"Kaputt", por Curzio Malaparte
Um livro singular. Um testemunho mórbido das atrocidades do regime nazista, narrado em primeira pessoa por um oficial italiano, em viagem como correspondente de guerra pelo Leste Europeu. Era o início da década de 40.
O oficial em questão nada tinha de inocente. Escritor, jornalista, apoiador de Mussolini e do fascismo desde a primeira hora, tinha livre trânsito em meio às altas patentes do poder - de generais a governadores. O alto status dos seus anfitriões fez com que boa parte da narrativa transcorresse em jantares e coquetéis. Mas o pano-de-fundo do cenário é a terra arrasada da guerra.
Curzio Malaparte - mais que narrador, personagem -, era o exótico pseudônimo por trás do qual vivia Kurt Erich Suckert, nascido em Prato, na Toscana, em 1898. Seu texto denuncia de forma irônica e melíflua os sangrentos crimes de guerra no continente europeu ocupado pelos alemães.
Suas descrições são sempre enevoadas, um misto de crítica (enfatiza ele) e cumplicidade (reputo eu) com os algozes, debochando de forma enviesada dos assassinos que são seus anfitriões. Sua cruzada solitária atravessa Finlândia, Polônia, Ucrânia, Rússia, Romênia, Suécia, Iugoslávia e Itália.
Seus chistes dirigidos ao todo poderoso Hans Frank, Generalgouverneur da Polônia ocupada (à direita, na foto que ilustra o post), em um jantar de gala na sede do governo, ou mesmo em outras ocasiões com o mesmo charlatão, são divertidos, mas nem sempre convincentes - por isso não me sinto confortável em tomá-los ao pé da letra.
Boa parte da sua prosa habita o terreno do realismo fantástico, onde fatos e personagens reais protagonizam cenas improváveis. Como quando ele, Curzio, passeia pela noite de Helsinque, a uma da madrugada, a uma temperatura de 45 graus negativos, na companhia do embaixador espanhol, Conde De Foxá, e um alce ferido vem do porto, atravessa a praça e tomba na escadaria do palácio.
Na cena, o presidente da Finlândia, Ristu Ryti, é acordado e vai acudir o alce ferido, se ajoelhando na neve. A situação se torna ainda mais insólita quando, em meio à noite congelante, diplomatas de diversos países (até do Brasil, pasme) cruzam a praça para comporem a plateia.
Muitas outras pessoas foram se somando ao quadro composto pelo alce, pelo presidente e pela multidão de diplomatas estrangeiros - 45 graus negativos não eram nada -, incluindo soldados, marinheiros, policiais e duas moças levemente embriagadas.
"Era uma cena singular e gentil: a praça coberta de neve, as casas azuladas e espectrais, os navios aprisionados na crosta de gelo e aquele grupo de pessoas, em ricos casacos de pele, ao redor de um alce ferido, deitado à porta de um palácio entre duas sentinelas. Uma cena que encantaria um daqueles pintores suecos ou franceses, como Schjöldebrand ou o visconde de Beaumont".
Malaparte era todo o tempo cínico, e nem sempre são desvendáveis as nuances políticas e metafóricas do seu texto. Mas certamente elas se prestam a todo tipo de interpretação - todas as quinhentas páginas do livro tem um quê fantasmagórico e teatral.
Seu texto vai do melancólico ao mórbido, do ilusório à violência. E pode acrescentar aí o absurdo histriônico, como quando o autor vai a uma sauna finlandesa - e chamo de sauna finlandesa porque estavam na Finlândia e foram a uma sauna - e encontra Himmler (à esquerda, na foto acima) pelado.
Curzio é pouco generoso com o alemão. Ainda que descreva o saco de Himmler de forma poética - se é que isso é possível -, o relato que faz dos demais oficiais alemães pelados, chicoteando as costas e a bunda de Himmler com suas varas de bétula, não cai bem para um dos prediletos de Hitler.
Em outra cena, o autor encontra um jovem nobre alemão, Friedrich Windich-Graetz, em uma pequena hospedaria. Estão muito distante de qualquer front. Ele descreve a situação.
"Quem está diante de mim é um velho, não é mais o jovem Friki de Roma, de Florença e do Forte del Marmi", inicia, jogando com a idade do rapaz; a imagem que desenha é puro Malaparte. "Vejo-o erguer o copo, mover os lábios para dizer 'nuha', jogar a cabeça para trás e beber e, naquele gesto, os graciosos ossos do rosto se mostram à flor da pele, o crânio está esbranquiçado sob os cabelos ralos, a pele morta da testa reluz suavemente. Ele também está perdendo os cabelos, os dentes balançam moles na boca. Por trás das orelhas de cera encurva-se a nuca delgada e delicada de menino doente, sua frágil nuca de velho. Tremem-lhe as mãos ao pousar o copo na mesa. Friki está com vinte e cinco anos e já tem a expressão misteriosa dos mortos."
Em seguida entabula uma inusitada conversação, primeiro sobre o irmão de Friki, morto, mas que o jovem pensava vivo, ainda que o imaginasse morto, e depois sobre a Itália. Começa então a perguntar da corte italiana e também da Condessa Ciano, filha de Mussolini. Malaparte não se faz de rogado:
"Oh, Friki", responde o oficial italiano, "estão na putaria". E reitera: "Todos estão na putaria. O papa, o rei, Mussolini, nossos amados príncipes, os cardeais, os generais", enumera, "todos estão na putaria na Itália".
"Sempre foi assim na Itália", concorda um resignado Friedrich.
Mais à frente, Curzio Malaparte fala dos salmões finlandeses e dos generais alemães. Conta do general de cavalaria teutão que represou um trecho do rio para pegar um salmão e convocou um batalhão para ajudar no serviço. Seu ajudante de campo é quem relata a cena.
"Faz alguns dias - disse Georg Bandasch - que o general Von Heunert está fora de si. Não consegue pegar um salmão. Toda a estratégia dos generais alemães é impotente contra os salmões."
O general foi puxado e humilhado pelo salmão. Como represália, o salmão foi executado com um tiro na cabeça.
Malaparte conta do seu bate-papo com Bandasch. Falavam das poltronas revestidas de pele humana (pele de judeu, claro) e Bandasch cuspiu no chão. "Esse gesto de cuspir no chão não é muito adequado ao ajudante de campo de um general alemão de cavalaria", reconheceu, "mas tenho minhas razões para fazer isso".
"Às vezes parecia cuspir em todos os generais alemães", revela o narrador. "Embora mostrasse prudência na fala, não me parecia sentir muita estima por Hitler e todos os seus generais. Entre o general Von Heunert e os salmões da Lapônia, ele estava do lado dos salmões".
"Mas, no fundo", salienta Curzio, "como todos os alemães, juízes ou não, obedecia aos generais. O problema de todos os salmões da Europa é este: que até os alemães estão do lado dos salmões, mas obedecem aos generais".
Ao fim, salmões e poltronas à parte, após um longo périplo por uma Europa devastada, Malaparte retorna à pátria. Em Roma, ele nos revela sua surpreendente (para mim) proximidade com Galleazzo Ciano, o genro de Mussolini. Pelo texto, vi que uma amizade antiga os unia.
Quer dizer então que o Ciano, o famoso representante do Duce para a política externa italiana - um misto de ambição e esperteza vagabunda -, que frequentava o gabinete dos maiorais do Eixo e falava pela Itália, era velho amigo de bebida e mulheres do escritor.
Provável que esta amizade fosse pública, à época, na velha Bota. Mas para os leitores de sete décadas depois, do outro lado do planeta, eu entre eles, e já depois de quatrocentas páginas, era uma baita novidade. Aí compreendi melhor a facilidade com que Curzio circulava entre os salões dos poderosos Europa afora.
Nos convescotes de Roma, enfim, sua terra natal, ele questiona a participação italiana na guerra. Talvez ele exerça suas dúvidas com um certo atraso.
Porque após a publicação do livro, e nos anos vindouros, os estudiosos é que viriam a questionar a participação do autor na guerra. Seu livro é crítico do Eixo, mas foi publicado em meados de 1944 (ainda que questionavelmente datado de dezembro de 1943), com a guerra já perdida.
Enquanto a guerra ia bem para os alemães, porém - é o que dizem -, Malaparte se manteve um fascista engajado. Mas talvez denigram a imagem dele sem razão. Não sei quem está certo.
Isto, entretanto, tem interesse relativo para nós, tantos anos depois. Vale mais nos debruçarmos sobre a obra e desfrutar dos seus muitos predicados. O escritor tinha pretensões literárias, como fica claro em suas últimas páginas, em parágrafos floreados sobre uma Nápoles miserável, imunda, infernal, celestial.
Dizer que este é um bom livro, ou não, dependerá muito dos objetivos do leitor. Para quem quer um texto elegante e mordaz, ambientado em palacetes e repleto de deboches e diálogos venais em idioma estrangeiro (alemão, italiano, romeno, francês, finlandês, sueco, espanhol e inglês), "Kaputt" é um espécime e tanto. Mas talvez quem privilegie este gênero de habilidade torça o nariz para o tema em si. Muito fedor e excesso de cadáveres.
Já quem enveredar pelos capítulos do livro (todos com nomes de bichos, cavalos, ratos, moscas) em busca do grande momento histórico, pode ser que se decepcione. O correspondente de guerra Curzio Malaparte circula pelo mundano, pelo abjeto, pelo decadente. Interessante, sem dúvida; mas é uma narrativa demasiado distante do front, em meio a um continente soçobrado.
Quem não se incomode, porém, com a farta presença de defuntos ou com a extensa ausência de fatos, pode se fascinar com este texto que tem endereço na periferia da Segunda Guerra Mundial.
Como se um insólito guia de turismo, um dândi fleugmático, nos conduzisse por trincheiras, ruínas e cemitérios, empurrando delicadamente com o pé mutilados em agonia e flertando com donzelas desgraçadas.
Como eu dizia, "Kaputt" - que quer dizer "acabado" - é um livro singular.
Editora Alfaguara, 508 páginas | 1a edição (2021) | Tradução Federico Carotti | Copyright 2009
Título original: "Kaputt"
P.S.: Duas rápidas observações quanto à capa: 1) Nem de longe o livro é "essencial" para a compreensão humana da guerra, seu trunfo é outro; 2) A foto de capa é tirada no Gueto de Varsóvia, presente en passant pelo texto. Mas os salões e recepções do Reich ecoam mais fidedignamente o texto de Malaparte.
0 comentários: