"Fascismo à brasileira", por Pedro Doria

sexta-feira, abril 01, 2022 Sidney Puterman


Ao dar de cara com o título, o sujeito interessado já fica travado: fascismo "à brasileira"? Isso é contra ou a favor? Está do meu lado ou contra mim? Problema. Como o mercado leitor no Brasil é mais adepto do engajamento do que do conhecimento, o título é um enigma.

Ou seja, o pior de tudo é que o curioso vai ter que ler pra descobrir. Que dureza. Na verdade, menos; o subtítulo já entrega um antagonismo, revela na escolha das palavras que de um "lado" o autor não está. Porque quem apoia Lula não gosta de ser chamado de lulista e quem é seguidor de Bolsonaro não se sente confortável com a pecha de bolsonarista. Donde...

Mas já em poucas páginas descobrimos que, lendo o bem amarrado livro de Pedro Doria, resta inconteste que chamar os bolsonaristas de fascistas é um insulto. Aos fascistas, bem entendido.

Ao recuarmos às raízes italianas do movimento fascista, ao Fascio Rivoluzionario d'Azione Interventista, e aos primórdios de seu congênere brasileiro - o Partido Integralista de Plínio Salgado -, descobrimos concepções de Estado mais bem fundamentadas e plurais do que o que hoje colocamos sob o guarda-chuva "fascista".

Mas, se explica, isso não livra a cara do fascismo, nem faz dele tolerável. Permite, porém, uma compreensão mais ampla do fato histórico, da sua influência no desdobramento de fatos passados e das suas repercussões no mundo atual. É bastante pano pra manga.

Confesso que sempre tive curiosidade pelo movimento integralista. Desde guri, achava picaresco aquele grupo de marmanjos tupiniquins fantasiados de nazistas, como se fossem um quadro da finada "Praça da Alegria" ou a tropa do Sargento Tainha. Doria me fez ver que havia menos graça do que eu pensava, embora a máscula agremiação tenha acabado apelidada de "galinhas verdes".

Para saber como isso se deu, eu sugiro a você a leitura do livro de Pedro Doria. Este jornalista é um explicador do passado, um personal historiador, um mastigador. Um facilitador da compreensão histórica - ferramenta essencial para um novo tipo de leitor.

É que a história passou a interessar mais gente do que costumava interessar. A história monolítica, aferrolhada a datas e clichês, dos bancos escolares, tinha por contraponto a história sisuda, científica, acadêmica. Hoje, não mais. Nas últimas décadas novos interpretadores da História surgiram, entre cientistas e jornalistas, e fizeram-na fluir, acessível.

Pedro Doria, ao lado de muitos outros, é um desses novos contadores de História. É dos bons. Conta fácil e não inventa. Sua narrativa não é afeita às profundezas, ainda que nem por isso possa ser minimizada como superficial. Eu diria que ela é suficiente. Recomendo.

Neste livro, seu estilo bem posto funcionou paripassu com o argumento. Química perfeita. O Integralismo é um movimento que precisa ser (re)conhecido em um país propenso ao desequilíbrio. Mas não há muita substância na qual se aprofundar; não só por ele ser uma cópia ostensiva de movimentos europeus, como por ter se tornado um fiasco em seu curto tempo de existência.

Mas ele conta muito sobre nós, nossos arranjos políticos, e Pedro Doria se ofereceu para contá-los. Com um texto maduro, fundamentado, sem sobras, e com malícia bem-humorada, o autor nos oferece um panorama claro e, na medida do possível, divertido, de mais uma epopeia tipicamente brasileira.

O plano de trabalho neste seu "Fascismo à brasileira" foi o de descrever o surgimento de Mussolini e do fascismo italiano, como base para uma biografia de Plínio Salgado, o criador da AIB. No que seria o ápice dramático de Salgado e do Integralismo, o bastão é passado a Valverde e a um descosturado contingente militar, que tentam um golpe mal-ajambrado contra o regime getulista.

Getúlio, por sinal, faz gato e sapato de Plinio e seu movimento.

Adianto que optei por incluir este título na longa série que venho fazendo com textos relacionados ao nazismo e à Segunda Guerra porque o Brasil, ainda que à distância, também conversava com a situação mundial, e era influenciado por ela. Outros títulos nossos deverão ser deschavados, até mesmo porque, perante nossa desimportância global, somos relevantes apenas para nós mesmos.

Doria fecha a narrativa com uma contextualização entre o cenário multifacetado que descreveu nas suas primeiras duzentas e trinta páginas e o Brasil em sua lenta evolução econômica. Cerze um comparativo entre a direita integralista e a atual direita bolsonarista.

E eu ainda completo com a onipresença dos Mourões na história do país. Ao primeiro, Olímpio, coube o Plano Cohen e a quartelada de 1o de abril de 1964, que completa hoje cinquenta e oito anos (atrasaram em um dia o relógio da revolução, porque golpe no dia 1o de abril foi considerado patusco demais até mesmo para o Brasil).

 Ao segundo Mourão, sabe-se lá se caberá alguma coisa; mas ele está na janelinha do avião, e certamente se valerá da sua visibilidade passageira para se candidatar nas eleições deste ano, seja pelo Rio, seja pelo Rio Grande do Sul.

A ver.

Sem sombra de dúvida, o jornalista digital, o cronista de seu tempo e o historiador despretensioso formam hoje um ente único e consistente. Como podemos constatar no primeiro caderno de O Globo desta sexta-feira, Doria - ao contrário do seu homônimo paulistano - evolui com a passagem do tempo. Lê-lo é sempre proveitoso.

Editora Planeta, 269 páginas   |  1a edição  |  2020

Sidney Puterman

Some say he’s half man half fish, others say he’s more of a seventy/thirty split. Either way he’s a fishy bastard.

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