Sikorski", repara o escritor. "Verdade é que bem poucos encontros houve entre nós até agora, mas desgostos causaram-nos bastante, e não são poucos os guerrilheiros nossos que pereceram vitimados por eles".
Contextualizando, embora ambos lutassem contra Hitler, Stalin não queria que uma Polônia politicamente forte emergisse da Segunda Guerra Mundial. As feridas da guerra russo-polonesa de duas décadas antes ainda não tinham cicatrizado. Por isso o Exército Vermelho estancou às margens do Vístula e deixou os guerrilheiros poloneses serem trucidados pela Wehrmacht.
Mas estas foram outras guerras, tanto a russo-polonesa de 1920, como o massacre comunista pós-45. Falamos aqui da menor das guerras, dos ataques clandestinos, às escondidas, um contra mil.
Muitas vezes é difícil para nós, na posteridade, avaliarmos o impacto que as modestas ações de guerrilha pudessem ter no espectro geral da guerra. Um balanço das ações do grupo de Kaczerginsky auxilia para que possamos melhor dimensionar que contribuição davam os partisans.
"Em 10 meses de ação", escreveu o autor, "contamos 51 comboios dinamitados; 109 vagões com munições e soldados destruídos; 2 pontes férreas explodidas; 1 usina elétrica destruída; 1 usina carbonífera aniquilada; além de incontáveis redes telegráficas e telefônicas derrubadas". Isto, sem contar as centenas de soldados alemães mortos, "incluindo um coronel e um tenente-coronel com 3 condecorações no peito".
Os alemães tanto sofriam com os ataques da guerrilha que publicavam continuamente nos jornais locais condenações de morte a qualquer cidadão que não denunciasse a presença de guerrilheiros. Não adiantava de muito, porém.
Kaczerginsky se dedicou à sua tarefa, mas tinha noção de quão limitada era a cobertura que fazia do combate partisan, espraiado pela vastidão russa. "Minhas notícias abrangem tão somente uma pequena parte da vida guerrilheira, que se estende através de milhares de quilômetros, nos bosques, nos pântanos e, posteriormente, também nas pequenas cidades, vilas e aldeias".
À medida em que o conflito avançava, os alemães iam devolvendo o terreno conquistado. Para os camponeses russos, a guerra termina em meados de 1944, com a expulsão dos nazistas. Os guerrilheiros tentam então se integrarem às forças regulares do Exército Vermelho.
Aos poucos a retomada de território se aproxima da terra natal de Shmerke, Vilnius. As cidades no caminho estão em ruínas. Menos de um ano antes fugira dali, para não morrer na mão dos nazistas. Agora os inimigos estão mortos pelo chão.
"Uma porção deles jaz furada de balas nas ruas, nas casas", testemunha o autor. "Olhos os cadáveres com repugnância. Recordo-me de suas crueldades e lamento terem encontrado morte tão fácil".
Voltou para sua cidade, mas não havia mais nada que significasse "casa" para ele lá. Soube que nos últimos dias "os assassinos chegaram a liquidar os derradeiros dois mil judeus dos campos de concentração". Os bairros estavam em ruínas. O esconderijo onde deixara textos, obras de arte e peças sacras do judaísmo havia sido violado.
Shmerke não teve para onde voltar. No pós-guerra, obstinado com a herança cultural do seu povo, criou o primeiro museu europeu dedicado ao Holocausto. Sua paixão ideológica pelo comunismo, porém, não resistiu à ideologia posta em prática. Se tornou um sionista e migrou para Paris, depois para Israel.
Em Tel Aviv recebeu a missão de chefiar a missão cultural judaica em Buenos Aires, para onde foi com a família. Orador ativo, era hostilizado pelos argentinos pelo seu passado comunista.
Certa noite, em 1954, após uma palestra em Mendoza, se recusou a dormir no local e resolveu pegar um vôo para Buenos Aires. O avião da Aerolinhas Argentinas caiu logo após decolar, matando todos a bordo.
O judeu que lutou na planície soviética - e que nazistas, russos, lituanos, ucranianos, poloneses e letões não conseguiram matar - veio morrer na América do Sul, nas mãos de um argentino.
Edições Biblos, 422 páginas | 1a edição, 1963 | Tradução S Baruch
Obs.: Ainda que o título traga a grafia "partizan", com "z", no meu texto respeitei a grafia moderna da palavra, grafando-a com "s".
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