"LTI - a linguagem do Terceiro Reich", por Victor Klemperer
"A linguagem do Terceiro Reich" é um livro técnico e um registro histórico. Mas me interessei por ele sobretudo porque já conhecia o texto do autor, responsável por uma narrativa seminal.
Estes cadernos só chegaram ao conhecimento público meio século após o fim da guerra. Seu surgimento - atente que não é deles que trato aqui - subsidiou a reimpressão de um outro texto de Klemperer, o qual precisou apenas esperar a derrota nazista para ser editado: este LTI que tenho em mãos, publicado originalmente em 1947.
Mas isto foi depois da guerra. Antes, Victor Klemperer, seu autor, era um estudioso do idioma alemão e professor titular da respeitada Universidade de Dresden. Longe de ser um professor qualquer, era reputado como um dos favoritos para assumir o cargo de reitor, no início dos anos 30.
A chegada dos nazistas ao poder, porém, em janeiro de 1933, significou a implantação do Estado Racial e os judeus foram alijados gradativamente da sociedade e das suas posições profissionais. Subordinados a uma sucessão de leis excludentes, ilegais e violentas, foram presos, expropriados, deportados e mortos. Victor Klemperer foi uma rara exceção: ele logrou manter uma parcela ínfima da sua cidadania, por ser casado com uma ariana e por não terem filhos.
A condição sui-generis de um casamento misto estéril entre um judeu alemão e uma ariana alemã permitiu que ele sobrevivesse, ainda que com enormes e humilhantes restrições, até o fim de 1944, quando sequer sua situação peculiar seria capaz de continuar a protegê-lo. Ironicamente, foi "salvo" pelo bombardeio de Dresden, ocorrido no dia marcado para sua apresentação à polícia local.
Ou, como dizem os judeus sobreviventes, Victor salvou-se por uma "falha do sistema".
Um comentário mais profundo sobre os diários que escreveu, um relato fenomenal, eu vou deixar para um outro post - vamos nos deter, desta vez, sobre o pequeno manual que ele diligentemente organizou sobre a linguagem empregada pelo governo nazista em seus doze anos de dominação.
Filólogo de renome internacional, estudioso do alemão e do francês, com diversos livros publicados, Klemperer tinha as credenciais certas para fazer o trabalho. Mesmo que a matéria-prima lhe fosse negada (em sendo judeu, não poderia possuir livros, comprar jornais, circular pela cidade, ouvir rádio etc), ele a buscava de segunda mão.
Sorte que a esposa lhe trazia algum material impresso, e Victor, sempre atento, procurava escutar as notícias sintonizadas pela vizinhança ariana - uma ou outra migalha de informação sempre lhe caía no colo.
E, fora a comunicação midiática, havia sempre a conversação, que constantemente lhe atualizava sobre o que vinha sendo acrescentado ao idioma cotidiano. Como, muito antes da guerra, a primeira palavra que identificou como de viés nazista, Strafexpedition (expedição punitiva). Um amigo ariano deu este nome a uma surra de cassetetes aplicada em um grupo comunista.
"Strafexpedition condensava tudo que podia encarnar arrogância, violência e desprezo contra pessoas diferentes", explica Klemperer. "Soava tão colonial que era possível visualizar uma aldeia africana e ouvir o estalido do chicote de couro de hipopótamo."
A nova ordem ariana estava chegando e já era perceptível pelo linguajar. Aliás, a seleção das imagens em peças oficiais antigas, como o hino do soldado - Siegreich woll'n wir Frankreich schlagen, Russland und die ganze Welt (Vitoriosos, queremos acabar com a França, com a Rússia e com o mundo todo) -, já caracteriza bem a predisposição atavicamente enraizada na sociedade alemã.
Já nos primeiros meses do governo nazista, Victor acusou o uso exagerado da palavra Volk (povo), com a criação dos neologismos Volksfest (festa popular), Volksgenosse (concidadão, compatriota, conterrâneo), Volksgemeinschaft (comunidade do povo), Volksfremd (estranho ao povo), Volksnah (próximo do povo), Volksentstammt (provindo do povo) e outras semelhantes.
Esta constante obsessão dos governantes por termos ligados a "povo" deixa claro que estratégias políticas de viés populista jamais são novidade - em qualquer tempo e lugar.
Em paralelo, o autor constata que a ciência e a linguagem foram expurgadas de qualquer componente judaico - o nome de Einstein desapareceu dos cursos de física, e a unidade de frequência, o hertz, não podia mais ser designada com este nome judeu.
(Não obstante, o físico judeu alemão Heinrich Rudolf Hertz, por suas descobertas no estudo do eletromagnetismo, permanece até hoje designando a unidade de frequência das ondas eletromagnéticas.)
Algumas palavras tinham mais gabarito que outras. Como frisa Klemperer, na "LTI tudo é historisch (histórico), einmalig (único) e ewig (eterno)". Mesmo entre elas há certa hierarquia. "Podemos considerar que ewig ocupa o mais alto grau da longa escada de superlativos nazistas", aponta o autor, dando como exemplo uma pegadinha comum na conclusão de cursos.
"Was kommt nach dem Dritten Reich? (o que vem depois do Terceiro Reich?). Se um ingênuo ou um novato respondesse das vierte Reich (o Quarto Reich), era eliminado, mesmo que possuísse bons conhecimentos técnicos. A resposta correta era: Nichts kommt dahinter, das Dritte Reich ist das ewige Reich der Deustchen (Nada, pois o Terceiro Reich é o eterno Reich dos alemães).
Certas frases - poderosas e reveladoras - ficaram gravadas para sempre na memória do autor, que, judeu, as ouviu demais - Du bist nitchs, und ich bin alles! (Tu não és nada e eu sou tudo!).
Particularmente, dando o meu pitaco, não sei quem é nada, mas não há dúvida de que linguagem é tudo. Sem dúvida, serve para instruir; e serve também para enganar.
Porque há quem pense, vendo a enxurrada de fake news que entulham hoje as redes sociais - fazendo delas o paraíso dos idiotas, com narrativas estapafúrdias e inverossímeis arrebanhando milhões de crentes -, que a manipulação das massas é coisa recente. Nada mais ingênuo. A credulidade humana sempre deu que nem banana.
Klemperer cita Adolf Spammer, chefe do Reich para o folclore, em 1933: "Se fosse possível (naquele tempo ele ainda considerava que essa era uma hipótese irrealizável) impor uma linha única a toda a imprensa e a todo o sistema de ensino, de modo a reiterar que a Guerra Mundial de 1914-1918 nunca aconteceu, em três anos todos acreditariam que ela de fato nunca existiu".
Sem a menor sombra de dúvida. Tudo é passível de crença pela massa, A Grande Maioria.
"Durante o período em que fui professor em Nápoles", recorda-se Victor, "quantas vezes ouvi dizer de tal ou qual jornal è pagato (é pago), ou seja, mente para agradar a quem o controla. No dia seguinte, as mesmas pessoas que tinham gritado Pagato! acreditavam de pés juntos em outras mentiras publicadas no mesmo jornal. Por quê? Porque eram publicadas com letras graúdas e outras pessoas acreditavam nelas."
Testemunhava diariamente a força da propaganda, ainda que ela propagasse o inacreditável.
"É certo que a bravata e a mentira acabam se sufocando e sendo reconhecidas como tais; no final, para muitos, a propaganda de Goebbels havia se tornado uma bobagem ineficaz", acredita. Mas ressalta que "também é certo que a propaganda, mesmo quando reconhecida como mentira e bravata, continua a surtir efeito, desde que se tenha o descaramento e a cara dura de sustentá-la de maneira imperturbável".
Sobre o ministro da propaganda do Reich, Klemperer conclui que "talvez Goebbels fosse mais esperto do que eu estava disposto a aceitar. A bobagem ineficaz talvez não fosse nem tão boba nem tão ineficaz."
Convém destacar, contudo, que era uma propaganda muitas vezes de fôlego curto, atropelada pela história. Logo após o atentado a Hitler em 20 de julho de 1944, Goebbels escreveu que "somente alguns velhotes remanescentes dos tempos ancestrais podiam duvidar de que o nazismo é não somente a maior, mas a única possibilidade de salvação do povo alemão".
Desesperada afirmação que não chegou a completar um ano antes que Goebbels se matasse.
Outro figurão do regime, o ministro Alfred Rosenberg, um chatíssimo teórico do arianismo, chamava o bombardeio das cidades alemãs, segundo Klemperer, de "a maior crise da civilização ocidental". Enfatizava que "temos de desempenhar o nosso Auftrag (papel) histórico" e que "nossas cidades em chamas são tochas no caminho da realização de um mundo melhor".
Esqueceu de mencionar melhor para quem (certamente sim para o autor, pois foi justamente o bombardeio americano sobre Dresden que permitiu sua fuga ao destino seguinte, a câmara de gás).
Já o führer empregava uma linguagem menos estilosa e mais virulenta. O autor destaca um trecho de um discurso no rádio que ele escutou no inverno de 1942 para 1943 - onde Hitler diz que "os ministros das potências inimigas eram Schafsköpfe (imbecis) e Nullen (nulidades), que era impossível distinguir uns dos outros, que a Casa Branca era governada por um Geisteskranker (doente mental) e Londres, por um Verbrecher (criminoso)".
Com base nos documentários de época, que mostram os comícios nazistas, dá bem para imaginar Hitler se sacudindo e cuspindo em todas as direções, escandindo seus Geisteskranker e Verbrecher.
Sobre si mesmo, diz Klemperer, Hitler se denominou "um guerreiro resoluto, portador dos dotes necessários para ser o Führer de seu povo" (nunca é demais lembrar, digo eu, que o guerreiro resoluto só deu um tiro em toda a guerra - um tiro na própria cabeça, depois de semanas escondido em uma toca de concreto).
Outra ferramenta constante para a qual ele chama a atenção eram os recorrentes eufemismos, uma forma sofisticada de amenizar as más notícias. Por exemplo, a bem conhecida "retirada", um termo técnico para fuga organizada, ganhou um nome pomposo (e para nós absolutamente impronunciável):
"A LTI ganha uma expressão nova", identifica Klemperer, "que começa a aparecer constantemente: beweglicher Verteidigungskrieg (guerra de defesa em movimento)".
Mas nada é mais saboroso do que a reprodução do discurso popular. Eu vez por outra escuto algumas pérolas, entreouvidas aqui e ali, que sinto remorsos de não registrar. Klemperer registrava. Uma delas se passou dentro de um abrigo, durante um ataque aéreo. Um veterinário tentava acalmar a população amedrontada, contando que "novas armas estavam chegando e estariam em uso a partir de abril".
"O avião de um só lugar é muito mais eficiente que o V2", assegurava. Afirmava ainda que o novo avião "derrubará as esquadrilhas de bombardeiros". E explicava como: "Ele voa a uma velocidade fantástica e por isso só atira para trás, pois é mais rápido que o próprio tiro".
Pois é. Vendo no que acredita o populacho e sua eterna devoção ao "me engana que eu gosto", não tenho como não transportar a ingenuidade d'antanho aos dias que vivemos. Estamos até hoje ouvindo dos nossos políticos que eles possuem o tiro único que vai resolver tudo - decerto com eles de um lado do gatilho, discursando, e o povaréu do outro, escutando.
Nessa história do tiro, quem dispara e quem é alvejado você já sabe quem é.
Mas tergiverso (perdão, não resisti). Já o livro é bom. Naturalmente, o conhecimento do alemão - que eu não tenho - permitirá ao leitor culto um ganho muito maior com a leitura das observações de Klemperer. Paciência. Tive que me limitar à percepção do traduzido.
Vale trazer a definição de Franz Rosenzweig, "a linguagem é mais do que o sangue!", mencionada pelo autor. A frase demonstra a convicção que o compartilhamento de uma língua comum irmana mais seus concidadãos do que uma hereditariedade sanguínea.
E ostenta a contradição com a qual Klemperer jamais se conformou (me atrevo eu em supor): como poderiam aquelas bestas selvagens se tomarem por mais alemães do que ele, em quem o idioma alemão respirava?
Victor Klemperer, considerado por Peter Gay o melhor escritor de diários em língua alemã, recebeu postumamente o prêmio de literatura alemã Geschwister Scholl, em 1995, pelo conjunto da sua obra.
Segundo o escritor Martin Walser, "nenhuma outra comunicação transmite de maneira mais clara a verdade sobre a ditadura nacional-socialista do que a prosa de Victor Klemperer".
Reproduzo também Steven Aschheim: "Klemperer é o analista mais arguto da linguagem totalitária."
Fato é que poucos talentos conseguiram escapar à fria metodologia assassina dos regimes totalitários. Por sorte, alguns conseguiram e mostraram do que os regimes tinham tanto medo.
Editora Contraponto, 424 páginas (1a edição) 2009 | Tradução Miriam Oelsner | Copyright 2002
Título original: "LTI: Notizbuch eines Philologen"
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