"Inferno - o mundo em guerra, 1939 - 1945", por Max Hastings

terça-feira, junho 14, 2022 Sidney Puterman


Inferno. A alegoria bíblica se presta bem a nominar o momento de maior barbárie da espécie humana desde o advento da escrita: a Segunda Guerra Mundial foi o inferno.

E não é mítica, remota ou lendária; ela é recente e profundamente documentada. Permite aos historiadores de hoje recuperá-la e dissecá-la. Porque é este o trabalho deles. Pesquisam, lêem, checam, confrontam. Buscam novas linhas de raciocínio para melhor explicar o que aconteceu.

Hastings é desses. Na busca da melhor orientação, mescla os elementos para estimular o entendimento da dinâmica do conflito: descrição, testemunho e opinião. O autor narra os fatos, seleciona depoimentos (de militares, políticos e civis) e opina criticamente sobre os rumos da guerra.

A supervisão fez seu trabalho e a frase escolhida  para a capa da edição é pertinente (o que nem sempre acontece): "A melhor obra sobre a guerra escrita em apenas um volume". Quem assina é o Washington Post, arrematando que (a obra) se trata de um "feito monumental sob todos os aspectos".

Vamos ao "feito", então. Sintomático que, para uma minuciosa descrição do inferno, seja um livro numérico. O autor empilha informações que nos permitem dimensionar a carnificina e acompanhá-la, cronologicamente. Um balanço fúnebre delineado pela quantificação dos óbitos.

Porque este é um ponto de partida - quantos mortos, afinal, arderam na fogueira deste inferno?

"Não há um consenso quanto ao total de mortes relacionadas à guerra no mundo inteiro, mas um mínimo de sessenta milhões é aceito, com, talvez, dez milhões a mais", avalia o autor.

Uma margem de imprecisão de apenas dez milhões. Até mesmo a largura da margem de tolerância contribui para entendermos melhor o que foi esta guerra. E quem mais sofreu com ela.

Hastings discrimina as mortes por nacionalidade, fator e status. "As perdas japonesas foram estimadas em 2,7 milhões de mortos, entre os quais 1,7 milhão era de militares - sendo dois terços vítimas de inanição ou de doenças, não propriamente de ação inimiga. A Alemanha perdeu 6,9 milhões, dos quais 5,3 milhões eram militares."

Ele deixa claro o preço que a União Soviética cobrou pela invasão sofrida. "Os russos mataram cerca de 4,7 milhões de combatentes alemães, incluindo os 474.967 mortos em cativeiro soviético, e um número substancial de civis, enquanto os Aliados foram responsáveis pela morte de cerca de quinhentos mil soldados alemães e de mais de duzentos mil civis, vítimas de ataques aéreos."

Por outro lado, a Rússia e a Ásia somaram mais da metade das vítimas, diz: "A Rússia perdeu 27 milhões de pessoas; a China, pelo menos 15 milhões. Cerca de cinco milhões teriam morrido sob ocupação japonesa no Sudeste asiático. Um milhão de pessoas pereceram nas Filipinas."

À exceção de russos, alemães e poloneses, na casa dos muitos milhões, os demais países europeus sofreram perdas na casa das centenas de milhares. A Itália, que iniciou como inimiga dos Aliados e terminou aderindo a eles, teve menos de 10% dos óbitos alemães, somente. "A Itália perdeu mais de trezentos mil militares mortos e aproximadamente 250 mil civis."

O país por onde a guerra começou - a Polônia - foi um dos que mais viu seu sangue ser derramado. E 98% das suas imensas perdas aconteceram em cativeiro. "Mais de cinco milhões de poloneses morreram - 110 mil em combate e a maioria restante em campos de concentração alemães, embora os russos também possam reivindicar um número substancial de vitimas polonesas".

França e Inglaterra, que - em decorrência da invasão alemã da Polônia - tiveram que declarar guerra à Alemanha, sofreram, juntas, um milhão de mortos. "A França perdeu 567 mil pessoas, incluindo 267 mil civis. Trinta mil soldados britânicos pereceram no conflito com os japoneses, muitos como prisioneiros, num total de 382.700 mortos. O total de perdas da Grã-Bretanha na guerra, incluindo os civis, foi de 449 mil. As forças indianas sob comando britânico sofreram 87 mil mortes."

O maior vencedor da guerra teve um total de mortes inferior a meio milhão. "O total de perdas dos Estados Unidos foi de 418.500 - ligeiramente menor do que as baixas do Reino Unido -, entre as quais só o Exército perdeu 143 mil homens na Europa e no Mediterrâneo e 55.145 homens no Pacífico."

Hastings ressalva ainda que "é incoerente computar os estimados vinte milhões de pessoas que morreram por inanição ou doenças sob ocupação do Eixo como vítimas da Alemanha e do Japão sem fazer o mesmo cômputo para o lado Aliado: entre um e três milhões de indianos sob domínio britânico pereceram nas epidemias de fome durante a guerra."

Fazendo um paralelo com a população de cada país, cerca de 8% de todos os alemães morreram, em comparação com 6,67% dos iugoslavos, 4% dos gregos, 3,78% dos japoneses, 3,44% dos holandeses, 2% dos chineses, 1,35% dos franceses, 0,94% dos britânicos e 0,32% dos norte-americanos. 

Vendo as perdas exclusivamente militares, constata-se que a guerra no Leste Europeu concentrou as mortes, enquanto que países como Estados Unidos, Inglaterra e França tiveram, comparativamente, um número muito reduzido de vítimas fatais. A União Soviética sofreu 65% das mortes militares entre os Aliados, a China, 23%, a Iugoslávia, 3%, os Estados Unidos e a Grã-Bretanha, 2%, cada, a França e a Polônia, 1%, cada.

Obituário doloroso, pelo qual peço desculpas ao leitor pelo detalhamento matemático. Mas há vezes em que quantificar é tão relevante quanto qualificar. Daí a importância dos números, para que tenhamos a devida proporção. Falar da guerra é falar de milhões de cadáveres, e a forma como Hastings enumera os mortos dimensiona a grande catástrofe humana que foi a guerra. 

Como já bem destaca a orelha, o autor é um dos maiores historiadores militares do mundo, com mais de vinte livros publicados. Como jornalista, participou da cobertura de onze conflitos, em lugares como o Vietnam ou as Ilhas Falklands. Se não o leu, já deve tê-lo visto: Hastings é figurinha fácil em documentários do gênero.

Ainda que profundamente inglês - agraciado em 2002 com o título de Cavaleiro da Ordem do Império Britânico -, ele não derrapa na patriotada quando discorre sobre o poderio militar alemão.

"A disparidade do desempenho, no campo de batalha, entre o exército alemão e os exércitos aliados seria um dos grandes enigmas não apenas na campanha de 1940, mas em todo o conflito", pondera Hastings, que entende que as pequenas guerras travadas pelo exército britânico em suas possessões não tinham escala e não geraram a experiência necessária para uma grande guerra europeia. 

Já os alemães, embora privados de um exército à altura do nome (durante o entreguerras), souberam se preparar, pois "a Wehrmacht, recriada nos anos 1930 a partir de um mero quadro de oficiais, adotou novas ideias e condicionou-se unicamente para uma guerra continental. Seus oficiais demonstraram mais energia, profissionalismo e imaginação do que a maioria dos oficiais britânicos; os soldados mostraram-se extremamente motivados".

Aquilo que consideramos elogiável e humano é, em um entendimento estritamente bélico, mais um defeito que uma virtude, esclarece Hastings.

"Sua dedicação ao contra-ataque, mesmo em circunstâncias adversas, era quase genial", aponta o historiador. "O conceito de travar uma guerra à l'outrance, buscando até o último fôlego a destruição do inimigo, parecia natural aos alemães, mas não aos seus inimigos britânicos e franceses. No campo de batalha, soldados dos Aliados, refletindo suas sociedades, tinham orgulho de se conduzirem como homens razoáveis. A Werhmacht mostrou do que homens desatinados eram capazes".

Sua visão do que se passou em Dunquerque, a célebre retirada inglesa da França, é aguda, desde a lenda dos barquinhos ingleses cruzando o Canal da Mancha para resgatar seus compatriotas até a controversa atitude de Hitler.

"Um número significativo de marujos ingleses convocados a participar da evacuação se recusou a fazê-lo", adverte, lembrando que muita coisa estava fora de controle. "Enquanto muitas unidades de combate preservaram sua coesão, houve colapsos disciplinares nos escalões de retaguarda, o que obrigou alguns oficiais a sacarem, e mesmo usarem, seus revólveres".

A retirada heroica dos exércitos aliados teve momentos vergonhosos, como a recusa inicial dos ingleses em transportar os franceses. Inicialmente foram recebidos a tiros. "Somente quando Churchill interveio pessoalmente os navios começaram a receber franceses, 53 mil deles", ressalva Hastings. Ao fim, 338 mil homens foram resgatados de Dunquerque para o solo inglês - 229 mil britânicos e os demais 109 mil franceses e belgas.

A travessia improvável até hoje rende livros, filmes e polêmicas. Recentemente chegaram às telas "Dunkirk" e "The finest hour" - este um título tirado da última frase de um célebre discurso de Winston Churchill na Câmara dos Comuns. O conteúdo desta fala, a propósito, até hoje repercute. Aquela parte do sangue, suor e lágrimas todo mundo conhece; mas é seu encerramento que merecia o destaque nos letreiros, porque, como bem diz Hastings, "suas palavras finais definiram, pelo resto da guerra, a visão que as democracias tinham de seus objetivos".

("Ouvir" as palavras firmes deste líder político invulgar, proclamadas diante de uma ameaça colossal enfrentada pelo seu país e pelo mundo, nos faz corar de vergonha quando comparadas às asneiras e maracutaias dos políticos vulgares, que criam tragédias ao invés de ajudar a combatê-las.)

Noves fora, também, o domínio elegante do idioma. Seu conteúdo, porém, ia muito além da retórica.

"O que o general Weygand chamou de 'batalha da França' acabou", pontuou o primeiro-ministro em seu discurso. "Espero que a batalha da Inglaterra esteja prestes a começar. Dessa batalha depende a sobrevivência da civilização cristã. Dela dependem nossa vida britânica e a longa continuidade de nossas instituições e de nosso império." 

"Todo o poder e toda a fúria do inimigo logo se voltarão contra nós", vaticinou Churchill (esta sua fala foi antes dos bombardeios sobre Londres terem início).

"Hitler sabe que terá de vencer-nos nesta ilha ou perderá a guerra", prosseguiu. "Se pudermos enfrentá-lo, toda a Europa poderá ser livre, e a vida do mundo seguirá adiante para planaltos vastos e ensolarados. Mas, se fracassarmos, o mundo inteiro, inclusive os Estados Unidos, mergulhará no abismo de uma nova Idade das Trevas, tornada mais sinistra, e talvez mais prolongada, pelas luzes da ciência pervertida."

(Havia aí um recadinho embutido para Roosevelt, cuja lenta absorção dos fatos exasperava Churchill.)

"Preparemo-nos, portanto", advertiu, "para cumprir nossas obrigações e para nos conduzirmos de maneira que, se o Império Britânico e a Commonwealth durarem mil anos, os homens continuem a dizer: Aquele foi o seu melhor momento."

Talvez esta resistência heroica dos ingleses contra o nazismo tenha sido mesmo sua finest hour.

Mas, por incrível que pareça, isso é só o início da guerra que é o tema do livro. Quando a Grã-Bretanha ainda estava sozinha contra o agressor alemão, que já tinha no bolso a Áustria, a Tcheco-Eslováquia, a Polônia, a Bélgica e a França. E a Grã-Bretanha era realmente a próxima na lista. O problema foi que o ataque aos ingleses - o bombardeio das cidades - não foi bem conduzido pela liderança nazista, na visão do autor.

"O princípio básico do uso da força na busca de objetivos nacionais é assegurar que tal uso seja efetivo. Os alemães não o conseguiram contra a Grã-Bretanha, em 1940-1941", considera Hastings, que acredita que "enquanto a Wehrmacht quase sempre travava seus combates brilhantemente, os nazistas conduziam a guerra com uma inépcia surpreendente".

"A Luftwaffe, em vez de aterrorizar o povo de Churchill até submetê-lo à vontade de Hitler, conseguiu congregá-lo contra um desafio comum", analisa o historiador, com personalidade e certa originalidade. "A posteridade", prossegue, "vê o período entre julho de 1940 e a primavera de 1941 quase somente em termos de batalhas aéreas da Grã-Bretanha contra a Luftwaffe, o que, a rigor, mobilizou apenas uma pequena proporção dos recursos militares da Alemanha".

A provocativa análise de Hastings considera que o grosso da força alemã ficou ocioso. A grande maioria dos historiadores passa batida por este pormenor. 

Aliás, o que não é falta é provocação na narrativa de Hastings. A visita de Molotov a Berlim, em novembro de 1940, não é corriqueiro ser mencionada quando se analisa a decisão alemã de invadir a União Soviética. 

"O russo demonstrou um apetite por aprofundar o expansionismo soviético que provocou a ira alemã", diz Hastings. "Ele manifestou o interesse de Moscou no futuro da Romênia, da Bulgária, da Polônia e até da Grécia. Indagou se a contínua neutralidade da Suécia convinha aos objetivos comuns da Alemanha e da União Soviética". O autor informa que Molotov "ouviu como resposta um áspero sim".

No entendimento de Hastings, "quando Molotov subiu a bordo do avião que o devolveria à Rússia, Hitler teve certeza sobre sua antiga convicção: a Alemanha deveria atacar a Rússia no ano seguinte".

É quando o historiador fundamenta as possíveis razões de Hitler para a sua até hoje controvertida decisão de invadir a União Soviética (nas próximas semanas vou trazer aqui o "Dez decisões que mudaram o mundo", de Ian Kershaw - e uma delas é justamente esta, em uma abordagem minuciosa).

Mas "não havia escolha para Hitler", acredita Hastings. "A economia alemã era mais fraca do que seus inimigos imaginavam - apenas um pouco maior do que a britânica, que tinha renda per capita mais alta. Ela não poderia se sustentar indefinidamente sobre a guerra e fora desdobrada ao máximo para alimentar a população e armar a Wehrmacht. Hitler estava decidido a garantir sua posição estratégica na Europa antes que os Estados Unidos entrassem na guerra, o que ele previa para 1942."

Quanto a este ponto, há consenso entre os estudiosos do assunto. Todos crêem que a Grã-Bretanha sonhava, naquele momento nevrálgico, na reedição da aliança da Primeira Guerra Mundial com os russos. Esta era também a avaliação de Hitler. Assim, com a eliminação dos russos da equação, pela invasão do país, "a capitulação da Grã-Bretanha seria inevitável. Se a Alemanha estava destinada a travar uma guerra mortal com a Rússia, seria tolice retardar esse momento enquanto Stalin se rearmava".

Há unanimidade quanto à data de tomada da decisão de Hitler. "Em 18 de dezembro de1940, Hitler emitiu uma diretiva formal sobre a invasão, a ser lançada no final de maio de 1941".

Vale aqui um parênteses. Embora no inverno de 1940 a guerra estivesse há pouco mais de um ano em curso, com a invasão da Polônia pelos alemães, em 1o de setembro de 1939, na prática - vendo em retrospectiva - ela já estava a uma meia-dúzia de meses de ser perdida.

Com a má avaliação da capacidade russa de resistência (ver, por favor, o post aqui no blog em 21 de março último, "Hammerstein", sobre um comandante alemão, que conhecia em detalhes o Exército Vermelho do início dos anos 30, que vaticinou exatamente o tipo de desafio insuperável que os alemães teriam que enfrentar), os nazistas estavam a um passo de entrar em um beco sem saída.

O atoleiro que a Wehrmacht iria enfrentar no Leste não pareceria com o nado de braçada que os alemães estavam performando na França (com alguma dignidade) e na Polônia (sem dignidade nenhuma). O buraco ali era mais embaixo e, pior, era um buraco congelado.

"A invasão da União Soviética por Hitler", afirma o historiador, "foi o momento decisivo da guerra, assim como o Holocausto foi o ato definidor do nazismo".

"Às 3h15 da manhã de 22 de junho de 1941", assinala Hastings, "cerca de 3,6 milhões de soldados do Eixo puseram-se em marcha União Soviética adentro, numa frente que se estendia por 1.400 quilômetros, do Báltico ao Mar Negro, esmagando as defesas com uma eficácia devastadora".

O início era promissor. Uma blitzkrieg de surpresa contra um adversário vulnerável em uma linha muito extensa. Um oficial soviético registrou um diálogo com um camarada: "Kuznetsov me informou, com um tremor na garganta, que da 56a Divisão de Infantaria só restara seu número".

O gigante comunista, na verdade, estava em uma situação bastante frágil. Os expurgos militares na segunda metade da década de 30 decapitaram a liderança do Exército (justo o objetivo de Stalin, aliás) e não havia armamentos nem em quantidade, nem em qualidade.

Diante do cerco de Leningrado, completado em 15 de setembro, Stalin destituiu seu velho comandante, o general bolchevista Kliment Voroshilov, que, a despeito da sua péssima condução da defesa, foi à Moscou berrar na cara  do primeiro-ministro: "A culpa é sua! Foi você quem aniquilou a velha guarda do exército; você matou nossos melhores generais!"

Com este exagero de franqueza, Voroshilov teve sorte por escapar do pelotão de fuzilamento.

"A União Soviética, na véspera da invasão alemã, era a sociedade mais rigorosamente controlada e policiada no mundo. Sua máquina de repressão interna era muito mais elaborada e havia matado muito mais gente em 1941 do que o nazismo: seis milhões de camponeses morreram durante o programa de industrialização compulsória", diz o escritor, que arremata: "Mas a tirania de Stalin estava menos preparada  para se defender dos inimigos externos do que de seu próprio povo".

Foi esta fragilidade que aguçou o cheiro de sangue para Hitler - o problema é que talvez ele tenha ido com sede demais ao pote. Me agrada a ponderação de Max Hastings sobre a ofensiva.

"Nos termos de Hitler, a operação Barbarossa se tornava um ato racional, possibilitando à Alemanha combater a União Soviética enquanto desfrutava maior vantagem relativa. A arrogância explica a subestimação da capacidade militar e industrial já alcançada por Stalin, a indiferença incauta às extensões quase ilimitadas da Rússia e seu apoio logístico toscamente inadequado para uma campanha prolongada."

"Apesar da ampliação da Wehrmacht desde o ano anterior e da entrega de centenas de novos tanques", observa o historiador, "muitas formações dependiam das armas e das viaturas tomadas dos tchecos em 1938-1939 ou capturadas dos franceses em 1940; somente as divisões blindadas dispunham de transporte e de equipamentos adequados".

Fora a precisão da abordagem técnica e estratégica, Hastings - e aqui eu vejo o olho clínico do historiador arguto - identifica na decisão alemã uma deficiência no entendimento psicológico da resistência local: "Não ocorreu a Hitler, depois de suas vitórias no Ocidente, que talvez fosse mais difícil derrotar uma sociedade brutalizada, acostumada a sofrer, do que democracias como a França e a Grã-Bretanha, em que moderação e respeito pela vida humana eram virtudes."

A partir daí, o inferno do título se torna cada vez mais constante nas descrições do autor - que se esmera em trazer depoimentos pessoais que ampliam nossa percepção da dimensão humana da tragédia. 

"Nossos rapazes não tiveram a menor chance - houve uma execução em massa", relata o oficial fuzileiro naval, Nikolai Vavin. "Os aviões alemães nos bombardearam e nos metralharam. Do meu grupo de duzentos homens sobraram catorze".

A propaganda tentava acelerar o avanço nazista e reduzir a quantidade de dias da operação. Alto-falantes alemães ameaçavam os russos no campo de batalha: "Enterraremos vocês nas margens do rio". O tempo estava contra os atacantes. Maior a duração, mais obstáculos logísticos a resolver.

Entre eles é que, não sendo possível uma extensa linha de suprimentos que desse suporte à Wehrmacht, a ideia do invasor era alimentar as forças de ocupação com os víveres da população - que, no planejamento alemão, estava fadada a morrer de fome.

(Tal diretriz consta do planejamento oficial do secretariado nazista, que fez consignar em ata, em uma reunião de 2 de maio de 1941, sete semanas antes da invasão: "1) A guerra só pode ser mantida se toda a Wehrmacht for alimentada pela Rússia no terceiro ano; 2) Se tirarmos o que for preciso do país, não pode haver dúvida de que milhões de pessoas morrerão por inanição.")

Para uma ocupação bem estabelecida, entretanto, era preciso que a invasão alemã se estabilizasse antes da chegada do inverno. Para tanto, era necessário que o Exército Vermelho e as guerrilhas fossem rapidamente derrotados. Como esta segunda premissa, que determinaria a primeira, não aconteceu, a situação no front russo escapou ao controle.

O êxito acachapante do avanço inicial não se sustentou no decorrer das semanas. A conquista definitiva não chegou - mas o inverno sim. "Nossas tropas andam por aí como se estivessem condenadas", escreveu um soldado para a esposa, em casa. "Nossos soldados atacam o solo congelado, mas os golpes mais pesados arrancam terra suficiente para encher as unhas. Nossa força diminui a cada dia."

Menos de cinco meses após a invasão, não havia reservas, material bélico ou combustível. O ponto mais avançado do sistema de suprimentos, em Smolensk, distava 480 quilômetros da linha de frente. Uma distância maior do que a do Rio a São Paulo, formada por um terreno de lama e neve - o que já nos permite visualizar a dificuldade enfrentada pelos invasores.

Bom que o ser humano - até mesmo o ser humano nascido na Alemanha - preserva o bom humor, mesmo debaixo da pior das dificuldades. Uma piada de humor negro circulava entre os oficiais alemães: "Campanha do leste prorrogada por um mês devido ao grande sucesso".

Só que não. Ou, como diz a rapaziada agora, deu ruim. A conquista do Lebensraum, o sonhado Leste onde os nazistas seriam os senhores do paraíso, deu com os burros n'água. Os alemães foram contidos, e depois cercados, e depois aprisionados e mortos, e depois fugiram com os russos no seu encalço.

Esta visão da derrota alemã já circunstanciada no inverno de 1941-42 não é meramente uma visão retrospectiva confortável. Sequer um olhar domesticado pela narrativa do vencedor. O próprio chefe supremo de material bélico alemão, Fritz Todt, disse isto com todas as letras, à época, presidindo uma conferência com os maiorais da indústria alemã.

"Todt chegou a uma conclusão arrasadora", expõe Hastings. "Já não era possível ganhar a guerra contra a Rússia. Não tendo obtido uma vitória rápida, a Alemanha carecia de recursos para prevalecer num conflito prolongado."

A percepção de Todt foi levada ao führer. "No dia seguinte, Todt e o chefe de produção de tanques Walter Rohland se encontraram com Hitler. Rohland afirmou que, quando os Estados Unidos entrassem na guerra, seria impossível competir com a força industrial dos Aliados. Todt, apesar de ser um nazista ardoroso, disse: 'Esta guerra já não pode ser vencida por meios militares'. Hitler exigiu uma resposta: 'E como terminarei a guerra?' Todt respondeu que somente um desenlace político seria viável. Hitler rejeitou a sugestão."

Faça as contas. A guerra, que durou quase seis anos, mal tinha completado o segundo ano e o agressor já se sabia derrotado. Nada do que aconteceria a partir daí alteraria o final, apenas a dimensão da catástrofe. Neste momento, os alemães tinham o controle da Polônia, da Ucrânia, da Tcheco-Eslováquia, da França, da Dinamarca, da Noruega e de boa parte da União Soviética. Eram a parte forte da aliança com a Itália, a Hungria, a Iugoslávia, a Romênia, a Bulgária e o Japão. 

Um dos eventos que mais marcou a Segunda Guerra Mundial ainda não tinha tido início: o extermínio dos judeus. Milhares já haviam sido mortos, mas ainda não havia uma política de Estado para assassiná-los, nem um plano elaborado para tal. Wansee aconteceria somente em janeiro de 1942, quando Himmler e Heydrich, sob o comando de Hitler, deliberaram pela Solução Final.

(Narrativa que você encontra pormenorizada aqui no blog, em "Os nazistas e a Solução Final", do professor Mark Roseman.)

Ou seja: a Alemanha, já derrotada, optou por concentrar a força do seu aparato de ocupação para exterminar uma etnia aprisionada, composta exclusivamente por civis, mais de 70% deles mulheres, idosos e crianças. Foi o único sucesso alemão doravante. Seis milhões de judeus assassinados. Para os alemães, todo o restante da guerra foi dominado por derrotas, baixas e retiradas - até a invasão e destruição da própria Alemanha, em 1945.

Aqui eu me dou ao luxo de encurtar em poucos parágrafos o que foi narrado em centenas de páginas. Neste Inferno de Hastings, evidentemente nada superou o inferno levado aos judeus pelo governo nazista. Mas não é aqui que tratarei deste assunto, presente já demasiado em diversos livros que venho lendo e compartilhando nas últimas semanas - e nas semanas vindouras. Um assunto doloroso, mas obrigatório.

Um outro cenário coberto incisivamente pelo historiador foi o teatro de guerra no Pacífico. Como vimos na abertura deste comentário, mais da metade dos mortos na Segunda Guerra Mundial morreu no oriente do planeta. Foi o ataque covarde a Pearl Harbor que jogou os Estados Unidos na guerra, e foram os Estados Unidos que fizeram a guerra ser perdida pelos alemães. E, como estamos todos carecas de saber, aqui está tudo inapelavelmente intrincado. 

E um ataque que foi sobretudo uma aposta, coisa que países não deveriam fazer. Os japoneses não tinham cacife para sustentar uma ação ofensiva no Pacífico diante do potencial da retaliação norte-americana. Eles precisavam que a Alemanha vencesse a guerra na Europa, para que o Japão pudesse consolidar seu avanço. Hastings narra assim a aventura japonesa:

"Durante o ano que se seguiu a Pearl Harbor, a interrupção dos avanços japoneses na Ásia e no Pacífico e o início de sua reversão tornaram inevitável a derrota do país. É extraordinário que, uma vez que as esperanças de Tóquio numa vitória rápida se frustraram e a determinação americana foi amplamente demonstrada, o país de Hirohito tenha continuado a lutar às cegas. A estratégia japonesa baseava-se na crença de que haveria uma vitória alemã no Ocidente, mas, ao final de 1942, isso se tornara irrealista."

"A partir de então", prossegue o historiador, "a paz em quaisquer termos, ou incondicional, deveria ter parecido a Tóquio preferível à iminente retaliação americana. Mas, assim como na Alemanha, não houve no Japão qualquer demonstração de vontade ou poder para desviar o país de sua trajetória rumo à imolação. Shikata ga nai: não se pode evitar. Pode ser uma desculpa monumentalmente inadequada para condenar milhões à morte sem a esperança de obter qualquer benefício redentor, mas é fato constante da história que países que iniciam guerras têm grande dificuldade para interrompê-las."

Como eu disse há alguns parágrafos atrás, embora ainda estivéssemos com pouco mais de dois anos da guerra, ela já não havia mais como ser vencida pelos países do Eixo. Todo o seu avanço era agora apenas um longo morticínio rumo à derrota final. Os alemães ainda demorariam três anos e meio para se renderem. Mais de 90% do total de alemães que iriam morrer na guerra ainda estavam vivos nesta hora.

Uma arma que havia se tornado decisiva neste momento da guerra foram os U-boats. Porque a entrada oficial dos Estados Unidos no conflito multiplicou a ação da marinha norte-americana e, por outro lado, liberou os submarinos alemães para torpedeá-la. Toda a produção viabilizada pelo Lend Lease precisava ser transportada por via marítima. Tinha início a Batalha do Atlântico.

Mas a descoberta, por parte dos Aliados, em Bletchley Park, dos códigos utilizados na máquina Enigma entregava a localização dos alemães. Com isso, a  maior parte dos comboios era desviada e se mantinha fora de alcance das alcatéias submarinas (nem todos os comboios eram desviados, para que não ficasse claro para os alemães que o código fora desvendado, provocando um difícil problema moral - saber que seus navios seriam atacados e não avisá-los).

Stalingrado, um dos palcos mais épicos e sanguinários da guerra, objeto de livros, filmes e lendas, é mais um dos cenários que merece o inferno do título por si só. Embora o comandante do LXII Exército, general Vasily Chuikov tenha dito, posteriormente: "Ao se aproximarem deste lugar, os soldados costumavam dizer: 'Estamos entrando no inferno'. Depois de duas ou três horas, acrescentavam: 'Não, isso não é o inferno, é dez vezes pior".

O comissário Pavel Kalitov escreveu, horrorizado, em Logovo: "Os civis estão uivando. Tudo precisa ser evacuado. Por toda parte há gemidos, lágrimas, dor". Uma jovem soldada disse: "Eu imaginava como seria a guerra - tudo em chamas, crianças chorando, gatos correndo, e, quando cheguei a Stalingrado, vi exatamente isso, porém muito mais terrível".

A cidade em escombros permitiu aos russos o uso do seu maior trunfo, o combate corpo-a-corpo. Um oficial da infantaria Panzer escreveu: "Lutamos durante quinze dias por uma única casa, com morteiros, metralhadoras, granadas e baionetas. A linha de frente é um corredor entre cômodos incendiados. A rua não é medida em metros, mas em cadáveres". Ressalva que Stalingrado era uma fornalha em chamas, em que "os animais fogem deste inferno; as pedras mais duras não aguentam por muito tempo; somente os homens as suportam".

Já o cerco de Leningrado durou quase três anos (de junho de 1941 a janeiro de 1944) e deixou mais de um milhão de mortos. A fome foi sua principal característica. Mais uma vez vou recorrer ao inferno do título - desculpem a falta de originalidade. Um mero parágrafo de um dos depoimentos - o do soldado russo Nikolai Nikulin, que no seu diário se queixa que o mingau matinal veio com estilhaços de bala - demonstra bem se exagero:

"Durante a noite, rastejei duas vezes até um buraco de bomba em busca de água. Era grossa e marrom como café e cheirava a explosivos e a alguma outra coisa. Pela manhã, vi uma mão negra e retorcida saindo dessa cratera. Minha túnica e calças estão duras como papelão por causa da lama e do sangue, e os joelhos e cotovelos esfolados por rastejar. Joguei fora meu capacete - poucos usam capacete por aqui; geralmente defeca-se neles, que são jogados para fora da trincheira. O cadáver perto de mim fede de forma insuportável; há tantos deles, velhos e novos. Alguns escurecem conforme secam, estirados em todas as posições. Aqui e ali, na trincheira, veem-se pedaços de corpos pisoteados na lama - um rosto achatado ou uma mão, tudo marrom como a cor da terra. Caminhamos por cima deles."

A partir do Dia D, com o desembarque aliado na costa francesa, a guerra ruma para o seu desenlace. Os alemães, antes agressores, passam a recuar em todas as frentes. A Itália troca de lado e Hitler precisa dividir suas já combalidas forças entre o Leste, onde os russos vão empurrando a Wehrmacht de volta para a Alemanha, o Oeste, tentando resistir ao avanço aliado França adentro, e ao sul, fazendo uma contenção na bota italiana com o rebotalho do exército alemão.

Em cada detalhe temos um Hastings permanentemente crítico, como quando elogia a defesa alemã na Sicília, e em contrapartida ressalva que "a Wehrmacht travou muitas batalhas de maneira brilhante, mas que a Alemanha guerreou muito mal".

A narrativa passa a ser a da fuga, da retração e do aniquilamento. Porém, como mais à frente vou postar livros como "O fim do Terceiro Reich", de Ian Kershaw, "Quem contará a nossa história?", de Samuel Kassow, e "Alemanha, 1945", de Richard Bessel, prefiro não me aprofundar nestes temas por aqui - encerrando, enfim, este texto excessivamente longo. Mais uma vez me vi refém de um conteúdo que, muito mais do que comentar, me senti compelido a transcrever.

Se abri listando os números do morticínio, é porque Max, de uma forma muito mais minuciosa que a maioria dos autores, oferece uma rara perspectiva matemática. Não relacionei todos, apenas alguns; se não os mais importantes, talvez os mais emblemáticos. Quantos morreram, quantos escaparam.

Mas um dos trunfos da alentada obra de Max Hastings são os depoimentos, personificando a guerra no relato individual de soldados e civis. Selecionei uns poucos para reprodução aqui - são centenas. O delicado é que o historiador não perde nunca de vista que a guerra é sofrida pelos seres humanos. Esta percepção é tão presente na obra, que ela traz inclusive um poema (de J.R. Ackerley e publicado no Spectator), que acho uma boa maneira de encerrar uma história que não tem fim.


Jamais soubemos o que aconteceu com ele, isso foi tão curioso;

Ele embarcou, era dezembro, e nunca voltou;

Nenhuma oportunidade para dizer adeus, e o Natal diante de nós;

Algumas cartas chegaram, muito depois, e foi o fim.

As semanas se arrastaram em meses, e então era dezembro.

Incomodamos as autoridades, é claro, e elas mandaram telegramas;

Eram pacientes, mas ocupadas, um sem-número de impertinências;

Uns diziam uma coisa, outros diziam outra; nunca descobriram.

Muita coisa ficou assim, sem explicação;

E morte é morte, afinal, é um pequeno conforto saber como ou quando;

Mas continuo achando que abandonamos a investigação;

Mais pareceu a morte de um inseto do que de um homem.


Intrínseca, 766 páginas (1a edição) 2012 | Tradução Berilo Vargas | Copyright 2011

Título original: "All Hell Let Loose"

Sidney Puterman

Some say he’s half man half fish, others say he’s more of a seventy/thirty split. Either way he’s a fishy bastard.

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