"Os nazistas e a Solução Final", por Mark Roseman
Durante alguns meses, com os milhares de mortos diários pela pandemia no Brasil - país onde morreram 10% de todas as vítimas de Covid-19 no mundo -, o noticiário produziu uma quantidade incalculável de conteúdo referente àquilo que foi reiteradamente denominado como "genocídio".
Talvez, porém, esta não fosse a palavra exata para definir o que houve aqui. Morticínio turbinado? Assassinato por estupidez? Foi tudo tão absurdo, que seria necessário inventar novas palavras.
Já o "Protocolo de Wannsee" (em referência ao termo alemão para ata - "protokoll") foi o mais perto que os nazistas chegaram de consignar por escrito seu plano de genocídio. O plano orquestrou o assassinato organizado de seis milhões de judeus. A ideia era exterminar uma "raça".
Não obstante, embora tenha mobilizado centenas de alemães apenas na cadeia de comando, o regime evitava por no papel os seus objetivos de extinção de um povo inteiro. Ninguém queria se incriminar; muito menos Hitler. Todos os envolvidos sabiam que a ação era inconfessável.
Daí a importância de um olhar mais demorado sobre a Conferência de Wannsee, realizada em 20 de janeiro de 1942, na periferia de Berlim. A reunião, convocada pelo chefe da Gestapo, o SS Obergruppenführer Reinhard Hendrych, visava - prioritariamente - delimitar esferas de poder.
Em português claro, Heydrich (que viria, alguns meses depois, a morrer vítima de um atentado em Praga) convocou a reunião para não deixar dúvidas sobre quem hierarquicamente dava as cartas na questão judaica. Era ele.
Como tema secundário, estava também em pauta a resolução de pendências burocráticas, basicamente quanto às definições raciais dos casamentos mistos (aqueles onde um dos cônjuges é judeu e o outro ariano).
Esta questão era, no geral, menor, mas conceitualmente intrincada. Precisavam deliberar sobre as muitas possibilidades de interpretação técnica de cada um dos vínculos mistos - misschling -, e quem era judeu de segunda e terceira geração, meio judeu, um quarto judeu, se os filhos eram ou não judeus, se os judeus mistos tinham cara de judeu et cetera.
De fato, a reunião se resumiu a estes dois temas. A versão que passou para a História - de que esta conferência teria sido uma discussão coletiva, onde um grupo de participantes teria debatido métodos e objetivos, e, ao fim, optado por uma solução final para a questão judaica - simplesmente não procede.
A bem da verdade, a referida solução, que nada mais seria do que o assassinato da população de origem judia, já vinha sendo posta em prática, sob o comando de Heydrich, há meses. Ainda que houvesse pormenores logísticos a resolver, a discussão específica sobre limites e mecanismos ocupou um espaço periférico na reunião.
Foi, acima de tudo, um encontro para sancionar formalmente a liderança de Heydrich sobre a operação. A partir da reunião, restava claro que as ordens seriam emitidas por ele e encaminhadas por seu assecla Obersturmbannführer Adolf Eichmann, uma espécie de gerente geral.
Funcionalmente, as atribuições do gerente geral - um alto oficial da SS - eram a identificação racial em cada local, a extorsão individual, a convocação coletiva e o transporte para eliminação.
Nos termos da ata, cabia à Eichmann "tomar todas as providências necessárias para a emigração dos judeus e dirigir o fluxo de emigração". Cada um dos muitos setores com judeus a eliminar deveria se subordinar à sua orientação.
Naturalmente, o protocolo evitou o registro literal do objetivo da discussão. Como todos sabemos, assassinato de civis indefesos é crime. Se o grupo assassinado é composto de homens, mulheres e crianças e monta a centenas de milhares, tecnicamente é genocídio. E todos os militares e funcionários nazistas presentes sabiam que crimes são previstos em lei - mesmo nas internacionais - e que, quando descobertos, demandam prisão, julgamento e punição.
Então, esperar algo como uma confissão, assinada pelo oficialato nazista, seria uma ingenuidade.
Além de Heydrich e Eichmann, mais treze oficiais de alta patente participavam da reunião macabra. Meyer, Leibbrandt, Stuckart, Neumann, Freisler, Bühler, Luther, Klopfer, Kritzinger, Hofmann, Müller, Schöngarth e Lange. Não obstante, os treze formaram mais uma plateia do que uma assembleia.
O autor não dá margem a dúvida. "A Conferência de Wannsee é portanto uma espécie de buraco de fechadura através do qual podemos vislumbrar o surgimento da Solução Final em emergência. Ocorreu num momento em que a ideia de uma reserva fora abandonada, a escassez de mão-de-obra era urgente, e em que os nazistas podem ou não ter decidido exatamente como eliminar todos os judeus. Mas é evidente que Wannsee não foi o lugar onde as decisões assassinas foram tomadas. No geral, Heydrich estava disseminando conclusões tiradas alhures. Sobre certas questões os participantes tinham alguma coisa a dizer; quanto à maior parte, seu papel era ouvir e assentir."
A ata da reunião estipula na abertura em seus dois primeiros itens: a) a expulsão dos judeus de todas as esferas de vida do povo alemão; b) a expulsão dos judeus do espaço de vida do povo alemão.
O número de judeus a expulsar do Reich crescera à medida em que a máquina de guerra ia anexando novos países e territórios. O protocolo mencionava que "537.000 judeus foram enviados para fora do país entre a tomada do poder e o prazo final de 31 de outubro de 1941; destes, 360.00 estavam na Alemanha propriamente dita em 30/1/1933, 147.00 estavam na Áustria (Ostmark) em 15/3/1938 e 30.000 estavam no Protetorado da Boêmia e Morávia em 15/3/1939".
Mas já estavam devidamente contabilizados os judeus existentes nos demais países, sejam países já conquistados ou países por conquistar.
A ata estimava que "aproximadamente onze milhões de judeus serão envolvidos na Solução Final da questão judaica europeia". O maior número deles estava na Rússia, com uma população judaica estimada em cinco milhões de pessoas, no Governo Geral (denominação para o território antes chamado de "Polônia"), com 2.284.000 udeus, e na Ucrânia, com três milhões de judeus.
A Solução Final para estes judeus já estava definida: iriam para o "leste". Um código para extermínio. Naquele momento, a forma que viria a ser considerada a ideal para condução do genocídio (o gás) estava em teste. O governo nazista ainda procurava a forma mais rápida, prática e barata.
À época, o formato de morte por asfixia nas câmaras de gás ainda era uma possibilidade em desenvolvimento (viria a ser considerado o mais eficaz e replicado em todos os campos de extermínio, como Auschwitz, Sobibor, Treblinka, Maidanek, etc). No entanto, se o documento utilizava de forma ainda vaga a expressão "para o leste", nas entrelinhas já estava claro que o destino "leste" não comportava a possibilidade de sobrevivência dos "emigrantes". Seu texto dizia assim:
"No curso da Solução Final e sob comando apropriado, os judeus deveriam ser postos para trabalhar no leste. Em grandes colunas de operários de um único sexo, os judeus aptos para o trabalho avançarão para o leste construindo estradas. Sem dúvida a grande maioria será eliminada por causas naturais."
Uma das "causas naturais" de maior incidência era o tiro na cabeça dos que paravam de andar.
O protocolo de Wannsee fazia uma previsão para os que não tivessem sido "naturalmente" eliminados: "E sem dúvida qualquer remanescente final que sobreviva consistirá dos elementos mais resistentes. Será preciso lidar com eles apropriadamente, porque do contrário, por seleção natural, formariam a célula germinal de um novo renascimento judaico."
Para que não reste dúvida, mais uma vez vale destacar o constante uso dos códigos e eufemismos. "Lidar com eles apropriadamente" partia da premissa de que os sobreviventes seriam os judeus que se provaram mais fortes. Para eles teria que ser implementada uma solução "apropriada".
A logística já estava determinada: "Os judeus evacuados serão mandados primeiro, em estágios, para os chamados guetos de trânsito, de onde serão transportados para o leste."
Ao fim, o principal objetivo da reunião tinha ficado claro. O processo de evacuação tinha um dono, Heydrich, e um executivo, Eichmann. Já o propósito acessório, que pregava sobre os casamentos mistos, demandou muito mais tempo e debate - ainda que se restringisse, ao cabo de tudo, a alguns milhares de vítimas contra os onze milhões que não teriam escapatória.
Houve coquetéis e canapés.
Sob os olhos da posteridade, Wannsee se tornou um símbolo da formalização do extermínio. Mesmo que não tenha deliberado sobre o que já estava em curso e não tivesse determinado a dinâmica que logo se seguiria, virou a marca da decisão. Vale a pena destacar este parágrafo de Roseman:
"Ainda que em si não tenha sido decisiva, Wannsee continua sendo um momento poderosamente simbólico. Aquelas não eram as hordas bárbaras de algum povo primitivo, invadindo fronteiras aos borbotões e chacinando todos os que encontravam em seu caminho. Ali havia o ambiente distinto de uma villa elegante num subúrbio refinado, numa das capitais mais sofisticadas da Europa. Ali havia quinze burocratas educados, civilizados, de uma sociedade educada, civilizada, observando todo o devido decoro. E ali havia genocídio sendo aprovado por unanimidade."
O título original é ótimo - a villa, o lago, a reunião - e realça a indigência da edição brasileira, que opta por um título óbvio e chama, no subtítulo, o encontro de "conspiração". Ignorância ostensiva do corpo técnico da editora, pois não havia conspiração, tratava-se de uma reunião oficial do regime no poder. Era crime, mas era um ato de Estado.
Certamente porão a culpa pela lambança no estagiário.
E não só: como o próprio livro se esforça em esclarecer, Wannsee não foi a gradação do assassinato em massa para o genocídio. Nada ali foi deliberado nesse sentido. O assassinato em massa já estava em curso e ele, em si, já era o genocídio, tanto no objeto como em escala.
Se as poucas linhas da capa são ruins, a ilustração conseguiu ser pior.
Difícil ilustrar um conteúdo como este - mas a capa de Sergio Campante, que reproduzo acima, é de uma infelicidade atroz. Traz em primeiro plano a enorme sola de uma bota, chapeada com suásticas. Pela inclinação da bota, poderia simbolizar uma marcha ou uma ação de esmagamento.
O que se esmaga com o pé são insetos. Então poderíamos imaginar a metáfora da grande bota nazista esmagando os insetos judeus. Se não foi isto que o designer procurou demonstrar, alguém na editora deveria ter tido sensibilidade para perceber e vetar.
No mais, a capa é borrada, de alto a baixo, pela estampa em perspectiva de uma suástica vazada.
A edição em meu poder é de 2003, e foi impressa pela Jorge Zahar Editor. O texto de Mark Roseman é correto e sem sombra de leveza. Talvez fosse o que melhor servisse ao estudo e divulgação do documento. O protocolo em si é publicado na íntegra, ao fim do volume.
O documento foi localizado por oficiais norte-americanos quase dois anos após a guerra, perdido dentro de uma pasta do Ministério das Relações Exteriores, sob o carimbo "Geheime Reichssache" (assunto secreto do Reich). Não fosse o carimbo talvez sequer tivesse despertado interesse.
A cópia, numerada como a décima-sexta de um total de trinta, permanece até hoje como sendo a única encontrada.
Jorge Zahar Editor, 165 páginas (1a edição) 2003 | Tradução Maria Luiza Borges | Copyright 2002
Título original: "The Villa, the Lake, the Meeting"
P.S.: Na ilustração do post reproduzo a capa da edição brasileira, ao centro, e, à direita, a capa da edição em inglês. Coloquei à esquerda a imagem da villa em Wannsee.
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