"O crime do cais do Valongo", por Eliana Alves Cruz

quarta-feira, julho 07, 2021 Sidney Puterman


Por uma questão matemática, um país que pouco lê tem uma produção rarefeita de bons escritores. Por temperamento, não nos falta celebração, mas, na boca do funil, falta o que celebrar. Os prêmios e eventos que infestam a atividade são um parâmetro enganoso. 

Isto posto, "O crime" de Cruz é revelação promissora. Seu texto se respalda em notícias de época para criar ficção. O que poderia ser ingênuo se apresenta com sutileza e reticência. São ingredientes escassos na ficção nacional, manejados por uma autora com pouco apreço por firulas e clichês.

O que já chama a atenção. 

Com uma estrutura bem arquitetada, onde cada um tem lugar e a narrativa tem rumo, Cruz dribla a afetação. Enfeita pouco. Se sua obra não é exuberante, sobra, na comparação com seus contemporâneos. O que já vale a leitura, o elogio e algum entusiasmo.

A narração, em primeira pessoa, alterna entre dois personagens: a cada capítulo, um deles conta como vê a estória. Os relatos vão e vem no tempo e no espaço, no qual os dois ocupam ângulos opostos. A escrava e o bastardo, a reta e o dúbio, a engajada e o oportunista. Se desejam a mesma coisa - a morte do morto -, são diferentes no demais.

E o morto, o abastado comerciante Bernardo Lourenço Viana, é quem abre o livro. Entra em cena já estripado no cais do Valongo. A circunstância desconfortável não faz do defunto menos protagonista. Dissertado em flashback, na maior parte do livro o morto é vivo. É ele a vítima do crime. 

A trama é desenrolada de forma marota, onde os narradores deslizam do fatalismo místico da africana à irreverência inconsequente do mestiço. É concatenação primária, mas bem costurada, que a autora, por mérito e esperteza, sequer levou muito a sério. Como também tratou com leveza das suas fantasias assombradas, com um dedo na prosa mágica sul-americana.

Os personagens foram desenhados de forma econômica. Cruz pesou um pouco a mão no elenco branco feminino, restrito às duas mulheres do barão comerciante: uma velha malvada e uma novinha dadeira. Diante da soberba e da futilidade dessas duas, a altivez ficou toda em poder das fêmeas negras.

O caráter forte e dominante das escravas denuncia a época em que o texto foi concebido.

Muana Lomué tem a vida desfiada desde o Namuli Apalis, na Àfrica, ao Andarahí Grande, na Zona Norte carioca. Nascida livre no interior do continente, ela é a portadora do ethos negro. Já Nuno Moutinho, pardo filho de português com ex-escrava, com foros de branco e laivos de macunaíma, é o atavismo carioca - e, como Jorge Ben século e meio depois, tinha uma nega chamada Tereza.

Tereza Nagô, a empreendedora, obstinada pelo trabalho com o qual compraria sua alforria, é traída pela sinhá branca. Aliás, não há nenhum branco que preste, à exceção do inglês John Toole. Os brasileiros não-escravos são todos da pior raça. Sintomático.

Nuno não era uma coisa nem outra, e o caráter idem. Vivia mais chegado às pretas, mas era à custa dos brancos que enviezadamente ganhava a vida, como se percebe nesta provinha apetitosa do texto de Eliana Alves Cruz: "Ele era um importante e nobre fidalgo e eu, um pobre mazombo amulatado. No entanto, todos os esnobes precisam de um descanso de si mesmos e este encontrou em mim um alívio da pose que precisava manter".

Bom, né? bem, eu achei.

Há uma pequena barriga na parte africana do enredo, cujo lirismo destoa da prosa mais seca do restante da narrativa. Não compromete o todo - uma pesquisa bem feita pela escritora resultou quase sempre num desenrolar verossímil. Tudo soa razoável.

Jimbanda, muluku, nakano, marave, maculo, chibando - a terminologia africana inunda as páginas, mas não passa da conta, fica nela.

Em termos históricos, houve talvez uma certa romantização sobre as incursões europeias no interior do continente. Via de regra, os brancos bordejavam o litoral e não se atreviam a se afastar dos portos. Aguardavam ali que os senhores negros do local trouxessem negros cativos.

Gente viva acorrentada era a principal commodity africana.

Não foram os brancos que inventaram isso, ressalto. Os brancos se aproveitaram do prato pronto e sua demanda, crescente e ininterrupta, aqueceu o mercado da caça, cativeiro e venda de gente.

Diz a autora que "caravanas de homens akuya (brancos) e também vários macuas-lomués do litoral entravam cada vez mais fundo no território atrás de gente". Talvez os akuya fossem mais cautelosos do que supõe Cruz e se mantivessem a salvo de emboscadas e sequestros, permanecendo nas cidades portuárias, onde seus navios lhes davam uma cobertura segura.

A captura e venda do negro pelo negro é um calo na narrativa identitária e dói no sapato apertado do politicamente correto. Mas a vantagem da História é acumular conhecimento, disponível para quem saiba encontrá-lo e interpretá-lo. Ou até mesmo romanceá-lo.

Interessantes as referências às vacinas rudimentares utilizadas para proteger a população escrava, se valendo de trapos ou toques na ferida dos contaminados pela bexiga, incluindo uma guerra pela vacina - hoje a gente sabe bem como é isso. Detalhe é que o livro foi impresso em 2018, quase dois anos antes da Covid-19 chegar aqui. Reclama a personagem que os brancos são privilegiados e os negros preteridos, na escala da vacinação.

Houvesse em Brasília alguns leitores de Eliana e talvez pudesse ter ocorrido a alguém que essa tal de vacina é objeto de consumo do povo há mais de século - e investir no discurso anti-vacina não ia colar. É isso que dá não ler. 

Bola fora é o excesso de typings, ou erros de digitação, uma negligência reiterada que não tem justificativa cabível. Alguém tem que revisar as provas do livro antes de mandá-lo para a gráfica (temos Bernanrdo, precispitasse, aldeida, ensimamentos, chamvam, depóito e Sheakspeare). Alô, Malê. Presta atenção no serviço.

No mais, não vou contar o que acontece, nem deixar vazar um spoilerzinho que seja. Compre o livro e aproveite. 

A ficção de Alves Cruz é uma boa surpresa.

Editora Malê, 196 páginas


Sidney Puterman

Some say he’s half man half fish, others say he’s more of a seventy/thirty split. Either way he’s a fishy bastard.

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