"Todo aquele imenso mar de liberdade", por Carlos Marchi

sexta-feira, junho 25, 2021 Sidney Puterman


Neste 25 de junho, fosse vivo e vacinado, uma lenda do jornalismo brasileiro completaria 101 anos. 

Conhecido carinhosamente pelos íntimos e por leitores - também candidatos a íntimos - pelo simpático diminutivo "Castelinho", Carlos Castello Branco prossegue como referência atemporal do nosso jornalismo político. Vinte e oito anos após sua morte, e com pouco mais de um metro e meio, ele permanece a régua. 

"Este é o sucessor do Castelinho", diz-se, não raro, quando se quer elogiar um colunista político.

Com a precisão do seu texto e com a qualidade das suas fontes, imprimiu uma linha narrativa cheia de nuances a um gênero pesado. Elegante, mas avesso a concessões, já ao fim da carreira pairava unânime e ranzinza entre colegas e autoridades. Só relaxava quando bebia - o que fazia com gosto.

Quando sóbrio, era sempre introvertido, em casa ou no trabalho. Exibia o tipo mal-humorado, nem que fosse para afastar os chatos. Certa vez, perguntado por um amigo da filha o que achava de determinado fato, resmungou: "Sou pago para achar e só acho por escrito". 

Sabia manter certa distância, o que aumentava a aura ao seu redor. Seu status de sumidade. Quem o imaginava, porém, um articulista ungido com a proximidade com o poder, não fazia ideia da sua circunstância. Havia subido alguns degraus encerados até chegar ali.

É este itinerário que Carlos Marchi tem a generosidade de apresentar a nós, leitores. E, ao fazê-lo, surpreende. Porque quem acompanhava o velho colunista sabia, no todo ou em parte, da sua passagem por redações de Minas, Rio e Brasília; e testemunhou, ao menos como fã, ou aprendiz, sua cátedra de colunismo político. Mas o Castelinho assessor de Presidente da República, presidente de sindicato e vítima da ditadura assassina era ignorado pela maioria dos hoje viventes.

Em nome deles, agradeço.

E, se Carlos Castello Branco foi tudo isso, culminando por envergar o fardão da Academia Brasileira de Letras (honra desdenhada por quem não é imortal, inclusive por ele mesmo), ele não queria ser nada disso. Como vemos na biografia escrita por Marchi, Castelinho queria mesmo era ser escritor.

E, tal e qual narra o biógrafo, um sonho que começou distante e que deu em nada.

Vindo da lonjura daquele que Juca Chaves troçava ser o objeto do livro mais fino do mundo - "Quem é quem no Piauí" -, Castelinho, sempre cauteloso, refutou Rio e São Paulo como destinos da sua migração. Escolheu a mais pacata e provinciana Belo Horizonte. Bem a sua cara.

Pequenininho, cabeçudo e sem pescoço, o bichinho era feio de doer, convenhamos. Mas o espelho não o poupou da gafe que cometeu na plateia de uma solenidade em que discursava o então coronel e futuro presidente Humberto Castello Branco - um primo distante a quem não conhecia e também baixinho, cabeçudo (ainda mais) e sem pescoço (menos ainda). Castelinho comentou sobre o coronel com a moça ao lado, que pensara ser uma recepcionista do evento:

"Mas que sujeito feio, sô". 

O problema é que "a moça ao lado" era uma prima desconhecida, irmã do primo, que o olhou de alto (força de expressão) a baixo, não passou recibo e o dedurou ao irmão. Que situação. Por fim, constrangedor, mas não um problema. O futuro presidente do golpe militar de 64 fez pouco da opinião do primo. Era um cearense vaidoso e confiante. Se achava bonito.

Como diz a piada, a coruja-mãe, ao procurar suas corujinhas roubadas, indagava: "Alguém viu uns filhotinhos lindos passando por aqui?" 

Mas, à parte os chistes diversos, há que se estabelecer, de início, que ler a biografia de Castelinho é sair em caravana por meio século de Brasil. Bem acomodado, com um uisquinho na mão para os chegados (à Castello, que, como dito acima, não tolerava o convívio social de garganta seca), a leitura nos permite visitar a política brasileira, do Estado Novo ao governo Collor, com estreita proximidade dos governos militares e do período Sarney, e de um quase concubinato com o governo Jânio.

A propósito, muita gente que conhece o Castello desconhece seu cargo palaciano no curto governo do estrambótico professor do Mato Grosso. E que Castelinho assistiu de camarote o desenrolar das "razões ocultas" que levaram Jânio a renunciar. Você sabia? Pois é. Já, já retomo o assunto.

Por isso e muito mais - Fernando Sabino, Paulo Mendes Campos, os Ottos, Lara Resende e Maria Carpeaux, Hélio Pellegrino, os Andrades, Mario e Oswald, Samuel Wainer, os Carlos, Drummond e Lacerda, Glauber, Guevara, Vinicius, Henfil, Brizola etc (tá bom ou quer mais?) -, a edição "Todo aquele imenso mar de liberdade" é uma lombada de dar orgulho a qualquer estante que se preze.

Leitura substanciosa para quem quer se aprofundar no conhecimento desse país picaresco.

E, portanto, pelo excesso de substância, vou me ater aqui a alguns poucos pontos, frente às incontáveis passagens desencavadas pelo autor. Sua "origem" na turma de Beagá, seu emprego em Brasília e a perda abrupta e suspeita do filho primogênito me parecem os fatos menos conhecidos da sua trajetória. Os outros quinhentos você acha no livro.

Por conta da convivência diária e camarada com a turma de Minas citada acima, Castelinho era meio um D'Artagnan, o quarto mosqueteiro. Sempre um pouco à parte, por piauiense e por não ter tido sucesso como escritor, virou jornalista enquanto via os amigos fazendo sucesso na literatura.

"Eu não me sentia identificado com o jornalismo, tinha aspiração de ser escritor, pela convivência com aquele grupo mineiro. Lia muita literatura, passei a ter uma certa aspiração literária, de me realizar literariamente", confessou.

Não que não tivesse tentado; além dos versos que cometeu em Minas, Castello escreveu em 1952 os "Continhos brasileiros", que, destaca Marchi, eram ostensivamente influenciados pelo estilo de Machado de Assis. Os amigos elogiaram bastante, mas o livro encalhou.

Sete anos depois, o escritor que havia nele voltou à carga, com a novela-romance "Arco de triunfo" (hoje por R$ 5,00 no Sebo Sapolândia), um tanto quanto autobiográfico, narrando a trajetória de um jovem nordestino que vem para o Sul, bancado pelo pai, e se torna jornalista, cercado pela política, em relação à qual tenta não se deixar levar. 

"Escrevi uns contos, uns romances, mas continuei sempre muito vinculado ao jornal. Quando verifiquei, numa certa altura da vida, aos quarenta anos, eu não era escritor, era jornalista. Aí aceitei a situação."

Para os "antigos" - eu e a maior parte da galera vacinada -, Castelinho sempre foi sinônimo de jornalismo político. Difícil imaginá-lo como romancista ou, pior, com sala no Palácio do Planalto. Pois foi o que se passou. Ele, já um profissional de renome , foi convidado para assumir a assessoria de imprensa do presidente recém-eleito Jânio Quadros.

Vale aqui um preâmbulo: os dois se conheceram na primeira metade da década de 50. Jânio vinha em ascensão. Em 1947, tinha obtido ralos 1.707 votos na tentativa de se tornar vereador; conseguiu uma mera suplência; mas a cassação de 15 candidatos comunistas lhe abriu uma vaga na Câmara paulista. Três anos depois, saiu para deputado estadual, e obteve dez vezes mais votos, o que lhe deu confiança para, em 1953, se candidatar a prefeito de São Paulo. 

Foi aí que ele e Castelinho se encontraram pela primeira vez, para uma entrevista. A matéria feita para O Cruzeiro foi trivial e nem de longe previu o resultado da eleição. Embora praticamente sem apoio político, e enfrentando uma máquina eleitoral que ia de Getúlio a Adhemar de Barros, Jânio conquistou 65,8% dos votos, contra meros 26,6% do candidato do governo.

Com apenas um ano no cargo de prefeito, largou a prefeitura para enfrentar Adhemar pelo governo do estado. Ganhou. No ano seguinte, tentou para presidente e perdeu para JK. Em 1958, já sem o mandato de governador, elegeu-se deputado pelo Paraná. Em 1960 se candidatou mais uma vez a presidente, desta feita apoiado por um largo espectro de partidos, incluindo um grupo de jovens parlamentares, arrojados, mais à esquerda. Entre eles, José Sarney ("Ideologia-a-a, eu quero uma pra viver" viria a cantar Cazuza, muitos anos depois, com Sarney presidente do Brasil).

Na condição de repórter de O Cruzeiro, Castello acompanhou toda a campanha, viajando com o candidato e assistindo aos comícios. Jânio tinha por símbolo uma vassoura, que varreria a corrupção. Se dizia também um político que lutava contra o sistema e adotou o slogan A campanha do tostão contra o milhão (frase surrupiada do chileno Ibañez del Campo, oito anos antes).

O jingle já dá uma boa ideia do approach: "O homem da vassoura vem aí/ já sei para onde vou com a família/ eu só queria, eu só queria/ ver o homem da vassoura em Brasília/ ai, como eu ia me dar bem/ nunca mais eu dependia de ninguém/ ai, vai ficar tudo legal/ em Brasília vai ter outro carnaval."

Com uma plataforma dessas, o eleitor brasileiro não decepcionaria. "Se dar bem" é com a gente mesmo. Deu Jânio, com 48,3% dos votos, seguido por Lott, com 32,9%, e Adhemar, com 19,5%.

Castelinho, que convivera com Jânio durante toda a campanha, foi convidado, no dia da posse, para assumir a secretaria de Imprensa do governo. Fez doce, esperneou, disse que não, afirmou que era jornalista e não político, que não gostava de Brasília, etc. Acabou com o nome publicado no Diário Oficial, como assessor do governo. 

Resignou-se. E, na medida do possível, aprendeu. Castello, muito mais acostumado a observar à distância do que a estar no centro dos acontecimentos, tomou consciência do que antes não sabia:

"Na medida em que entrei no governo, percebi melhor quem é que manda, quem é que não manda. De fora, a gente tem a impressão de que quem está no palácio é quem manda, mas não manda não. Têm duas pessoas que mandam, o resto é figurinha, não manda nada. Pode ser ministro, não tem nenhuma importância, tem duas ou três pessoas que mandam."

Familiar. Como também soa contemporânea essa outra avaliação, feita há décadas:

"Sua política externa foi arquitetada pelo próprio presidente, sem o rigor dos planejamentos ancorados numa estratégia nacional, era uma coletânea empírica e caótica de palpites arquivados em sua mente. Suas ideias tinham o aparente objetivo de servir o país, mas tudo indica que serviria mais ao seu projeto pessoal."

Tem horas que a gente não sabe se o Brasil é um país ou uma sina.

Apesar de Castelinho estar no epicentro do governo, a disritmia do estilo Jânio Quadros era à prova de compreensão. Um governo que não houve e que acabou antes de começar. Na sua curta duração - não chegou a oito meses -, Castelinho não conseguiu produzir nada e ficou à mercê da agenda (ou falta dela) de um presidente errático, que se imiscuía em detalhes desimportantes e era displicente quanto aos problemas reais.

Nem Castelinho, nem ninguém, sabia ainda que o sprint de Jânio Quadros era de tiro curto.

Muitos anos depois, vendo os fatos em retrospectiva, Castello lembrou dos diversos convites feitos a amigos, políticos e outros profissionais para virem integrar o governo. O curioso é que Jânio, para persuadir seus interlocutores recalcitrantes, por diversas vezes frisou: "Vai ser apenas por seis meses". Sintomático. Ressalto que o próprio Castelinho foi convencido assim. 

Embora a renúncia tivesse pego todos de calças na mão, Marchi relata que Castelinho testemunhou uma ligação entre Jânio e o chanceler Afonso Arinos em 24 de agosto de 1961, véspera da renúncia, em que o presidente pergunta: "Ministro, onde estará Jango hoje?" Arinos apurou o paradeiro do vice e retornou: "Hong-Kong". O único comentário de Jânio foi um irônico "longe, não é?"

Menos de uma semana antes, Lacerda visitara Jânio no Palácio para pressioná-lo. Jânio, aparentemente, cedeu. Mas, dias depois, Lacerda percebeu que fora enganado e resolveu dar uma entrevista à TV, no dia 24, com denúncias pesadas contra o presidente - incluindo a acusação de que Jânio tramava um golpe com a decretação do estado de emergência e o fechamento do Congresso. 

No dia seguinte - o fatídico 25 de agosto -, Jânio acordou antes das cinco da manhã, foi para o palácio, chamou os auxiliares e comunicou que iria renunciar. Houve uma romaria de assessores para tentar demovê-lo. Os generais também compareceram. Nada o fez reconsiderar:

"Meus amigos, poupem-nos esses constrangimentos, quando nada em homenagem ao meu gesto. Minha decisão é definitiva."

O fim do governo Jânio foi também o fim da carreira pública de Castelinho, que nunca mais largou sua bancada de jornalista. Fatigado (ele cansava fácil...), requisitou seis meses de dolce far niente e depois reassumiu seu lugar em O Cruzeiro. A partir de então, como conta com aplombe o biógrafo, Castello ganhou cada vez mais relevância. Seu texto, sua abordagem e suas fontes fizeram dele um analista à parte, na visão dos seus colegas, dos políticos e dos leitores.

Durante os governos militares, foi um dos poucos jornalistas respeitados nos salões do Poder - embora esse tal respeito não o tivesse poupado da maior dor da sua vida.

A morte do filho Rodrigo, seu primogênito, narrada no capítulo que abre o livro, é até hoje cercada de mistério e suspeita. O acidente de carro que o matou pode ter sido mais um assassinato do regime. A dúvida corroeu e amargurou Castelinho até o último dos seus dias.

Difícil intuir a motivação. Nada do que Castello escrevia era bombástico. Pelo contrário, seus parágrafos eram cercados de anteparos de algodão, estopa e cortiça. Mas era cirúrgico. Nas entrelinhas, ele ia com a pinça no ponto nevrálgico. Para bom entendedor, pingo é letra.

A transcrição de dezenas de trechos das suas colunas deixa evidente o tom cauteloso com que Castelinho abordava as questões de governo, durante o período da ditadura. Com o emprego, porém, de uma linguagem quase que cifrada, o jornalista dizia mais, nas suas colunas, do que se era permitido dizer em qualquer outro texto impresso durante os anos de chumbo.

Foi preso, algumas vezes, e por pouco tempo. Os militares mostravam os dentes sempre que um dos seus se sentia incomodado. Mas Castello tinha, além da habilidade, costas quentes. Até por isso, se imaginava razoavelmente protegido. A perda do filho, em um acidente automobilístico suspeito de sabotagem, nunca foi assimilada. Nem desvendada.

É inegável, contudo, que, relendo suas colunas do período negro da primeira metade dos anos 70, temos uma noção desagradavelmente palpável da época. E que tudo acabava contido dentro de limites aparentemente constitucionais. O que torna o conhecimento ainda mais indigesto.

Pelo pouco que conto aqui, dá para perceber o tamanho do jornalista mineiro-piauiense Carlos Castello Branco, retratado - em uma biografia carinhosa - por Carlos Marchi, seu foca, colega, eventual substituto e parceiro de sindicato. O trabalho competente do biógrafo expõe ao leitor interessado mais de meio século da política brasileira. E como você pôde constatar, traz também, como pano de fundo, uma crônica da progressão do nosso jornalismo, do Diário Carioca ao Jornal do Brasil.

Comecei celebrando uma data, vou terminar lamentando outra.

Daqui a exatos dois meses, completará 60 anos da renúncia de Jânio Quadros à presidência da República. Uma decisão tresloucada que lançou o Brasil num torvelinho de ameaças, golpes e contragolpes, e pavimentou nossa vocação de república bananeira. Salvo raros períodos de calmaria, desde então nos vimos engolidos por uma sucessão de naufrágios. E sempre com um capitão de araque, de bóia, fazendo discursos ensandecidos enquanto o navio afunda.

A verdade é que por aqui, nos trópicos, nós oscilamos de pária a mulher de malandro - ou nós apanhamos, ou nós somos enganados, ou os dois ao mesmo tempo.

Castelinho diria isso com muito mais estilo.

Editora Record, 559 páginas

P.S.: Belíssima a capa com a foto de Castelinho, à máquina, recortada em P&B sobre o fundo cinza e com o título estourado, em azul celeste. Loas ao bom gosto do designer, que, pena, não é mencionado. Já eu cliquei o livro sobre uma série especial de primeiras páginas do JB, que tenho em coleção.

Sidney Puterman

Some say he’s half man half fish, others say he’s more of a seventy/thirty split. Either way he’s a fishy bastard.

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