"Kristallnacht", por Martin Gilbert

segunda-feira, abril 11, 2022 Sidney Puterman


Kristallnatch
. O nome, desconfortavelmente poético, sintetiza um dos momentos mais vis e covardes da história da civilização. Milícias uniformizadas, sob a proteção e orientação do governo legal constituído, vandalizaram, roubaram e mataram uma minoria religiosa. A chacina ficou conhecida como A noite dos cristais por conta das milhares de vidraças quebradas.

Com uma tarefa descomunal diante de si, Gilbert procurou o caminho seco, sem arestas - e doou à posteridade um registro essencial. Traz um conciso e minucioso relato das atrocidades cometidas pelo Estado alemão contra seus cidadãos judeus, no dia 10 de novembro de 1938. Um ataque organizado e comandado por Joseph Goebbels, numa operação que reuniu dezenas de milhares de camisas pardas (muitos deles adolescentes) país afora.

Naquele dia, as forças da SS pilharam, prenderam, mataram e incendiaram 700 sinagogas. Não só: vandalizaram também alguns milhares de comércios e residências pertencentes aos judeus da Alemanha. Sinagogas com cinco séculos de idade foram queimadas e transformadas em escombros (depois de devidamente saqueadas). Rabinos foram linchados. Famílias foram expulsas de suas casas. Todos os homens com mais de 16 anos foram presos. Os com mais de 60 anos, poupados da lista dos campos de concentração, foram surrados na calçada. Alguns até a morte.

Um tal comportamento humano é difícil de ser lido. Causa asco, nojo, desprezo, repulsa. Só a frieza da descrição de Gilbert nos permite avançar na narrativa. Não é um livro de adjetivos. São relatos, testemunhos, reproduções. E números.

Principalmente números. A primeira parte do livro é dedicada à data em si e à quantidade de sinagogas incendiadas e destruídas. Às lojas saqueadas. Às residências depredadas. Aos judeus espancados e assassinados, em plena rua ou nos campos de concentração recém inaugurados. Às crianças humilhadas. Às propriedades confiscadas. 

A segunda parte trata dos países que ofereceram (ou não) asilo aos judeus em fuga da Alemanha por ocasião da Kristallnatch. Muitas nações soberanas, longe do cenário europeu e a salvo da opressão nazista, se recusaram a receber os refugiados. Outras estabeleceram regras de aceitação, ainda que com muitas restrições, e acolheram alguns. Os Estados Unidos e a Inglaterra, muitos. O Brasil, nenhum.

A terceira parte trata do que aconteceu com os judeus que não conseguiram fugir da Alemanha, nem da Europa, depois de novembro de 1938. A expropriação, o banimento, a evacuação, o transporte, os campos e a morte. Execuções por fome, exaustão, frio, linchamento, bala, fogo ou gás.

A ação assassina perpetrada pela Alemanha nazista em 11 de novembro de 1938 chocou o mundo civilizado. A Alemanha se assustou com a reação global e negou ter organizado o pogrom. Para consumo externo, sua versão foi a de que o governo foi surpreendido por uma reação popular espontânea contra os belicosos judeus. Internamente, ela culpou as próprias vítimas por "divulgarem" as atrocidades cometidas pelos meganhas covardes da SS.

Mais do que culpar os judeus pela repercussão mundial da selvageria, eles obrigaram os judeus que tiveram seu comércio destruído a repará-lo. As lojas tiveram que ser consertadas pelos expropriados sobreviventes, antes de serem oficialmente confiscadas e repassadas a um lambe-botas nazista qualquer. E o governo foi sadicamente além: multou a comunidade judaica alemã (como se houvesse uma instituída oficialmente) em 1 bilhão de marcos, por ter "incitado" os distúrbios da Kristallnatch.

Gilbert oferece mais de uma centena e meia de depoimentos, com todas as fontes destacadas, referenciadas e datadas. Publica dezenas de mapas, mostrando as rotas de deportação, as cidades que tiveram suas sinagogas atacadas na Noite de Cristal. Discrimina nomes e idades. Um grande e doloroso obituário. 

"Em 13 de julho de 1942, 57 crianças foram deportadas de Leipzig para Auschwitz. A lista oficial do transporte da SS dá seus nomes, datas e locais de nascimento. Cilla Zellner, de Leipzig, tinha 2 anos. Joel Zernik, de Berlim, tinha 7 meses. Dewora Krauthammer, de Leipzig, tinha 4 meses. Todos os 57 foram assassinados ao chegar a Auschwitz."

E estas crianças foram um grão de areia em meio ao total de judeus assassinados pelo Reich.

Como você pode constatar na leitura de Martin, a maior parte da obra lista vítimas e denuncia os assassinos. Mas houve também um outro lado: muitos dos alemães e estrangeiros que manifestaram solidariedade aos perseguidos têm seus nomes e atitudes reverenciados no texto. Não foram poucos. Alguns salvaram muitos e sobreviveram à guerra. Outros salvaram poucos, ou apenas tentaram salvar alguém, uma criança que fosse, e foram punidos com a morte.

O escritor, fora sua competência, tem lugar de fala. Judeu inglês, quando criança dividiu uma viagem de navio com judeus que fugiam da Alemanha nazista, a caminho da Oceania. Gilbert cita o encontro en passant. Sobre a viagem, em si, se esquivou de acrescentar qualquer reação pessoal ao próprio relato. Se limitou a esta pequena nota. Um escriturário do genocídio.

O historiador, paciente e meticuloso como um bibliotecário, é também o biógrafo oficial de Winston Churchill. Nascido em 1936, em 1995 recebeu da rainha da Inglaterra o título de cavaleiro. Morreu em 2006, indo enfim se reunir com as dezenas de milhares de mortos que homenageou em vida.

Ediouro, 327 páginas (1a edição) 2006 | Tradução Roberto Muggiati | Copyright 2005

Título original: "Kristallnacht, Prelude to Destruction"

Sidney Puterman

Some say he’s half man half fish, others say he’s more of a seventy/thirty split. Either way he’s a fishy bastard.

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